por Ramon Vitral

 

Quando a quadrinista Helô D'Angelo se mudou para o prédio no qual vive atualmente, o Brasil ainda estava longe de suas mais de 380 mil mortes por covid-19. Era março de 2020, pouco antes do início das recomendações de isolamento social decorrentes da pandemia do novo coronavírus. De sua nova moradia, um apartamento no primeiro andar de um prédio situado no pé de um morro, reclusa em casa, a autora passou a observar as interações e rotinas dos moradores do edifício em frente ao seu. Ela compara sua janela ao camarote de um anfiteatro.

Pouco mais de um ano depois, enquanto o Brasil caminha para seus 400 mil óbitos por covid-19, D’Angelo prometeu para setembro o lançamento de Isolamento, álbum de 200 páginas com histórias inspiradas em suas observações. A obra reunirá as duas primeiras temporadas da série homônima, publicada semanalmente pela artista em suas contas no Twitter e no Instagram. O projeto de financiamento coletivo que vai bancar a impressão do livro alcançou em poucos dias os valores estabelecidos por ela - mas segue no ar, em busca de novos leitores, até 31 de maio de 2021.

“As fofocas que ouvimos por aí são inspiradoras e material para criarmos histórias mais verossímeis”, me diz a autora sobre seus hábitos de observação dos moradores à sua frente. “E eu sempre tive ouvidos atentos: gosto muito de ouvir os bafafás na rua, no ônibus, e especialmente de vizinhos. Fico imaginando o que aconteceu ali e frustrada por saber que nunca vou descobrir de fato. Então, nesse sentido, acho que para além da inspiração eu gosto de tecer finais para essas histórias que ouvimos pela metade”.

Escrevo esse texto com Isolamento atualmente na 23ª parte de sua segunda temporada, sendo cada parte equivalente a uma página de sua futura versão impressa - a primeira temporada, iniciada em 28 de março de 2020, chegou ao fim em outubro do ano passado, após 30 “páginas” virtuais.

Os leitores de Isolamento ocupam o lugar de D’Angelo em seu camarote e acompanham os muitos dramas e os momentos ocasionais de alegria dos moradores de 12 apartamentos de um prédio. As 12 varandas do imóvel servem de palco para os personagens da autora - variações, adaptações e misturas de seus vizinhos de prédio e também de usuários de redes sociais. O resultado é um retrato despretensioso, melancólico e bem-humorado de diferentes núcleos da sociedade brasileira e suas atitudes, contradições e vivências durante a pandemia.

Os protagonistas iniciais da HQ são: um jovem casal em crise por suas posturas antagônicas frente à pandemia; um jovem casal em acordo frente à pandemia; uma influencer; uma moça solitária se acostumando com o home-office; um idoso negacionista; um casal focado em sua vida sexual; um pai e sua filhinha se adaptando à rotina em casa; um casal aprendendo a viver em isolamento; um neto empenhado em convencer a avó a não sair de casa; dois amigos que moram juntos; uma mãe solo com seu bebê recém-nascido; e uma jovem com seu cachorro falante.

D’Angelo me conta ter se adiantado na produção da primeira temporada, desenhando tudo de uma vez só em pouco tempo. No entanto, com o início da segunda temporada, no fim de 2020, e uma série de ocorridos na sociedade brasileira, ela precisou readequar sua produção para retratar o impacto desses eventos na vida de seus personagens - como o início da vacinação no Brasil e o começo da atual edição do Big Brother. Ela agora desenvolve roteiros mais simples para cada varanda, só aprofundados conforme a realidade avança.

“Algumas coisas eu mudo ao longo do caminho: desenhei a vovó, que mora com o neto, sendo vacinada; contaminei o Marcelo, morador da cobertura que não para de dar festas na pandemia; desenhei o esperado parto de uma das personagens... Pra mim, é uma forma nova de fazer HQ: em geral, tenho um roteiro pronto e faço poucas mudanças ao longo das postagens. Tem sido estranhamente libertador”.

D’Angelo admite que também acaba influenciada por seus “vizinhos” de Twitter e Instagram: “Acredito que muito das histórias vindas das redes se derrama para Isolamento. Principalmente as histórias mais gerais, como o sentimento das pessoas naquele momento específico - um período de muitos panelaços, ou um período de recorde de mortes, por exemplo. Para citar Drummond, acho que são vários sentimentos do mundo que desenho na HQ, e como o mundo está restrito às janelas (reais ou virtuais), acabo usando o material que chega para mim”.

Já entre as obras que a influenciam ela cita o álbum Aqui, clássico moderno de Richard McGuire (“Li no começo da pandemia e influenciou bastante nesse sentido, de [apresentar] uma visão poética de um mesmo ponto de vista”); Jimmy Corrigan, O Menino Mais Esperto do Mundo, de Chris Ware (“Me marcou pelo cuidado com os mais minúsculos detalhes”); e os filmes Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, e Delicatessen, de Jean-Pierre Jeunet (“O primeiro, obviamente, pelo formato, e o segundo pela diversidade de pessoas convivendo num mesmo espaço e produzindo alguma doçura no meio de canibalismo e alguma praga ambiental pós-apocalíptica”).

Ela também cita o disco Fetch the Bolt Cutters, de Fiona Apple (“Ela lançou durante a pandemia e, ao fundo, ouvimos vários sons de sua casa, incluindo seus cachorros”).

Apesar de ter um término em vista para Isolamento em sua 40ª atualização da segunda temporada, D’Angelo deixa em aberto a possibilidade de estender seus planos por conta da falta de perspectiva para o término da pandemia no Brasil.

Enquanto isso, a quadrinista segue em sua rotina diária com a HQ. Ela começa o dia com uma caminhada em uma praça perto de casa, toma um sol por alguns minutos, organiza a cabeça, volta para casa, toma um banho, adianta outros trabalhos e depois investe em Isolamento.

“Quando acontece alguma coisa específica - recorde de mortos, vacina aprovada pela Anvisa -, eu inverto, porque a urgência é maior, e desenho logo a página”, diz a autora. “Nas páginas em si, a coisa é bem mecânica: uso um mesmo arquivo do Photoshop com as partes do layout (portas, janelas, grades das varandas) separadas em camadas, e já tenho uma paleta definida. Eu faço o traço, depois a cor e a sombra, e por último adiciono os balões, exporto o arquivo e é isso - leva aí umas 3h para finalizar cada episódio”.

Entre um café e outro, ela olha para a janela, sentada em seu camarote, observando o anfiteatro à sua frente, no aguardo de inspirações. Para ela, a produção de Isolamento é uma experiência quase terapêutica, graças à possibilidade de encarar em segurança pessoas que a incomodam no “mundo real”, como o idoso reacionário negacionista da pandemia. Ela diz se sentir bem desenhando as facetas aparentemente contraditórias do personagem.

“Me faz sentir um pouco mais de calma sobre a situação geral do mundo. Por mais que eu ainda sinta bastante raiva de pessoas como ele. E isso se repete com muitos moradores do predinho. A coisa se torna uma espécie de meditação sobre aquilo que não posso mudar e a preciosidade que existe, ainda assim, no mundo”. 

Três perguntas para… Jéssica Groke, autora de Me Leve Quando Sair, Babilônia, Piracema (coleção da Tabu) e co-organizadora da coletânea 11:11

A convidada de abril da seção que encerra a Sarjeta é a quadrinista Jéssica Groke. Ela é co-organizadora da coletânea 11:11, também em busca de apoiadores em sua campanha de financiamento coletivo, com previsão de lançamento para agosto de 2021. Além de uma HQ de Groke, o álbum de 108 páginas também contará com histórias de terror de autoria de Diego Sanchez, Lalo e Felipe Portugal.

Arte em preto e branco de Jéssica Groke presente no álbum 1111.
Arte de Jéssica Groke presente no álbum 1111 (imagem: divulgação)

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

O que vejo de mais especial na cena nacional hoje é que os quadrinistas brasileiros continuam insistindo em fazer quadrinhos, hahaha. Se essa paixão não é algo especial eu não sei o que seria... Galera que está juntando forças para se expressar, para contar história... mesmo estando no olho do furacão. 

O que mais te interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

TUDO! Haha. Qualquer quadrinho muito bom que faça eu ler de pé... Aquele que não dá pra soltar, com a narrativa tão massa que me faz pensar "Meu deus, eu queria ter feito isso" ou "Meu deus, coitado de quem fez isso... que trabalhão". Me interesso por tudo, essa pergunta é especialmente difícil pra mim, qualquer coisa que pareça boa eu quero ler, não tenho filtro, haha.

Qual a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Todo mundo já deve estar cansado dessa resposta..., mas é isso, lá vai: eu, com uns 8 anos, na sala de espera da dentista lendo.... gibis da Turma da Mônica! Haha. Gostava bastante do Chico Bento... Mas minha parte favorita de todas era a tirinha de três quadros que tinha no final de cada edição.

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