por Daniel Munduruku

Corria o ano de 1992. O Brasil e o mundo estavam com a atenção voltada para o Rio de Janeiro (RJ), onde aconteceria a ECO-92, nome dado à Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento. Eu havia acabado de ingressar no programa de mestrado em antropologia social da Universidade de São Paulo (USP). Tinha, portanto, todo interesse em participar daquela reunião tão importante para a compreensão do momento político que vivíamos. Não, eu não fora convidado. Ia como um observador, penetra mesmo.

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Coluna em vídeo de Daniel Munduruku aqui no site (de janeiro a junho de 2019)

Confesso, no entanto, que não estava interessado em participar dos grandes debates ambientais. Estava curioso. Queria muito encontrar e conhecer as pujantes figuras que moravam em meu imaginário de jovem pesquisador indígena: ia poder entrar em contato com Raoni, o cacique do Xingu; Mário Juruna, o eterno deputado federal; Alvaro Tukano, que, com Marcos Terena e Ailton Krenak, havia transformado o modo como o Estado brasileiro via os povos indígenas. Era, confesso, meu sonho de consumo.

No entanto, meu desejo maior era poder conhecer uma figura lendária: Paulinho Payakan, um jovem Kayapó que desafiara a grande empresa antiecologia formada pelas empreiteiras que teimavam em construir hidrelétricas em terras indígenas, pelas mineradoras que queriam explorar as riquezas minerais e pelas madeireiras e sua gula em destruir as florestas brasileiras. Ele parecia ser o perfeito herói a ser seguido pelo jovem anarquista que morava em mim.

Paulinho Payakan morreu aos 67 anos, vítima da covid-19 (imagem: Agência Ophelia)

Ao chegar ao Rio, fiz uso de minhas credenciais indígenas para circular entre eles. Uma aldeia inteira havia sido montada – a Karioca – para receber os convidados para a conferência paralela que havia sido organizada pela União das Nações Indígenas (UNI). Por ali vi passar meus ídolos todos. Eu os ouvi falar com a bravura e altivez de autênticos guerreiros. Eram tudo o que eu esperava que fosse. Estava satisfeito. Estava com o espírito alimentado. Estava pronto para entrar na batalha.

O desejo de encontrar Payakan não se concretizou. Meu sonho foi entorpecido quando, um mês antes da dita conferência, o líder Kayapó foi acusado de violentar uma jovem e o fato o tirou dos planos dos organizadores. Certamente não haveria clima para sua presença. Vozes corriam sobre a “armação” contra o cacique. Os inimigos do meio ambiente vibraram tentando criminalizar todo o movimento indígena. Não conseguiram. As outras lideranças “seguraram a onda”, comportamento próprio de quem sabe que o todo é maior que a parte.

Anos mais tarde, já tendo sido inspirado por tantos líderes, vim a conhecer Paulinho, com quem tive muitas, boas e elucidativas conversas. Encontrei um ser humano incrível, cheio de energia e extremamente otimista. Nele ainda morava a garra do seu tempo de juventude. Juntos participamos de alguns eventos e pude aprender ou reaprender ensinamentos que sempre estiveram em mim por ter bebido na fonte ancestral.

No último dia 17 de junho fui surpreendido com a notícia da morte do guerreiro, abatido que foi pela covid-19. Não pude segurar as lágrimas. Chorei por ele e por todos os guerreiros indígenas que já tombaram pelo mesmo vírus. Chorei também pelos que vieram antes, fazendo-me lembrar que vivemos na circularidade da vida. Somos folhas de uma árvore que, vez ou outra, balança pela força dos fortes temporais. Infelizmente às vezes eles levam consigo folhas ainda verdes que poderiam dar muita força para a vida da árvore. Faz parte do processo da natureza. Ainda assim não deixa de ser uma triste perda.

Lembro aqui que tem gente que passa pela nossa vida e não deixa nada. Tem pessoas que passam e deixam marcas. Outras simplesmente não passam, viram memória.

Creio que nossos antepassados são folhas que caíram para virar alimento da própria árvore. Nascemos nós também folhas. Sugamos sua energia para alimentar nossa coragem e seguirmos em frente.


Daniel Munduruku é um escritor indígena brasileiro, autor de 50 livros para crianças, jovens e educadores. Recebeu diversos prêmios no Brasil e no exterior, entre eles o Prêmio Jabuti, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras e o Prêmio Tolerância (Unesco). É graduado em filosofia, com licenciatura em história e psicologia, doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e pós-doutor em literatura pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).

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Daniel Munduruku é um homem indígena, de mais de 50 anos. A foto é de close, ele está de frente, sorrindo. Ele usa uma faixa cobrindo a testa e seus cabelos são longos e compridos.

Daniel Munduruku – Mekukradjá

“As pessoas olham para mim e veem o tal do índio, que é o que está no imaginário delas, mas aquele que eu sou efetivamente ou aquilo que eu trago dentro de mim não tem nada a ver com essa palavra”