Carniça e a Blindagem Mística é brutal, crítica e lírica como as melhores HQs de Shiko
24/01/2021 - 10:00
por Ramon Vitral
Brutalidade é o que espero dos trabalhos do quadrinista paraibano Shiko. Foi o que encontrei em Carniça e a Blindagem Mística – Parte 1: É Bonito o Meu Punhal, sua mais recente HQ. São 48 páginas de lápis, nanquim e aquarela para narrar uma história sobre vida e morte, pessoas agindo por instinto em prol da própria sobrevivência.
Shiko conciliou a trama do quadrinho com suas pesquisas sobre as atividades do cangaço no início do século XX. Ele abre Carniça nos anos 1960, adaptando a crônica do poeta, dramaturgo e cineasta Ruy Guerra publicada no jornal O Estado de S. Paulo em 1993 que narra seu encontro com o policial militar pernambucano José Osório de Farias, também conhecido como Coronel Rufino ou O Matador de Cangaceiros, famoso por ter assassinado Corisco, membro lendário do bando de Lampião.
Rufino não hesita em confirmar as várias mortes cometidas por ele. Porém, questionado se praticou muitas torturas, ele diz: “Homem a gente mata. Sangra. Mas tocar o rosto de um homem, só sua mulher e o barbeiro têm direito de tocar”. É uma introdução que serve de aviso: no cangaço, a lógica era matar ou morrer. O mesmo vale para Carniça.
Passada a introdução vem a história principal da HQ, no Alagoas de 1921. Mas espera aí, já volto na trama. Porque encontrei nela elementos presentes em vários dos trabalhos prévios do Shiko e acho válido tratar um pouco dessas obras para você conhecer melhor esse autor. Também foi minha deixa para reler todas as obras dele que tenho por aqui.
Comecei com a coletânea independente Marginal (2006), da editora Marca da Fantasia, que reúne algumas das histórias de Shiko para o zine homônimo publicado por ele no fim dos anos 1990. Ele apresenta um traço um pouco mais caricato do que o atual, mas já tratando de muitos dos temas que predominam em seus trabalhos recentes. O autor vai do policial ao erótico, passando por uma adaptação do conto O Mendigo de Almas, do italiano Giovanni Papini.
Depois fui para o frenético e poético Blue Note (2007), obra independente em parceria com o roteirista Biu e difícil de encaixar em um único gênero. É um fluxo de consciência com ares de jam session melancólica em que histórias trágicas emendam em outras pesarosas, além de uma ou outra sobre dor de cotovelo. E Shiko experimenta nas diagramações e nos designs de páginas como em nenhum outro trabalho dele que li.
Com O Quinze (2012), adaptação da obra de Rachel de Queiroz publicada pela editora Ática, tive meu primeiro contato com as cores aquareladas de Shiko, aqui em uma paleta predominantemente alaranjada. É um quadrinho sem excessos, objetivo e eficaz em sua missão de contrastar dramas, privilégios e prioridades de diferentes classes sociais no sertão do Ceará em 1915. Vejo a mesma eficácia na infantil Piteco – Ingá (2013), parte da coleção Graphic MSP, publicada pela Panini Comics, na qual autores apresentam suas versões para os personagens de Mauricio de Sousa.
Reli O Azul Indiferente do Céu, publicada em 2013 pela Marca da Fantasia e republicada em 2015 pela editora Mino. Shiko já havia transformado em HQ sua versão para os instantes finais da vida do médico e ativista pelos direitos humanos colombiano Hectór Abad Gomez, assassinado em Medelim em 1987. Uma primeira versão dessa história consta na coletânea Marginal, mas O Azul Indiferente do Céu mostra a mesma trama em mais páginas, com mais nuances e em preto e branco com aguadas de cinza – talvez o estilo de desenho que mais gosto do autor.
Na curtinha e erótica Talvez Seja Mentira (2014), em parceria com o roteirista Bruno R., ele ilustra duas histórias protagonizadas por uma mulher que registra seus encontros amorosos em formato de histórias em quadrinhos.
Lavagem (2015) talvez seja o trabalho mais conhecido de Shiko. Terror firmado na realidade sobre uma mulher no limite de seu relacionamento com o marido abusivo e assombrada por suas crenças religiosas. Lançada pela editora Mino, apresenta o preto e branco de mais alto contraste do autor para narrar sua trama mais violenta.
As duas edições independentes de A Boca Quente, lançadas em 2015 e 2016, imaginam uma versão adulta e vingativa da personagem de Natalie Portman no filme O Profissional (1994) em um futuro distópico com jeito de Blade Runner (1982). Considero o trabalho mais divertido de Shiko. Torço para que um dia saia a terceira edição. De 2016 também reli as seis adaptações dele para poesias do poeta pernambucano Miró da Muribeca presentes na coletânea Tô Miró, publicada pela A Casa do Cachorro Preto.
Aí reli Três Buracos (2019). Uma história de roubo protagonizada por dois irmãos assombrados pelo pai e por uma pedra preciosa escondida por ele antes de morrer. Conta com o mesmo preto e branco com aguadas de cinza de O Azul Indiferente, mas mais bruto e brusco. Um western brasileiro. O ritmo, os enquadramentos e as cenas de ação lembram os filmes de faroeste do cineasta italiano Sergio Leone, mas aqui é uma HQ ambientada em um garimpo no interior da Paraíba.
O impacto de Três Buracos em mim foi maior hoje, mais de um ano após seu lançamento. Equiparo essa obra à Lavagem como as melhores e mais relevantes HQs de Shiko. Já escrevi sobre o diálogo das HQs de Marcello Quintanilha com o cinema neorrealista italiano. Também vejo esse paralelo nos quadrinhos de Shiko, por seus retratos de realidades socioeconômicas injustas e quase sempre frustrantes.
Volto à Blindagem Mística. A HQ apresenta elementos característicos de todos esses trabalhos prévios de seu autor. É uma publicação independente, ambientada no Nordeste, com crítica social, protagonismo feminino, lirismo e violência intensa, com Shiko no ápice de seu domínio técnico. A trama principal mostra uma jovem que vê sua família ser assassinada por um grupo de militares à caça de cangaceiros e que ganha uma sobrevida após um resgate inesperado.
Além das referências de jornais, Shiko teve como principais fontes bibliográficas os trabalhos de Frederico Pernambucano de Mello, creditado como o maior especialista da história do cangaço e autor de Estrelas de Couro: a Estética do Cangaço (Escrituras), e Adriana Negreiros, autora de Maria Bonita: Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço (Objetiva). Pode ser muita coisa para 48 páginas, mas tudo está muito bem distribuído, não há nada fora do lugar, não há excessos.
Aguardo ansiosamente abril e o lançamento da segunda edição de Blindagem Mística. Mantida a intensidade desse primeiro número, ao seu final a série poderá constar entre os trabalhos mais brutais e memoráveis de Shiko até aqui.
Três perguntas para… Cinthia Saty Fujii, autora da série Maternidade Sincera e da segunda temporada de Charlote Blues (Bruttal)
Na entrevista que fecha a 16ª edição da Sarjeta, uma conversa com a quadrinista Cinthia Saty Fujii, autora da série Maternidade Sincera e responsável pela segunda temporada da série Charlote Blues para o selo Bruttal.
O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?
O crescente número de quadrinistas, principalmente os que não são homens brancos, que consequentemente trazem uma diversidade narrativa muito maior. Cresci me identificando muito mais com personagens masculinos e escritos por homens e depois percebi que era porque muitos escrevem mulheres com zero profundidade e muitas vezes caricatas; os caras eram sempre mais legais, principalmente os vilões e isso me fazia não gostar das personagens femininas. E também me anima muito ver quadrinhos atuais que estão buscando inspiração dentro do Brasil, seja na arquitetura, seja na comida, na música ou nas características linguísticas de algum lugar.
O que mais a interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?
Gosto muito de acompanhar o que tem saído no cenário nacional. Quando tinha feira eu vendia meus quadrinhos para poder voltar com a mala cheia de quadrinhos do pessoal. Queria poder comprar mais coisas, mas é lindo ver essa produção aumentando cada dia mais. Um tipo de quadrinho que gosto muito são os que têm humor ou drama (ou os dois juntos). Mas também tenho buscado conhecer mais quadrinistas mulheres (nacionais e internacionais) e pegando para ler as que não são tão atuais, mas que eu não tinha lido ainda, como a Marjani Satrapi e a Alison Bechdel.
Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?
Quando eu era criança morei com minha mãe e meu irmão na casa dos meus avós, junto com todos os irmãos e irmãs da minha mãe. Em algumas noites uma tia deixava na mesa da cozinha quadrinhos da Turma da Mônica ou do Tio Patinhas para mim e para meu irmão que a gente só via de manhã. Ela fazia isso desde antes de eu saber ler direito, então eu ficava ansiosa folheando aquelas páginas tentando adivinhar o que acontecia nas histórias até ela voltar para casa e ler para a gente. Tenho também lembranças com mangás. Meu avô, nas raras vezes que ia para o bairro da Liberdade, trazia, vez ou outra, alguma Shonen Jump para a gente. E tinha os mangás dos meus tios, que como não eram infantis ficavam guardados em caixas no quarto deles e quando eles saíam para trabalhar eu pegava escondido e lia. Geralmente eu não entendia quase nada porque além de não ser infantis eram todos em japonês, mas dois me chamavam muito a atenção, um que eu achava muito doido e esquisito na época, Akira (hoje amo), e Shin-Chan, que eu morria de rir. Ficando um pouco mais velha minha tia e meus tios começaram a dar para mim e meu irmão os Shin-Chans depois que eles liam. Guardo com carinho na prateleira até hoje.