Ed Brubaker fala sobre HQs policiais, mágoas com a Marvel e boas histórias
26/07/2021 - 10:03
por Ramon Vitral
O quadrinista Ed Brubaker classifica como “insanidade” os ataques que sofreu após o lançamento de Pulp, assinada por ele, pelo ilustrador Sean Phillips e pelo colorista Jacob Phillips (filho do desenhista). Ele foi chamado de “esquerdista maluco” por concentrar parte da trama da HQ em um comício nazista com a presença de 22 mil pessoas na Nova York de 1939 e retratar os simpatizantes de Adolf Hitler como vilões. As críticas partem principalmente daqueles que não sabem que o comício nazista no Madison Square Garden realmente aconteceu. E também de quem se recusa a admitir que nazistas foram, são e sempre serão essencialmente vilões.
“De repente, é como se algumas pessoas não quisessem admitir que os nazistas eram os bandidos. Eu nunca pensei que isso aconteceria na minha vida, honestamente”, me diz o escritor norte-americano.
Pulp é o primeiro título em português de uma série de lançamentos da dupla Brubaker-Phillips prometidos pela editora Mino para os próximos meses. Gosto muito do gibi, mas não é o meu preferido deles (logo mais conto qual é). Ainda assim, trata-se provavelmente da obra de maior alcance e repercussão dessa parceria de mais de 20 anos.
Escrevo esta coluna uma semana antes do anúncio dos vencedores da edição de 2021 do Prêmio Eisner, premiação máxima da indústria norte-americana de quadrinhos. Pulp concorreu na categoria principal, de melhor novo álbum gráfico. Também foi um dos títulos que renderam a Brubaker uma indicação na categoria de melhor roteirista.
[Texto atualizado após o anúncio dos vencedores do Prêmio Eisner: Pulp ficou com o principal troféu da premiação, na categoria de melhor novo álbum gráfico. Brubaker também levou o troféu de melhor quadrinho digital, por sua parceria com Marcos Martin na série Friday.]
As 80 páginas da HQ evocam as narrativas rápidas e pouco pretensiosas de quadrinhos e títulos literários das chamadas revistas pulp, publicadas no início do século XX. Conta a história de um cowboy aposentado na Nova York dos anos 1930 que vive como autor de literatura barata após uma juventude de crimes no Velho Oeste. Com problemas financeiros, Max Winters antagoniza um grupo de nazistas ao se envolver em um roubo tendo em vista uma vida mais segura para a sua esposa.
Brubaker começou a escrever a HQ após Phillips revelar a ele o desejo de desenhar um quadrinho de faroeste. Daí surgiu a narrativa do velho fora da lei escrevendo histórias inspiradas em sua juventude. Mas Pulp ganhou contornos mais dramáticos após o roteirista quase morrer em um afogamento.
“O livro também é muito sobre eu quase morrendo e me preocupando com deixar minha esposa sem nada”, conta Brubaker. “Isso me assombrou por cerca de um ano antes de eu finalmente escrever Pulp, então foi uma maneira de processar esses sentimentos como ficção.”
O resultado final é uma obra curta e violenta, bruta como toda boa história de bangue-bangue, mas não superficial. Apesar de entretenimento rápido, trata de temas atuais e expõe injustiças características do sistema capitalista.
Brubaker explica seus objetivos: “Fizemos principalmente para ser um estudo de personagem sobre um fora da lei que envelhece à medida que o fascismo está varrendo o mundo. Ele vê os proprietários de terras do Velho Oeste, com seus próprios exércitos privados, e a semelhança disso com o fascismo; vê como o capitalismo sempre teve esse lado sombrio”.
Após o lançamento de Pulp, a editora Mino promete publicar, também da dupla Brubaker-Phillips, os quatro volumes de Kill or be killed e o álbum My heroes have always been junkies (ambos sem título em português até o momento). Para os próximos anos, planeja ainda o lançamento de outros trabalhos, como a série Criminal – essa, sim, minha obra preferida dos dois autores –, sobre diferentes gerações de criminosos de uma mesma cidade.
Criminal foi meu primeiro contato com a parceria entre os dois, lá no fim dos anos 2000. Na época, Brubaker estava em alta por seus trabalhos para a Marvel. Ele é autor do arco de histórias mais aclamado dos mais de 80 anos de quadrinhos do Capitão América, tendo criado o personagem Soldado Invernal, interpretado pelo ator Sebastian Stan nos filmes dos estúdios Marvel e na série Falcão e o Soldado Invernal.
Ele inclusive guarda mágoas desse período trabalhando para a Marvel. Assim como outros artistas que ajudaram a construir a fama do grupo, diz que seus contratos foram descumpridos e que ficou sem receber os montantes acordados com a empresa pela exploração do personagem que criou.
“Eles evoluíram bastante ao dar mais reconhecimento aos autores dos trabalhos que exploram, mas não vai muito além disso”, diz Brubaker sobre a Marvel. “Eu sabia que eles eram assim quando trabalhei lá, não é nenhuma novidade. Minha reclamação é mais específica à minha situação pessoal e às coisas que me foram prometidas. Não é surpresa que essas corporações gigantescas não queiram tratar os criadores de maneira justa, essa é a história do mercado editorial e do cinema.”
Criminal também foi publicada pela editora. Os seis primeiros arcos de histórias da série, reunidos em seis coletâneas, saíram pelo selo Icon, destinado à publicação de títulos lançados pela Marvel, mas com seus direitos mantidos pelos autores. Em 2016, a partir do sétimo arco de histórias, os autores levaram a série para a editora Image, pela qual já vinham publicando outros trabalhos desde 2012.
Na mudança para a Image, Criminal ganhou mais quatro arcos de histórias, um deles equivalente ao sétimo encadernado da série e os outros três spin-offs, com histórias fechadas que funcionam sozinhas, independentemente da leitura das tramas prévias, mas que ampliam os cenários do título e aprofundam seus personagens. A promessa da Mino é publicar essas 11 coletâneas em português.
Prevista para chegar às livrarias brasileiras em dezembro de 2021, My heroes have always been junkies, por exemplo, é protagonizada por uma personagem coadjuvante da primeira coletânea de Criminal. Conta a história dessa jovem internada em uma clínica de reabilitação e seu vínculo crescente com outro paciente. A narrativa gira em torno das motivações por trás das internações dos dois.
Assim como Pulp, Criminal também é crua. Não se propõe a refletir ou experimentar em relação às possibilidades da linguagem dos quadrinhos. Brubaker e Phillips parecem claros em sua proposta de divertir, mesmo que em tramas violentas, protagonizadas por criminosos e, na maior parte das vezes, com finais trágicos. Essa clareza narrativa dos dois me lembrou de uma fala do quadrinista norte-americano Jason Lutes, autor de Berlim (Veneta), quando o entrevistei para a Sarjeta de outubro de 2020.
Também professor de quadrinhos, Lutes disse insistir em suas aulas sobre a importância dessa clareza: “Não que os seus quadrinhos devam ser desenhados com clareza, mas qualquer que seja sua intenção, o que quer que você esteja tentando comunicar, clareza é o que vai ajudá-lo a chegar lá [...] Para mim, diz respeito a este aspecto principal: o que você está querendo dizer? Está expressando isso bem?”.
Não por acaso, uma das primeiras obras de Brubaker, a policial The fall (2001), foi ilustrada por Lutes. Os dois são amigos de longa data da cena de quadrinhos da cidade de Seattle.
Pergunto a Brubaker o que ele considera mais importante durante a criação de seus trabalhos e ele explicita sua clareza: “Contar uma boa história, provavelmente. Manter os leitores envolvidos e dar a eles uma história que valha a pena e todo um pacote que valha seu dinheiro. Eu amo a sensação tátil de livros e quadrinhos, bem como as histórias que eles contam”.
Três perguntas para… Bruno Guma, autor de Pile up e Pequena Green
Convidei para a seção de entrevista que fecha a Sarjeta de julho o quadrinista Bruno Guma, autor dos álbuns independentes Pile up e Pequena Green. Ele prevê, ainda para 2021, o lançamento de Solo, HQ em parceria com Yuri Moraes, por editora a ser anunciada em um futuro próximo.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
Gosto muito de revistas como Weird comix, do Fábio Vermelho; Cintaralha comix, do Kainã Lacerda; Vira-lata, do João B. Godoi; Revista pé-de-cabra; e Banda. É uma tentativa de reviver a dinâmica das revistas, tem algo de bonito nisso, é como dar murro em ponta de faca, e os formatos são algo muito próprio dos quadrinhos alternativos. Também gosto das produções para o Instagram, acho que muitos quadrinistas estão sabendo usar bem essa mídia hoje.
O que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Acho que o melhor do quadrinho não está no mainstream. O que me interessa mesmo é o que chamam de histórias do cotidiano. Gosto de ver as relações entre os personagens, situações anticlímax, histórias autobiográficas. Para mim, quanto mais banal, melhor. Se tiver um final mal resolvido, ainda melhor. O Seth disse em uma entrevista que o que ele queria fazer era criar uma história sem conflito nenhum quando fez Clyde fans. Acho que é disso que gosto em uma história hoje.
Qual é a sua memória mais antiga da presença de quadrinhos na sua vida?
Aquela resposta clássica: Turma da Mônica quando era pequeno. Depois, na adolescência, super-heróis, mas sempre me pareceu um inferno tentar acompanhar uma história em tantas edições, sempre pegava pela metade e não entendia nada do que acontecia. Um dia, meu tio me deu uma parte da coleção de quadrinhos dele e no meio tinha Chiclete com banana, Piratas do Tietê, Circo e Animal; essas abriram meu horizonte pela falta de papas na língua, e a identificação foi imediata.