por Daniel Galera

 

Em Umurangi generation, você é um fotógrafo contratado para registrar o fim do mundo. No começo, isso não estará tão claro. O primeiro trabalho o coloca na cobertura de um prédio com vista para o Monte Mauao, numa península neozelandesa, onde jovens ouvem música, dançam, fumam encostados na parede e observam as gaivotas e o crepúsculo. As paredes estão grafitadas com desenhos coloridos, e skates ficaram jogados pelos cantos. Você tem uma câmera na mão e certas instruções: fotografar um grupo de pássaros, o Monte Mauao, uma câmera descartável, a palavra “MIX”. Mas há algo ominoso no ar, algo difícil de identificar. A cena parece paralisada, os jovens têm um ar de quem está distraído e entediado diante de uma ameaça iminente. O sinal mais claro, talvez, são os caças de combate que cruzam o céu em certos momentos, riscando a música eletrônica de lounge com o som de suas turbinas.

Na segunda fase do game, o seu segundo job, as evidências de que estamos fotografando um cenário de crise ficam escancaradas. A primeira coisa que vemos é um soldado das Nações Unidas empunhando uma metralhadora diante de um aviso riscado grosseiramente na parede: “Todos os civis devem passar por triagem ao chegar”. No chão, caixas de munição e kits de primeiros socorros. Estamos novamente no topo de um prédio, mas desta vez chove, e a paisagem não passa de uma névoa cinza. Há uma profusão de painéis solares em toda parte. A turma de jovens segue presente, agora empoleirada nas tábuas desse quartel improvisado, observando com ar sarcástico os soldados armados, que também aproveitam as paredes como meio de expressão, desenhando caveiras com facas nos dentes e escrevendo mensagens como “Eu só queria um sentido na vida, mas aqui estou”.

Enquanto procura obter as fotografias que lhe foram encomendadas, você provavelmente se pergunta o que está se passando a seu redor. E provavelmente tira outras fotos, levado por suas próprias observações e inquietações ou por seu senso estético (algumas das fotos que tirei enquanto jogava ilustram este texto). O jogo recompensa cada foto com um valor em dinheiro, mas os critérios de julgamento são evidentemente aleatórios, no que aparenta ser um convite proposital à livre expressão. A câmera na mão capta pistas, mas também as produz, conectando a sua sensibilidade com as pessoas e os cenários que o cercam.

Umurangi generation é um jogo de fotografia no qual você opera uma câmera para produzir instantâneos de um cenário virtual, mas é também uma obra de arte sobre gerações de jovens aos quais resta pouco a não ser assistir ao fim dos tempos. De estágio em estágio, o jogo vai construindo um mundo que mescla o real e o fantasioso, um mundo ora demasiadamente reconhecível, ora demasiadamente estranho, mas que sem dúvida está em seus momentos finais, sucumbindo a variadas forças destrutivas e interligadas. Soa familiar?

O poder sugestivo de Umurangi generation está intimamente ligado ao fato de ser um jogo, aos seus aspectos de gameplay. Do início ao fim, não há texto nem diálogos, exceto as instruções mais básicas de como jogar e de quais são os requisitos para passar de fase. O ponto de vista é em primeira pessoa, e a câmera na mão já estabelece de cara as regras de interação entre jogador e mundo virtual: estamos aqui para explorar, percorrer, olhar, enquadrar, compor, interpretar, mas sempre a uma certa distância, apartados pelo recuo imposto pela lente. Os gráficos são simples e em baixa resolução para os padrões atuais, mas transbordam estilo, detalhes narrativos, atmosferas inquietantes.

Nós nos movemos pelo cenário, mas o cenário quase não se move: algumas figuras realizam gestos sem mudar de posição, um gato abana o rabo, um trem se desloca por uma paisagem apocalíptica. Cada estágio é como um diorama, em grande parte inerte, mas cuidadosamente composto para criar imersão e nos dizer coisas que importam. Você, o fotógrafo, se move pelo diorama como um investigador por um sonho capturado em gráficos digitais. Você é um fotógrafo percorrendo fotos tridimensionais para extrair delas fotos bidimensionais. A sensação é curiosa, como se estivéssemos ao mesmo tempo distanciados das cenas e contribuindo ativamente para sua criação.

A narrativa esboçada pelo jogo parece ser propositalmente aberta, com colagens quase irônicas de elementos: os soldados das Nações Unidas, os jovens que dançam e grafitam enquanto o mundo queima à sua volta, monstros oceânicos que referenciam o gênero japonês kaiju, robôs gigantes, pandemias (há uma fase em que todos estão de máscara facial), a cultura urbana jovem e globalizada. Mas é percorrendo essa sucessão de referências e visões quase lisérgicas que tomamos conhecimento, pouco a pouco, sem palavras, mas com eficiente imersão ambiental, do forte teor de protesto político de Umurangi generation. O jogo comenta e ataca a crise ambiental causada pelo homem, a militarização, o autoritarismo, o fascismo, o neoliberalismo e o colonialismo.

Os jovens anônimos que protagonizam o game são uma geração herdeira de um mundo que desmorona diante das contradições e injustiças de uma certa noção de progresso. Impotentes, eles observam, fumam, dançam, bebem, expressam sua dor, raiva e frustração em grafites, pichações e homenagens aos familiares e amigos que morreram pelo caminho. Uma vez que o jogador se dá conta de tudo isso, as pistas e mensagens pululam pelos cenários: estão nos altares com velas e fotografias, nos cartazes de filmes que debocham do cinema imperialista estadunidense, no medo dos soldados que disparam contra monstros invencíveis, no rosto ensanguentado de outro soldado que viaja de trem com garotos e garotas refugiados, na silhueta distante de robôs militares gigantes disparando contra o horizonte vermelho-sangue.

É possível extrair todas essas percepções apenas jogando o game em si, mas é mais provável que o jogador se beneficie de obter algumas informações sobre o autor de Umurangi generation (é um jogo independente e feito por apenas uma pessoa). Tali Faulkner é maori e, conforme conta nesta entrevista, concebeu o jogo inicialmente para ser apenas um simulador de fotografia que pudesse ajudar suas sobrinhas a aprender a usar uma câmera. Durante o desenvolvimento, porém, Faulkner foi impactado pelos incêndios que devastaram a Austrália na virada de 2019 para 2020. Depois veio a pandemia. O game se tornou um meio para que ele expressasse sua raiva do colonialismo que oprimiu seu povo e sua cultura, dos negacionistas que insistiam que esses desastres nada tinham a ver com mudança climática ou destruição do meio ambiente, dos regimes de inclinação fascista que naquele momento, e ainda agora, afundavam a humanidade ainda mais em delírios racistas, colonizadores e extrativistas.

O posicionamento político explícito é algo raro na cena dos games. A maioria dos desenvolvedores opta pela neutralidade política em seus jogos, embora essa neutralidade, sabemos bem, não seja lá tão neutra. Jogos populares de grandes estúdios, tais como a série Uncharted, são às vezes questionados pelo equilíbrio hipócrita que procuram alcançar: Nathan Drake, seu protagonista, é um cara legal, exceto quando termina a conversa e ele precisa assassinar dúzias de pessoas para roubar um artefato cultural em algum país em desenvolvimento. Em anos recentes, a batalha por maior diversidade humana e social no panorama dos jogos eletrônicos rendeu frutos, mas em muitos sentidos ainda predominam conteúdos imperialistas e machistas. “Se você ama a colonização, pode jogar qualquer jogo e simplesmente praticá-la”, dispara Faulkner, do ponto de vista de alguém que conhece bem os efeitos da colonização na Austrália e na Nova Zelândia. Talvez soe como uma diatribe, até que você começa a pensar em todos os games que jogou na vida e que envolviam chegar a uma terra desconhecida ou habitada por outros povos/criaturas para aniquilar todo mundo e tomar conta do pedaço, por um motivo ou outro.

Umurangi generation é permeado da combinação de raiva e impotência que marca uma juventude que descobre ter vindo ao mundo num momento em que as mais megalomaníacas promessas do homem se revelam intrinsecamente injustas ou insustentáveis. Tentar se divertir um pouco e abraçar as pessoas queridas parece ser o que resta aos figurantes desses cenários apocalípticos, e somos convidados a pensar se essa inação resignada é realmente o que resta e se nós, como operadores da câmera que registra a realidade, podemos contribuir de algum modo para que as coisas melhorem ou sejam evitadas. A julgar pelas últimas fases, Faulkner não deve acreditar em soluções revolucionárias ou heroicas. No entanto, talvez haja algum paliativo em documentar e compartilhar o que se passa, em expressar o que sentimos enquanto o mundo desemboca em suas crises, em simplesmente estarmos juntos, solidários, próximos, de cabeça erguida, nesses dioramas da civilização sucumbindo à catástrofe. E talvez, só talvez, fora do jogo possamos nos fortalecer na convicção de que a história pode ser outra, de que será possível sobreviver e viver entre escombros, e de que gerações futuras subirão ao topo do prédio em tempos um pouco mais harmoniosos.

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