por Ramon Vitral

 

O quadrinista Adrian Tomine crê na solidão como parte inescapável de sua personalidade. Foi a solidão que impulsionou sua paixão pela leitura e sua produção de histórias em quadrinhos. Hoje ele a vê como parte intrínseca de sua vida profissional como autor de HQs. “Mesmo fora do trabalho é uma sensação onipresente dentro de mim, mesmo quando estou ocupado e minha vida me satisfaz”, me disse o artista.

O assombro e o encantamento de Tomine com o impacto da solidão em sua vida são o foco de A Solidão de um Quadrinho sem Fim, primeira obra autobiográfica longa de um dos principais nomes das HQs autorais norte-americanas e candidato potencial às primeiras posições nas listas de melhores obras de 2020.

Recém-chegado às livrarias brasileiras, semanas após seu lançamento nos Estados Unidos, o mais novo trabalho de Tomine é composto de 168 páginas em preto e branco, divididas em 26 contos sobre a relação de toda uma vida do autor com as histórias em quadrinhos.

Capa de A Solidão de Um Quadrinho Sem Fim (Nemo), nova HQ de Adrian Tomine (imagem: Divulgação/MMArte)

O prólogo da obra, ambientado em 1982, com Tomine aos 8 anos, introduz o tom tragicômico da HQ. Uma defesa efusiva de sua paixão por quadrinhos ao ser apresentado a seus novos colegas de classe dá início a uma rotina de bullying que o leva ao isolamento social.

O capítulo seguinte mostra Tomine aos 21 anos, em 1995, na San Diego Comic Con, a mais tradicional convenção de HQs dos Estados Unidos. Nome em ascensão na indústria na época, ele chega ao evento com altas expectativas por causa da comoção com sua série independente Optic Nerve. O autor sai da convenção frustrado ao se ver alvo de uma crítica destruidora publicada no tradicional The Comics Journal, um dos principais espaços de reflexão sobre quadrinhos de seu país.

Em 1996, indicado pela primeira vez ao Prêmio Eisner – o Oscar dos quadrinhos norte-americanos –, ele sai derrotado e humilhado do evento ao ver seu herói pessoal Frank Miller se recusar a mencionar o sobrenome Tomine ao anunciar os concorrentes em sua categoria por não saber pronunciá-lo.

As memórias do artista seguem até 2018, com ele já casado e com duas filhas, conciliando sua rotina de pai de família com a carreira de quadrinista renomado, dono de vários dos principais prêmios da indústria de quadrinhos e capista habitual da revista New Yorker.

A Solidão mostra Tomine investindo no mesmo intimismo que caracteriza seu trabalho de ficção, presente, por exemplo, em Intrusos, seu outro álbum solo lançado em português. O novo título, no entanto, expõe sem piedade as intimidades do próprio autor. “Queria fazer um álbum diferente do que eu tenho feito e achei que não tinha sentido fazer um autobiográfico se não fosse uma coisa pessoal ou algo em que eu me expusesse”, afirmou o quadrinista.

Seu outro trabalho autobiográfico continua inédito em português, a curta Scenes from an Impending Marriage, sobre os preparativos de seu casório e com título inspirado no filme Cenas de um Casamento, de Ingmar Bergman. Na segunda investida nesse gênero, ele se inspirou em "The loneliness of the long-distance runner", conto de Alan Sillitoe publicado em 1959, adaptado para o cinema em 1962 por Tony Richardson e lançado como A Solidão de uma Corrida sem Fim.

Tomine é impiedoso em relação a si mesmo em vários momentos de A Solidão. Ele rememora sessões de autógrafos vazias, entrevistas malsucedidas, encontros constrangedores, broncas de leitores, diferentes estágios de sua desenvoltura social e episódios recorrentes em que é confundido com o colega Daniel Clowes. Autor do clássico moderno Ghost World, Clowes inclusive faz uma ponta no livro e oferece a citação que abre a obra, com sua resposta após ser perguntado sobre como é ser o quadrinista mais famoso do mundo: “É como se eu fosse o jogador de badminton mais famoso do mundo”.

Tomine segue na mesma toada da declaração do amigo com quem é constantemente confundido. A Solidão faz várias piadas com a falta de glamour na vida profissional do autor, mesmo nos momentos de maior reconhecimento. Em uma das histórias, ele se vê escanteado em uma feira literária por causa da comoção do público com a chegada da estrela de TV Khloé Kardashian para o lançamento de seu livro de autoajuda.

Elementos cada vez mais raros nos quadrinhos modernos, os balões de pensamento são presença constante em A Solidão, explicitando os constrangimentos, as tensões e os dramas vividos por Tomine. “Não tenho como garantir que minhas memórias não foram afetadas pela experiência de lembrar e contar essas anedotas com o passar dos anos”, disse o artista.

“Faz um tempo que tenho a ideia de usar essas memórias em livro, mas foi só depois dos fatos do último capítulo que entendi como poderia juntar tudo”, afirmou, citando o capítulo derradeiro e mais longo da obra, uma espécie de síntese de suas principais neuroses.

A experiência de leitura de A Solidão fica ainda mais intimista graças ao formato da obra, com jeitão de diário, com fitilho e elástico. O preto e branco manual e o grid padrão simples de seis quadros por página acentuam esse diálogo.

Por causa da pandemia de covid-19, Tomine precisou cancelar os eventos físicos de lançamento do livro e se diz surpreso com a repercussão das lives e das conversas virtuais que marcaram a chegada da obra às livrarias nos Estados Unidos. “Acho que consegui me abrir mais e falar mais nesse formato se comparar a quando eu fico sentado num palco de frente para a plateia”, refletiu sobre sua desenvoltura nos eventos on-line.

Também por causa da pandemia ele agora se vê isolado em casa com a esposa e as duas filhas, o que amenizou um pouco sua sensação de solidão. “Ter família diminuiu um pouco essa sensação, ainda mais durante essa experiência de confinados. Comecei a desejar solidão!” 

Arte de Quincas Borba em Quadrinho (SESI-SP), HQ de Verônica Berta e Luiz Antônio Aguiar (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Verônica Berta, professora, quadrinista, autora de Ânsia Eterna e coautora de Quincas Borba em Quadrinhos

A seção de entrevista da Sarjeta de setembro de 2020 é protagonizada pela quadrinista Verônica Berta, indicada ao Prêmio Jabuti na categoria Quadrinhos por Ânsia Eterna (Sesi/SP) e coautora do recém-lançado Quincas Borba em Quadrinhos (FTD Educação), com roteiro de Luiz Antônio Aguiar.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Acredito que, muito por causa da pandemia, estamos com maior senso de comunidade. Tenho percebido lançamentos de projetos e pessoas apoiando artistas em suas campanhas de financiamento coletivo, tudo acontecendo digitalmente. Temos conseguido movimentar uma grana, ainda que mínima, com a solidariedade necessária em tempos difíceis. Outra coisa que é novidade são os eventos on-line, que estão mudando a perspectiva que temos sobre acessibilidade, num sentido amplo. 

Como leitora e autora, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

É claro que sou pega pelas boas histórias, mas o temperinho especial dos quadrinhos para mim é a infinidade de formas como essas histórias podem ser contadas. Eu me derreto pelas HQs que fogem um pouco daquele formato de produção em série (arte-final em nanquim, aquelas letras "de comics", uns enquadramentos mais cinematográficos etc.) para explorar os elementos próprios da mídia em favor das narrativas. Ou seja, aquela pegada "experimental".

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida? 

Nada novo sob o sol: Turma da Mônica! Preferencialmente gibi da Magali, com quem me identifico até hoje (tenho fome o tempo todo). Eu lia muito quando ia passar o fim de semana na praia com a minha família.

Sarjeta, um ano

A atual edição da Sarjeta completa o primeiro ano da coluna. Passaram por aqui Afonso Andrade, Aline Lemos, Amanda Paschoal Miranda, Amanda Treze, Batista, Box Brown, Cecil Silveira, Cecilia Marins, Dandara Palankof, Debora Santos, Fabio Vermelho, Gabriel Dantas, Gabriela Güllich, Grazi Fonseca, Ing Lee, Julio Shimamoto, Juscelino Neco, Lobo Ramirez, Luciana Falcon, Marcelo D’Salete, Panhoca, Pietro Soldi, Rafael Coutinho, Rogi Silva, Verônica Berta e Wagner Willian. Agradeço a todos pelas entrevistas e pelos depoimentos.

Na primeira edição, lamentei a infantilização crescente na produção de conteúdo sobre histórias em quadrinhos no Brasil; escrevi sobre os trabalhos dos selos Escória Comix e Pé-de-Cabra; falei sobre minhas expectativas para a Bienal de Quadrinhos de Curitiba e o Festival Internacional de Quadrinhos (FIQ), que acabaram não rolando em suas versões físicas; alertei sobre a chegada imininete da plataforma ComiXology, da Amazon, ao Brasil; exaltei a representação do futebol nos quadrinhos de Marcello Quintanilha; e conversei com Box Brown sobre o lançamento da edição brasileira de Tetris.

Entrevistei alguns quadrinistas nacionais sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus em suas vidas pessoais e profissionais; apresentei as impressões de Marcelo D’Salete e Rafael Coutinho sobre Sunny, de Taiyo Matsumoto; escrevi sobre o período de detenção de Julio Shimamoto durante a ditadura; listei algumas das minhas leituras mais recentes; escrevi sobre Reanimator, obra recém-lançada de Juscelino Neco inspirada no conto de H.P. Lovecraft; e fecho este primeiro ano falando sobre o trabalho novo de Adrian Tomine. 

Agradeço aos leitores e à equipe do site do Itaú Cultural pela confiança. Mês que vem tem mais.

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