por Vanessa Barbara
Há anos circula pela internet o vídeo “Caminhando com Tim Tim”, que resume bem o que é andar pelas ruas da cidade na companhia de uma criança pequena.
A artista Genifer Gerhardt descreve a venturosa jornada de Valentim, de 1 ano e 4 meses, até a “casa da vovó”, que fica a duas quadras de distância. O menino dispara na frente, estanca, volta, examina pedrinhas, sai correndo de novo. Ele anda de forma cambaleante, tem um penteado arrojado e veste sandálias vermelhas e azuis. Genifer, que é mãe, “palhaça, bonequeira e poeta”, descreve os quatro encontros do garoto nesse curto percurso: ele cumprimenta seu João, morador de rua e flanelinha; seu Jorge, o guardador de carros do restaurante da esquina; o “homem do mercadinho” e seu gato; e os três senhores do almoxarifado do hospital.
Com Valentim ela aprende que “chegar não é mais valioso que a andança, e que o encontro é precioso e necessário”. O menino exibe as sandálias para um dos amigos, faz carinho no gato de outro, dá a mão para atravessar a rua. Não tem pressa. Às vezes parece se perder observando uma pedra.
Penso sempre nesse vídeo quando passeio com minha filha de 1 ano e 7 meses, que atende pelo codinome de Batatinha. Ela frequenta uma creche que fica a 400 metros de casa. O horário de saída é às 6 horas. Porém, quando vou buscá-la, é comum chegarmos em casa lá pelas 7, cansadas e falantes, cheias de aventuras para contar.
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Batatinha gosta de reparar nos buracos da calçada e pedir que os passantes tomem cuidado com as poças d’água. Gosta de ver os balões azuis da loja de sapatos, os passarinhos que dão voos rasantes, o pandeiro da loja de instrumentos musicais, uma letra “O” gigante em um letreiro de estacionamento. (Ela gosta do “O” porque é uma letra que está sempre espantada.) Empolgadíssima, avisa a todos quando vê um carro vermelho ou o caminhão do lixo.
É comum que ela pare subitamente e fique encarando alguém em específico: outro dia foi um pai com um menino na garupa de uma moto estacionada. Estavam ambos de capacete, o que lhe pareceu bastante intrigante. Ela passou uns bons minutos olhando séria para os dois, sem dizer nada. Nessas horas, eu já nem fico mais constrangida; apenas aguardo, respeitando o tempo misterioso de suas contemplações. Só parou de encará-los quando a moto foi embora. Então retomou o passo.
Batatinha gosta de ir comprar pão na “padaria da Raíssa”, que é a atendente do turno da tarde da padaria da esquina, e às vezes leva uma florzinha para ajudar a pagar a conta. Ela gosta de procurar a “lua magrinha” (minguante) no céu e fica feliz quando consegue avistar uma estrela. Quando os funcionários de uma clínica oftalmológica jogam arroz para os pombos, o percurso ganha uns 15 minutos a mais.
Sair para caminhar com uma criança pequena é uma aula prática de relatividade: o tempo e o espaço se distorcem, e nada é tão objetivo e direto quanto um dia já pareceu. Uma quadra pode ser percorrida em 20 segundos ou 20 minutos; às vezes escurece assim que dobramos a esquina.
Há dias em que saímos de casa apenas para visitar duas extraordinárias atrações do bairro: o “nenê gigante” e o “cabelo maluco”. O primeiro é a foto grande de um bebê de gorrinho no letreiro de uma loja infantil. Ele está abrindo a boca com ar de deslumbramento. Perdi a conta de quantas vezes fui até lá só para apreciar essa surpreendente obra de arte contemporânea; não sei como ainda não me cobraram ingresso. O “nenê gigante” evoca na Batatinha um enlevo estético que nenhum museu seria capaz de replicar. (Acho que é o ar de espanto.)
O “cabelo maluco” se refere ao penteado dos manequins de uma loja de roupas. Um dia, Batatinha conseguiu testemunhar o momento em que uma das vendedoras vestiu com um macacão branco o manequim pelado, que ainda por cima estava sem braços. A funcionária deixou que a extasiada visitante tocasse no cabelo maluco, que se enrola para o alto feito um sorvete de casquinha.
Batatinha só falou disso pelo resto da semana.
Manequins sem cabeça também despertam o interesse filosófico da menina, que logo se apressa em checar se a dela continua no lugar. Não se conforma com a negligência dos bonecos, que deixam cair a cabeça pela rua. Outro dia refletiu bastante, apalpou meu pescoço e declarou, aliviada: “A mamãe não perdeu a cabeça”. (Eu não seria tão categórica assim.)
Agora que Batatinha já sabe falar, todas essas aventuras ganham comentários descritivos em tempo real: “O menino espirrou”, “Olha o cabelo azul!”, “Oi, cachorrinho, tudo bem?”, “O moço tá dormindo”, “Acabou o Natal”, “O vento levou o chapéu”, e assim por diante. As peripécias são relembradas e recontadas ao longo de vários dias. As experiências do passeio de ontem são evocadas no passeio de hoje, como se pregássemos dezenas de placas comemorativas em cada ponto de interesse.
No domingo passado nós simplesmente saímos para dar uma volta no quarteirão, sem destino. Foi como uma road trip sem automóvel. Encontramos cachorros, lixeiras sem tampa, o Guigui de bicicleta, um homem soldando uma porta, um sapato esquecido no chão (“Pega, Cinderela!”). Sentamos na escadaria da rua para tomar água. Puxamos conversa com 13 ou 14 passantes.
A cidade da Batatinha tem a medida exata do seu assombro.