por Nayra Lays
Seja bem-vinda(o) à Travessia #3.
Antes de começar a leitura, peço que você pense em pelo menos duas mulheres negras trans que conhece. Quais são seus nomes e sobrenomes? Suas profissões? Elas estão incluídas em suas pautas políticas? São referências pra você?
Já há algum tempo desconfio quando falam sobre um mundo moderno em que só as máquinas se incorporam ao nosso cotidiano. Nesta travessia, falaremos de novos projetos de mundos construídos por mulheres negras, em suas multiplicidades. Pra mim, não há nada mais futurista do que isso.
Quando eu era mais nova, política me parecia distante. Complexa, cinzenta, chata, quadrada. Coisa de homens velhos, de terno, gravata e palavras difíceis. Como para muitxs brasileirxs, política não significava todas as minhas decisões, mas algo externo a mim. Essa lembrança me veio à tona no momento exato em que cheguei à Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp), onde encontraria Maria Clara Araújo, terceira convidada da coluna Travessias.
No começo deste ano, Maria Clara foi convidada pela deputada Erica Malunguinho para ser articuladora na Mandata Quilombo, seu projeto político eleito em 2018. Duas mulheres trans, negras e nordestinas ocupando um espaço nada amigável. Enquanto aguardo no gabinete da deputada, observo a equipe de trabalho ali. Pessoas negras, em sua maioria mulheres. Eu me vejo ressignificando a única imagem que, por anos, associei à política. Que sorte a minha poder presenciar isso aos (poucos) 21 anos de idade.
Também muito jovem, aos 23 anos, Maria Clara faz referências a intelectuais negras, após pesquisas feitas por conta própria para conseguir se enxergar nas bibliografias na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), onde estudava até vir para São Paulo (SP). No ensino médio, aos 16 anos, quando passou a se hormonizar, sentiu na pele a transfobia institucionalizada. Prometeu que jamais pisaria em uma escola de novo, mas, inspirada pelo livro Ensinando a Transgredir: a Educação como Prática da Liberdade, de bell hooks, começou a enxergar nesse campo uma poderosa ferramenta para construir possibilidades negadas a si mesma.
“Devemos falar de expulsão escolar, e não de evasão. A cada direito ceifado, a gente vê que aquele espaço não foi feito pra gente.”
Passada a tensão do cursinho pré-vestibular, que ela pagou vendendo salgados no intervalo, e aprovada na universidade, celebrou sua entrada, mas não sem também expor o fato de que o lugar onde passaria os próximos cinco anos ainda era omisso aos direitos de pessoas trans. A UFPE não possuía uma portaria garantindo nome social e banheiro por identidade de gênero, mesmo já tendo alunas e alunos trans. Maria Clara, então, escreveu um manifesto, uma retrospectiva de sua vida escolar, descrevendo sua angústia em se pensar revivendo tudo aquilo no ensino superior. Compartilhado por muitas pessoas no Brasil, o manifesto gritou a pergunta que, até então, ninguém havia feito de forma tão incisiva:
Cadê as travestis nas universidades públicas?
A partir daí foi criada uma portaria e surgiram inúmeros cursinhos pré-vestibulares para pessoas trans. Um marco para a educação no Brasil e um importante capítulo desse novo projeto de mundo, ainda embrionário, traçado por mulheres negras trans. Parafraseando Paulo Freire, Maria Clara explica que, nesse novo projeto, se entende que “a desumanização não é um destino dado. É resultado de uma ordem”. Logo, revisitar a própria história e desnaturalizar os processos de violência vividos é o primeiro passo para elaborar raiva e dor, canalizá-los e, assim, movimentar estruturas.
“É muito difícil deixar de ser objeto de estudo e passar a ser produtora de conhecimento.”
Maria Clara se define como uma intelectual negra e ganha um brilho diferente quando fala sobre o que a alimenta: a relação com a mãe, que sempre a apoiou, a expectativa pela transferência de sua matrícula para uma universidade em São Paulo, o amor de suas amigas e de seu companheiro, e os cuidados com seu corpo e com seu propósito interno. Vibrante, ela escolhe, politicamente, todos os dias, não se isolar, mas sabe que essa não é a realidade de grande parte das mulheres trans.
“Quanto mais nos isolamos, mais vulneráveis ficamos.”
Deve ser por isso que, olhando para ela enquanto caminha, usando um longo vestido estampado, além de adornos com búzios e símbolos egípcios, sinto que nem a grandeza física e fria da estrutura onde ela agora atua com um quilombo pode amedrontá-la. Maria Clara sabe que é uma, mas também é muitas, e nenhuma anda só, de jeito algum.
Obrigada, Maria Clara.
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