por Vanessa Barbara
No mês passado, a Biblioteca Pública de Nova York lançou um álbum on-line intitulado Missing Sounds of New York. A compilação, criada em parceria com uma agência de publicidade, consiste em oito faixas de ruídos urbanos que andam escassos neste período de isolamento social.
O disco começa, por exemplo, com a sequência de sons que ouvimos ao chegar a uma plataforma de metrô. O trem se aproxima ruidosamente, aciona os freios com um estrondo metálico, abre as portas e nós entramos no vagão. Então um grupo de dançarinos de hip-hop começa a se apresentar para ganhar uns trocados. A faixa termina com aplausos dos passageiros.
Outra sequência segue os passos de alguém andando pela rua durante a hora do rush: ouvimos buzinas, risadas, britadeiras, trechos de conversas, um pedido de “com licença”, uma melodia ao saxofone. A pessoa para, joga umas moedas ao músico de rua e torna a caminhar. Depois entra em um edifício, aciona o elevador e chegamos ao fim dessa pungente composição.
Há uma faixa ambientada em um parque e outra em um estádio de basebol. Um copo cai no chão durante o happy hour em um bar. O passo a passo de uma curta viagem de táxi é enaltecido em uma faixa intitulada “I’d Call a Cab to Anywhere” [Eu chamaria um táxi para qualquer lugar]. A coletânea termina com uma pessoa entrando na biblioteca, passando por um grupo de turistas e finalmente se sentando para ler. (O folhear dos livros é um dos últimos sons do disco.)
O resultado é inesperadamente nostálgico; há quem tenha chorado ao ouvir o barulho de crianças brincando na rua ou de uma multidão aplaudindo um lance esportivo. De minha parte, jamais pensei que fosse sentir falta do som de cachorros latindo, da bola batendo em uma tabela de basquete, de carros passando com o rádio alto, de trechos de uma conversa fútil ao celular.
>> Veja também:
Memórias Capitais, ensaios sonoros e fotográficos sobre as capitais brasileiras
Proponho lançar um álbum parecido no Brasil, com algumas alterações significativas. Os sons da rua se adensariam com a matraca do vendedor de biju, a flautinha do amolador de facas e a música do caminhão do gás. Pastores evangélicos pregariam a palavra em meio ao estardalhaço contínuo do escapamento de um Fusca velho, que passaria bem devagar. Bem devagar mesmo.
Com sete minutos e meio de duração, a faixa “Puro Creme do Milho Verde” seria uma homenagem aos feirantes, camelôs e locutores de carros de som. O anúncio esganiçado de “Olha a cândida, detergente, sabão e Ajax” seria remixado e casaria perfeitamente com o bordão “Moça bonita não paga, mas também não leva”. Nos cadernos de cultura, críticos fariam questão de realçar a participação de um vendedor que repete a tarde inteira: “Óptica, óptica, óptica”, tornando-se a certa altura um poeta concretista involuntário (Caótica Óptica).
“Xingando o Juiz” traria uma seleção apurada de gritos de torcidas e autênticas rusgas de estádio, terminando com o tradicional poropopó na arquibancada. “Chiquita Bacana” acompanharia um bloco de Carnaval no centro do Rio, enquanto a faixa “Pancadão” seria autoexplicativa (convenhamos). “Dia de Protesto” teria como protagonista a polícia e suas bombas de efeito moral, além dos secos golpes de cassetete na espinha dos manifestantes. Haveria uma faixa só com os ruídos do interior do busão, incluindo o girar da catraca e os gritos de “próximo desce!”.
Fico emocionada só de pensar. O carteiro Joelison aceitaria fazer uma participação especial no disco, gritando: “Correeeeeio, tem que assinar!”. Eu também incluiria, se possível, uma briga de gatos no telhado, um panelaço contra o presidente e um alarme de automóvel que todo mundo ignora. “Atenção: este veículo está sendo roubado e é monitorado pela...”
O disco seria tocado nos elevadores para alegrar os condôminos que descem para levar o lixo. Eu mesma ouviria toda noite, antes de dormir, e assim me acalmaria com relação ao futuro. A Sinfonia Urbana Brasileira arrancaria suspiros de saudades até dos mais introvertidos, que afinal preferem se abrigar em meio ao burburinho das ruas e também têm estranhado tamanho silêncio.
É verdade que o desaparecimento de muitos de nossos sons urbanos trouxe certas vantagens: agora é possível ouvir o canto dos pássaros mesmo em bairros mais centrais da cidade. Minha filha de dois anos, vejam só, já sabe acusar a presença de um bem-te-vi nas imediações, sem que eu tenha precisado mostrar do que se trata no YouTube. Minha mãe, que mora na rota de aviões, consegue assistir a filmes dublados com mais sossego.
A única coisa que corta o silêncio ultimamente é o barulho (constante, trágico) das sirenes das ambulâncias, que não parecem descansar jamais.