por Ramon Vitral

 
Quadro do trabalho da quadrinista Ing Lee para a coletânea "Cápsula" (imagem: divulgação)

Dia desses alguém perguntou para o Neil Gaiman no Twitter como ele consegue escrever e se manter focado sem se preocupar com o que está acontecendo no mundo. “Muito, muito mal”, respondeu o roteirista de Sandman, um dos maiores clássicos dos quadrinhos mundiais, e autor de obras como Deuses Americanos, Coraline e Belas Maldições.

Uns dias depois foi a vez de o quadrinista brasileiro Odyr, autor da adaptação de Revolução dos Bichos para os quadrinhos e coautor de Copacabana, desabafar no Twitter sobre o impacto da pandemia do novo coronavírus em seu trabalho: “Me pergunto como meus amigos e colegas artistas estão se saindo [...] Eu não tenho conseguido fazer nada. A situação é excepcional demais. Para mim é como se o mundo para o qual criávamos coisas não existisse mais e você tivesse que chegar até o outro lado e respirar o ar de lá para começar de novo”.

O impacto é generalizado, e o mercado editorial brasileiro parece estar sob a mira de um tiro de misericórdia. As grandes livrarias iam mal, agora vão ainda pior. Lojas pequenas fecharam as portas e algumas funcionam apenas on-line. Editoras estão revendo seus lançamentos. Festivais e feiras estão sendo adiados sem novas datas em vista.

Eu me preocupo ainda mais com a base dessa cadeia produtiva: os autores. Apesar de pilares desse sistema, costumam ser os mais desfavorecidos e a parte com a menor rentabilidade nesse ciclo que culmina com a chegada de uma obra ao leitor. “Está bem difícil conseguir focar em produção num período destes”, disse-me a quadrinista Ing Lee, autora do álbum Karaokê Box e editora da coletânea Cápsula. “Muitas feiras de que eu iria participar e outros trabalhos foram adiados ou cancelados. Tudo isso era dinheiro com o qual eu estava contando, e é realmente desanimador.”

O adiamento da edição de 2020 do tradicional Festival Internacional de Quadrinhos, em Belo Horizonte, arruinou os planos da quadrinista e jornalista Gabriela Güllich. Coautora da reportagem em quadrinhos “São Francisco”, ela estava fechando a edição de seu próximo trabalho e organizando a campanha de financiamento coletivo da HQ quando foram registrados os primeiros casos de infecção pelo novo coronavírus no Brasil. “E agora, anunciar isso para quando? E para quem? Parte do meu planejamento para este primeiro semestre era em função de eventos, então parece que a produção acabou ficando na berlinda, esperando um futuro incerto”, lamenta a artista.

Quadros de "São Francisco", álbum da quadrinista Gabriela Güllich e do fotógrafo João Velozo (imagem: divulgação)

Apesar de o trabalho solitário em casa já fazer parte da rotina desses autores, o imperativo de não ir às ruas e a falta de perspectiva de tempos melhores impactam diretamente na produção. Autor de Bulldogma e Silvestre e dono da editora Texugo, o quadrinista Wagner Willian trabalha em casa há mais de 20 anos, mas não está à vontade com a nova conotação de seu isolamento. Ele tem achado difícil se concentrar em sua produção autoral e teme as inevitáveis perdas financeiras decorrentes da pandemia e do distanciamento social. “As vendas diretas aos leitores nas diversas feiras que acontecem durante o ano podem estar ameaçadas. São essas vendas que pagam as contas editoriais. Com as feiras suspensas, acredito que a quantidade de publicações diminuirá drasticamente no cenário geral.”

Ele continua: “Só depois de saber onde estou pisando conseguirei produzir de fato. Do contrário, tudo está muito instável, e essa insegurança acabaria transparecendo. Não teria problemas em deixar essa insegurança transparecer nos trabalhos que virão, mas o momento, ao menos para mim, é de reflexão, calma e zelo”.

Arte do quadrinista Wagner Willian para o álbum "Silvestre" (imagem: divulgação)

Por causa da pandemia e de restrições na circulação de produtos entre alguns países, o quadrinista Fábio Vermelho não conseguiu enviar para seus leitores internacionais a décima edição de sua revista independente Weird Comix. Apesar de ter sido liberado de seus serviços no restaurante em que trabalha, ele não conseguiu transformar o tempo livre em páginas de HQ. “O vírus e sua forma de contágio tomaram conta da minha cabeça e me ‘neuraram’ de tal forma que não pude deixar de acompanhar as notícias; somando a isso o nosso desgoverno e a incerteza sobre o nosso futuro, minha produção decaiu consideravelmente em comparação ao que eu planejava”, disse Vermelho.

O excesso de informações e notícias também afetou a rotina da quadrinista Amanda Paschoal Miranda, autora de obras como Hibernáculo e Sangue Seco Tem Cheiro de Ferro. Filmes e músicas consumidos pela artista em seu isolamento têm inspirado alguns desenhos compartilhados por ela nas redes sociais.

Amanda diz que segue trabalhando, empenhada em respeitar seus cronogramas e tentando ser mais compreensiva com si mesma em dias em que não rende o esperado. Mas está cada vez mais difícil. “Acho que nunca senti tanta instabilidade. Todas as feiras adiadas, lançamentos de que eu participaria desmarcados, aulas que iria dar canceladas. É um baque forte, porque é uma parcela de ganhos que não vai existir por um tempo”, disse.

Páginas de "Parque das Luzes", trabalho de estreia da quadrinista e jornalista Cecilia Marins (imagem: divulgação)

Três perguntas para… Cecilia Marins, jornalista em quadrinhos e autora de “Parque das luzes”

Encerro a sétima edição da Sarjeta com uma breve entrevista com a jornalista e quadrinista Cecilia Marins. No final de 2019 ela lançou a reportagem em quadrinhos “Parque das luzes”, reunindo os relatos de cinco mulheres que trabalham como prostitutas no Parque da Luz, em São Paulo.

O que você vê de mais especial acontecendo na cena brasileira de quadrinhos hoje?

Grande parte dos artistas que admiro, sigo e consumo, eu conheci nas redes sociais ou em feiras independentes. A internet e a auto-organização dos artistas independentes abrem portas para que muitas pessoas de diferentes tipos de trabalho tenham seu merecido espaço e reconhecimento. Isso eu digo como consumidora, quadrinista e jornalista. No final, tanto para o artista quanto para o leitor, é uma ótima oportunidade de conhecer cada vez mais dessa cena!

Como leitora e autora, o que mais lhe interessa hoje em termos de histórias em quadrinhos?

Para mim não há coisa mais heavy metal do que fazer HQs sobre conflitos: internos, externos, culturais, emocionais, históricos… Minhas HQs preferidas são assim: Persépolis, Habibi, A Origem do Mundo e Cina. É também o que eu quis fazer com “Parque das Luzes”: bater de frente com as imagens que temos das mulheres em situação de prostituição e criar um conflito produtivo entre os tabus, o senso comum e a realidade retratada no gibi.

Como autora, produzir e consumir quadrinhos é um exercício enorme de plasticidade. Ler e acomodar essas novas informações no nosso horizonte, nos nossos processos. Principalmente agora nesta situação de pandemia, estamos entre narrar um mundo que não existe mais e contar histórias que vão se passar em circunstâncias que ainda não sabemos quais serão. No fim, o resultado ideal é um só. Quero ler o último quadro da história, fechar o livro e pensar: “Caramba… Queria ter feito isto!”.

Qual é a memória mais antiga que você tem da presença de quadrinhos na sua vida?

Eu tinha uns 5 anos de idade. Na época eu lia os gibis da W.I.T.C.H, uma história de cinco meninas bruxas escolhidas para proteger um universo paralelo – cada uma controlava um elemento, tinha uma história diferente... Uma loucura! Os volumes novos mal chegavam à banca e eu já ia comprar. Cresci obcecada pelas criaturas, pelos amuletos mágicos, pelas roupas e pelos cabelos das personagens; eu vivia no universo delas – e isso me incentivou a criar os meus.

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