por Nayra Lays

 

Seja bem-vinda(o) à Travessia #2.

Antes de começar a leitura, te convido a ver, ouvir e sentir um poema da nossa segunda convidada :)

Um assalto. Uma menina. Uma perda por toda uma vida. A cada fase, uma dose. No armário, numa caixa, no peito, guarda o primeiro poema escrito por ela:

“Papai, eu te amo”.

Diante de olhares atentos, Kimani pede licença para chegar, brinca com as palavras, cria cadências, interpreta. É gigante. Todo o corpo dela declama e parece contar histórias. Por isso, durante nossa conversa, eu me surpreendo ao saber que ela passou a se enxergar como uma mulher negra e a participar dos slams – competições de poesia falada – há apenas dois anos, quando frequentou a oficina de escrita ministrada pela poeta Ryane Leão.

Kimani é do Grajaú, zona sul de São Paulo (SP) (imagem: @andarilho.foto)

Acontece que Cinthya Santos já era poesia antes de descobrir a palavra kimani – que, de acordo com as suas pesquisas, significa “menina dócil” – e de usá-la como nome artístico para se apresentar ao mundo. A escrita, que sempre permeou o universo da menina introvertida, ganhou a profundidade de sentimentos complexos como a dor, após a morte de seu pai, em um assalto. Cinthya tinha só 14 anos e cresceu expressando a saudade em fragmentos, através de cartas onde escrevia para ele tudo o que gostaria de ter dito olhando em seus olhos. Enquanto escrevia, chorava, sentindo como era crescer sem a presença de quem lhe apresentou Cássia Eller, e com quem tanto se parece. Para ela, a palavra era o elo que a ligava a seu pai e, por isso, fazia parte de seus rituais de cura.

Anos depois, no fim traumático de um relacionamento e durante uma busca profunda dentro de si, ela se reencontrou com a poesia e presenciou Cinthya (re)nascer Kimani. Incentivada por Ryane, começou a frequentar o Slam da Norte e, aos poucos, criou sua própria identidade de escrita e de apresentação. Usando a raiva como potência criativa, Kimani ri, dizendo que gosta da contradição que existe entre a doçura do significado de seu nome artístico e a dureza que sua escrita possui. Aliás, confundir quem acredita em um roteiro dado sobre mulheres negras e periféricas é o que a poeta, educadora, compositora e cantora vinda do Grajaú, zona sul de São Paulo (SP), mais tem feito durante sua carreira. E ela sabe que isso envolve riscos.

“Pras pessoas de casa é difícil aceitar, né? Como assim, meu filho vai ser artista?”

Quando decidiu trancar a faculdade de psicologia no penúltimo semestre, viu a relação com a mãe, que inicialmente achou que a poesia seria só um hobby, ficar cada vez mais difícil. Ambas seguiram caminhos diferentes, e, embora entenda, Kimani gostaria de tê-la por perto para vibrarem juntas as conquistas, que não têm sido poucas. De 2017 pra cá, entre muitas outras coisas, já participou de um projeto que pauta diversidade em agências de publicidade, se apresentou com o grupo Bixiga 70 no Sesc Paulista, escreveu e narrou um poema-manifesto de lançamento da série The Handmaid’s Tale – o Conto da Aia, para a Globoplay, e teve seu trabalho reconhecido com destaque no site da Vogue Brasil. Agora, ela se prepara para mostrar mais uma faceta de sua ancestralidade: a palavra cantada. Seu primeiro EP (álbum), já em desenvolvimento, terá referências da MPB e composições sobre o amor, inspiradas em uma relação leve que está vivendo, e sobre a luta.

O primeiro EP de Kimani terá referências da MPB e composições sobre o amor (imagem: @noix.co)

E ela quer mais. Muito mais.

Se desafiando a cada novo passo, agradece e segue trabalhando internamente para se convencer de que é, sim, merecedora de todas as colheitas, driblando a autossabotagem. A música, os cuidados com a espiritualidade, o apoio que recebe de fãs, parentes distantes, amigas, amigos e do namorado também fortalecem uma trajetória que faz sentido pra muita gente além dela. É por isso que, quando pergunto como suas realizações são celebradas (não se esqueça de se perguntar isso), a resposta é:

“Eu compartilho as boas notícias que recebo”.

Kimani, por si só, já é uma das melhores notícias que temos. A cada ruptura, ela se preenche da convicção de sua missão e, como uma de suas referências, Carolina Maria de Jesus, faz rotas não previstas. Inspira. Renasce. Voa. Olha para além da dor, vai looonge e volta, contando boas-novas e nos presenteando com novas possibilidades.

Ainda bem que Kimani existe, e se refaz.

Obrigada.

Para #mergulharnaleitura, Kimani indica Eu Sei por que o Pássaro Canta na Gaiola, livro de Maya Angelou.

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