por Ramon Vitral

 

Entrevistar o quadrinista e jornalista maltês Joe Sacco me fez pensar sobre minha trajetória e minhas práticas como jornalista especializado em histórias em quadrinhos. Ele é autor de Palestina, maior clássico do gênero de jornalismo em quadrinhos e recém-republicado por aqui pela editora Veneta. Suas reportagens são ambientadas principalmente em zonas de conflito, como o cenário dos ataques do Estado israelense à população palestina e a Guerra da Bósnia nos anos 1990. Publiquei a íntegra dessa entrevista no meu blog e escrevi sobre Palestina para a Folha de S.Paulo.

Página de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta. Imagem em preto e branco. O desenho mostra o rosto de várias pessoas, destacando algumas delas.
Página de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta (imagem: divulgação)

Sempre me chamou atenção no trabalho de Sacco sua opção por contar suas histórias a partir da perspectiva civil. Não há espaço para relatos oficialistas ou contrapontos governamentais. Perguntei a ele sobre essa opção. Sacco me respondeu:

“Para ser honesto, é algo meio acidental, porque quem sabe o que eu teria sido se tivesse saído imediatamente, quando me formei em jornalismo, quem sabe que tipo de jornalista eu seria, se tivesse ido direto para a grande mídia. Felizmente, eu não tinha dinheiro, nada por trás de mim, nenhuma grande instituição me dando apoio. Então, sempre que eu ia aos lugares, eu meio que encontrava meu próprio caminho. E a única maneira de encontrar meu próprio caminho foi viver com muito pouco”.

Quadro de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta. Imagem e preto e branco que mostra um personagem da história andando em uma rua.
Quadro de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta (imagem: divulgação)

“Nunca pude pagar para me hospedar em hotéis com os outros jornalistas; eu tive que morar ou ficar em albergues, ou tive que alugar um quarto na casa das pessoas. Então você começa a ver as pessoas nesse nível. Eu não estava passando meu tempo com outros jornalistas. E não tenho nada contra isso necessariamente, mas eu simplesmente via uma perspectiva diferente, e essa se tornou minha perspectiva. E sou muito grato por isso”, continua o autor.

“Quando você está se misturando com as pessoas, quando você está frequentando os cafés delas, quando você não tem grana para tomar um drinque no Holiday Inn ou seja lá o que for, você está em uma seara diferente. E esta seara meio que se torna aquilo em que você se interessa, aquilo a que tem acesso. E isso se torna uma história sobre os civis, sobre as pessoas que não têm nada, porque você meio que não tem nada.”

Quadro de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta. Imagem em preto e branco.
Quadro de Palestina, HQ de Joe Sacco publicada pela editora Veneta (imagem: divulgação)

Escrever profissionalmente sobre histórias em quadrinhos não envolve perspectivas financeiras grandiosas. Sou muito grato pelas minhas parcerias com as várias organizações e grupos de comunicação que publicam meu trabalho, mas escrever sobre HQs só ajuda a pagar as contas. E hoje minha paixão pelo tema talvez seja uma justificativa menor. Diz mais respeito à prática, à insistência, à busca pelo meu próprio caminho, pela minha seara pessoal e por uma melhor compreensão dos meus interesses.

Nunca cheguei perto de um ambiente de conflito como os cenários apresentados por Sacco em suas HQs. Ainda assim, para mim, jornalismo é serviço público, seja sobre guerra ou sobre histórias em quadrinhos. Sem concessões.

Jornalismo não permite inclusão de links para compra de uma obra em matérias ou críticas focadas nesse mesmo título. O nome disso é publicidade. Jornalismo também não dá brecha para reproduções imponderadas de discursos oficiais. E divulgação é consequência, fruto de bom jornalismo, jamais o objetivo maior.

A infantilização crescente da produção de conteúdo sobre histórias em quadrinhos no Brasil passa pela adoção de discursos e práticas publicitárias por parte de quem fala e escreve sobre o assunto. A busca por cliques fáceis e por vendas imediatas esvazia discursos e coloca em xeque a credibilidade de seus emissores. Servem apenas para a difusão da vacuidade colecionista, consumista e ostentatória que se apropria do mercado de HQs.

Já disse em mais de uma oportunidade que segui pelo jornalismo em busca dos grandes encontros. Queria conversar com pessoas que admiro. Minha admiração por quadrinistas se sobrepôs às outras e as coisas acabaram acontecendo. Hoje meu trabalho diz cada vez mais respeito à prestação de serviço. Tento explicar por que uma ou outra obra merece a sua leitura, como ela dialoga com o mundo e por que determinado artista merece a sua atenção.

Quase sempre pergunto aos meus entrevistados qual é a memória mais antiga que eles têm da presença de quadrinhos na vida deles, mas eu mesmo não lembro quando li uma história em quadrinhos pela primeira vez. Elas sempre estiveram presentes na minha vida. No entanto, escrever profissionalmente sobre HQs não era um objetivo, foi meio acidental.

Lá no meu começo escrevi sobre política, cidades, esporte e educação. Passei alguns anos escrevendo sobre cinema. Escrever sobre HQs beirava o escape, acontecia de vez em quando, no meu tempo livre. Acabou virando a atividade principal. Mas gosto de acreditar que sempre busquei uma perspectiva específica: a minha perspectiva.

Página de Cleo, HQ de Gustavo Nascimento. Imagem em preto e branco que mostra uma história dividida em dois quadros.
Página de Cleo, HQ de Gustavo Nascimento (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Gustavo Nascimento, autore de Cleo

Escrevo a 23ª edição da Sarjeta com a webcomic Cleo em seu terceiro post. Obra de Gustavo Nascimento, o título é uma boa surpresa de 2021 e seu autore é uma das grandes revelações do ano para mim. Você lê Cleo de graça no Instagram. Convidei Nascimento para responder às três perguntas fixas que fecham cada edição da coluna.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Acho interessante ver como as webcomics têm ganhado espaço na cena de quadrinhos, fico feliz em ver pessoas com narrativa e desenho autorais conseguindo vingar como autores independentes – Arlindo [obra de Luiza de Souza] e Boa Sorte [obra de Helena Cunha] fazem sucesso por um bom motivo. Também gosto da escrita de diário. Apesar da autoficção não ser um gênero recente, acredito que a cena brasileira tem oferecido quadrinhos abstratos, poéticos e jornalísticos impecáveis nesse gênero.

O que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Sempre gostei e sempre vou gostar de boas e longas novelas. Tenho lido Alison Bechdel, Marcelo D’Salete, Ai Yazawa, Rutu Modan, Inio Asano... Uma boa mistureba. O que mais tem me animado nas histórias em quadrinhos é ver que muitos autores são artistas multidisciplinares. A sensação no fim de uma leitura de quadrinho é a de que aprendi com professores que sempre quis ter na minha graduação de artes visuais.

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Fui alfabetizado com Turma da Mônica e o quadrinho do Tio Patinhas, haha. Minha mãe também gostava de quadricular desenhos das tiras (aquelas que ficavam no final dos quadrinhos da Turma da Mônica), ampliá-las para uma folha de sulfite e depois para telas de tecido. Nunca entendi muito bem o porquê, talvez um hobby? Eu acabava ficando com as folhas de sulfite para colorir e peguei o gosto pelo desenho nessa época. 

Mais tarde, com uns 7 anos, comecei a colecionar mangás e fiquei familiarizado com a compra de quadrinhos direto de bancas de jornal – coisa que sinto muita saudade de fazer.

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