por Da Quebrada Pro Mundo com Alexandre Ribeiro

 

Era julho de 2009. Eu tinha 11 anos de idade. Época perfeita para não entender o que acontece e, ao mesmo tempo, compreender que cada detalhe pode marcar uma vida toda... Foi em julho de 2009 que eu entrei no quarto sem bater na porta.

— Pai, tá tudo bem?

Achei estranho ver a pessoa mais forte que conhecia tão vulnerável.
Debruçado sob um balde entre as pernas, e o fundo todo ensanguentado.

É verdade, o senhor sempre se importou com a gente, eu sei.
Fez questão de segurar a tosse, e, ao ouvir sua voz grave, eu me tranquilizei.

— Tá tudo bem, Miguel. É só uma gripezinha...

“Gripezinha”...

Se eu soubesse o que vinha pela frente, não te deixava nem passar pela porta.
Para eles, você era só mais um número neste mundo onde só número importa.

Só mais 1 entre os 500 mil no mundo. Virou estatística.
E do H1N1, em 2009, meu pai foi uma das vítimas.

Só mais um RG no sistema, só mais um funcionário para o patrão.
Só mais um trabalhador no perrengue,
Para o filho não passar pela mesma situação.

Só mais um segurança do bairro chique.
Só mais um favelado de pele escura.
Só mais um... Só mais um... Só mais um...

PARA!!!

Para nós, nunca será “só mais um”.
Meu herói tem nome, dignidade, história.

Antenor Gomes Barros Filho,
Por você, a economia do mundo inteiro eu daria
Só para ter a chance de mudar esse “só mais um, só mais um...”.
Para ter “só mais um dia”.

“Gripezinha”...

Como pode o “inofensivo” transformar o pulmão em papel?
Quando entrei no quarto aquele dia, nós encaramos a morte.
Eram pedaços do pulmão que caiam do céu.

Da boca,
De um homem que não tinha opção, a não ser erguer a cabeça e continuar.
Poucas horas depois de tossir sangue, lá estava ele de uniforme, tinha que ir trabalhar.

O segurança que atravessava a cidade
Para proteger o patrimônio de gente rica.
Dessa gente que volta de viagem
E não traz lembrança, traz pandemia.

Um vírus que nasceu na Califórnia, mas tentaram dizer que era mexicano.
Chegou em um favelado em Diadema, que no Morumbi só estava trabalhando.

“Gripezinha”...

A situação é complicada para o brasileiro.
Até eu acho que um vírus é tranquilo
Comparado a esse mundo doido.
Só que a questão em foco não é a doença
Mas, sim, a desigualdade, que deixa tudo mais venenoso.

Enquanto vários morriam, os famosos apareciam na TV
— Era só “uma gripezinha”, eu me recuperei em pouco tempo...
Pouco tempo...
Quem matou meu pai não foi o vírus.
Foram as 12 horas esperando atendimento.

Esquecer o valor de uma vida
É esquecer o valor de todas elas.
Esse papo aqui é reto:
Abre o olho e se cuida favela.

Eles têm condição financeira, fazem quarentena sem mexer na poupança.
Para eles, é só mais um.
Para nós, uma família, uma esperança...

Não cai nesse papo de “gripezinha”.
O menosprezo é o jeito do patrão.
O que ele quer, na verdade, é perguntar:
— Ei, você, “só mais um”! Quem da sua família pode morrer
Para nossa economia não parar?

Em memória de Antenor Gomes Barros Filho, meu pai, vítima do H1N1 em 2009 (imagem: arquivo pessoal)
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Na imagem, há uma placa que compõe o projeto "Stolpersteine". Nessa placa, colocada entre pedras do asfalto, existem algumas informações gravadas em alemão: a expressão "aqui viveu", além do nome da vítima e data de nascimento, por exemplo.

Stolpersteine e a memória que fica

Alexandre Ribeiro debruça-se sobre o projeto do artista alemão Gunter Demnig e reflete sobre o processo de ressignificação de narrativas