A série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea apresenta o trabalho de escritores da cena literária recente, com uma seleção atenta à produção de todas as regiões do país. Neste ciclo, a curadoria e a apresentação são da pesquisadora Fabiana Carneiro da Silva.

Uma ponte entre a cena local contemporânea do rap paraense e as proposições da poeta e intelectual afro-estadunidense (de origem caribenha) Audre Lorde na segunda metade do século XX nos Estados Unidos se faz possível pelo trabalho de Bruna BG, escritora e rapper nascida em Breves (PA) e atuante, sobretudo, em Belém (PA). A artista, autora do EP Bruna BG, lançado no final de 2021, produz seus versos a partir da convicção de que a “poesia não é um luxo”, e, sendo assim, o fazer literário estrutura seu modo de estar no mundo a despeito de todas as obstruções que se encontram no caminho – sobre isso, na música “Pesadelos”, ela escreve-canta: “E nessa estrada eu sigo o caminho cantando as realidades, vou / Eu perco o meu tempo / Eles falam que eu perco o meu tempo”. A poética de Bruna, que apresentamos nesta edição da série Encontros com a nova literatura brasileira contemporânea, dá a ver uma dicção em diversos aspectos destoante do mainstream do rap nacional.

A dimensão de horror que converte em pesadelo a experiência de boa parte das populações negras periféricas surge na obra de Bruna de modo sensível, flagrada em pormenores que insuflam o eu lírico das canções a insurgir-se contra o status quo, mesmo que combalido pelas feridas da impotência. A relação entre o ritmo e a poesia tecida por Bruna explicita uma crença – para muitos já não condizente com as configurações de nosso atual momento histórico – na potencialidade da palavra-cantada-alafiada de transformar as experiências de suas e seus receptores. Mulher preta, ribeirinha, lésbica afirmando seu lugar numa paisagem artística ainda predominantemente masculina e heterocisnormativa, Bruna elege o sonho e o amor como caminhos possíveis de reconciliação das partes fraturadas de si mesma. Tal como na obra de Lorde, o amor e o gesto de amar entre mulheres negras surgem como contrapontos ao medo e aos traumas causados pela precariedade das vidas negras numa sociedade estruturalmente racista. “Mexe comigo, não, mexe comigo, não / Mexe comigo que eu te mostro a mente da menina”, ela afirma e, nessa esteira, delineia para nós percursos sinuosos das subjetividades de suas vozes-poéticas.

Nesta breve seleção de textos e videoclipes que compartilho, tais questões surgem como mosaico por meio das imagens em que a noite-pesadelo das quebradas se trança ao sonho-dia da luta por reconhecimento e por um espaço como artista. Tudo isso agora e ao mesmo tempo, num beat que nos tira da paralisia.

Bruna está cantando em um show. Aproxima o microfone à boca e olha na direção da plateia. Nós a vemos pelo lado. Ela veste uma roupa vermelha e tem longas traças que caem sobre os ombros.
A rapper Bruna BG (imagem: Divulgação)

Pesadelos

Quanto tempo eu passei nessa vida mostrando minha letra
Escrevendo minhas rimas
Sonho de criança
Cantar tudo que eu sinto

Rap bom da periferia, cremação todo dia
Eu vejo e vejo muito os menor na armadilha da vida
E nessa estrada eu sigo o caminho cantando as realidades vou

Eu perco o meu tempo, eles falam que eu perco meu tempo

Meus pesadelos acontecem à noite
Meus pesadelos acontecem quando eu durmo

E quando acordo eu mudo tudo
Uma inocência passageira, eu quero o mundo
Os exageros eu deixo pra trás
Pensamento de vitória isso sim me deixa em paz

Eu quero sempre um tanto de sabedoria
Me esquivo sempre que vejo almas sombrias
Ainda tem o descaso desses insetos
Pra ter que aturar isso só escrevendo uns versos

Meus pesadelos me enlouquecem à noite
Os pesadelos me enlouquecem

O mundo é insano cê tá ligado nisso
Desespero total dos que não têm pra dar pro filho
É um pesadelo que nunca acaba
Quem sou eu pra julgar o que eu não vivo

Não tem alívio segue na raça
Porque ração pra porcos tem demais
Quem é bandido na elite merda
Entre eles trigo é pouco joio é mais

E nessa estrada eu sigo o caminho cantando as realidades, vou
Eu perco o meu tempo
Eles falam que eu perco o meu tempo

Eu não vou desandar
É tudo que eles querem
Me ver fora do ar
O papo é reto e eles tremem

Eu não vou descansar
Pois o mal nunca descansa
Fortaleço a cena das manas que comandam a rima

Ritmo e poesia
Filho cê não alucina
Mexe comigo que eu te mostro a mente da menina

Atrás do meu sonho

Bang, bang é fato eu rasgar contrato 
A minha presença sempre a incomodar 
Eu não sou discreta sem língua na rédea 
Se eu botar pra fora vai me ver surtar 

Eu não tenho sangue de barata 
Vocês matam o meu povo também com suas palavras
Atrás de tua pose de sensata 
Dizem estar do nosso lado 
Se errar vão cancelar

Eu vim bem de baixo e me orgulho
Meus ensinamentos foram duros 
Pobreza não é orgulho pra ninguém
Eu também quero no bolso as de cem  

Meu jeitão bonito te assusta 
A minha verdade não é tua conduta 
Vocês é que são a doença sem cura 
Eu sou a presença mais viva da culpa 
O corre é louco 
e eu tô atrás do meu troco
Sem tempo pra me preocupar 
Mas se eu não pensar na disputa
Como desvalidam a luta eu vou te provar 

Year ho! Cês querem desculpa 
Aham! Querem botar culpa
Não, não nós vamos à luta 
Aham a flor aqui é bruta 

Fogo e mar

Se liga meu bem
esse nervosismo que eu sinto quando tô perto de ti
só quero te olhar meu bem
não sei explicar só sei que bate uma vontade de beijar tua boca
me convém eu vou, eu tô aqui ao teu dispor
o tempo é curto meu amor
e eu vivo intensamente cada momento que a vida pode dar sem deixar passar o que eu sinto

Te vejo como um pássaro
eu sei nem te conheço mas imagino em todo canto 
e eu te conto um pouco do que eu sou, yeah
atrás desse sorriso vou, e o que é que tem traz descobrimento
sei que é só loucura, mas o que seria da vida se a loucura não se fizesse presente, yeah 
te vejo de longe, te acompanho no sinal
rede social, coisa e tal tenho muito corre pra poder virar e te levar
se você não se esconde, quem sabe me dê uma moral
liberdade é o que eu vejo nos teus 
tua energia me atrai e vou atrás

Nos teus olhos também consigo ver
fuga, alegria e vontade de viver
então deixa florescer que o tempo não para 
hoje estamos aqui amanhã tudo se separa, vai
voa, voa passarinho, 
que o ninho é pequeno para o teu destino mais
sente um pouco meu carinho 
se resolver posso ir contigo

tem alguma coisa em você, algo que fascina
espontaneidade sem medo de mostrar o que menina
uma mulher que briga
já disse que não tem nada de fofa, mas é linda

Você curiosa me levar pra uma noite então me prova
depois decide se leva, e de volta e de volta, yeah
bagunça fico ao te ver por isso te escrevo poesias
isso é tão clichê onde encontro minha saída

pra dissolver os dramas da vida
de onde eu vim sonhos não se tornam realidade 
eternizada na minha rima você sabe
eu não tenho controle escrevo minhas
insanidades
você com esse jeitinho agora aqui nas minhas frases, yeah

jeitinho de ser bem pra cima
dançar ouvir o flow, ela entra no clima
percebo que cê fala mesmo e não vem criticar
ela é liberdade o elemento é ar FOGO E MAR

Talvez não seja a hora certa
talvez você nem queira mais eu tô esperta
eu tô correndo contra sem medo e sem pressa
quem sabe a gente se dá bem.

Se liga meu
esse nervosismo que eu sinto quando tô perto de ti
só quero te olhar meu bem
não sei explicar só sei que bate uma vontade de beijar tua boca
me convém eu vou, eu tô aqui ao teu dispor
o tempo é curto meu amor
e eu vivo intensamente cada momento que a vida pode dar sem deixar passar o que eu sinto.

 

Bruna BG canta em um grupo de rap ao lado da MC Anna Suav, do DJ Onçabeat e do guitarrista Jimmy Góes, prosseguindo uma trajetória no gênero que vem desde 2016. Em outros ritmos, ela já vinha participando da cena musical de Belém (PA) desde 2007: fez parte da banda Rockslide como vocal, guitarrista e compositora e passou pelo Com Abas, grupo de música soul. Também integrou conjuntos de reggae e samba de raiz.

Neta de Amada e de Quiteria, filha de Lourdes e mãe de Imani, Fabiana Carneiro da Silva tece um caminho que alinhava docência, pesquisa e ações artísticas no campo dos saberes contra-hegemônicos, sobretudo a partir do eixo constituído por literatura, corpo e experiência comunitária. Doutora em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo (USP), atua como professora adjunta do Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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