Para o Brasil ver a si mesmo: identidades regionais e questões do cinema
por Duanne Ribeiro
Podemos conhecer o Brasil por meio do cinema? Três mostras em cartaz na plataforma Itaú Cultural Play comportam essa possibilidade: O ser amazônico, com sete filmes do Norte; Reexistências audiovisuais nordestinas, com nove obras do Nordeste; e Um olhar do centro, que traz cinco criações do Centro-Oeste. Para falar de algumas das produções disponibilizadas para streaming gratuito – dois longas e um curta –, conversamos com os diretores Marcelo Díaz, Clébson Francisco e Sérgio Andrade. Além de comentar seus trabalhos, eles falam sobre circulação do cinema e sobre imagens do país.
Sérgio Andrade dirigiu A floresta de Jonathas (2012), que exibe a rotina de um morador de uma zona rural no Amazonas; ele vende frutas, conhece turistas e vive uma aventura: “Jonathas se envolve e se perde na floresta para aprofundar o significado monumental da natureza”. Ainda segundo Sérgio, o longa “trata do desbravamento de uma fronteira cultural e estética muito particular, a do universo caboclo, a do homem da Amazônia” e, “livremente inspirado em fatos reais, é mais uma história de vidas perdidas”.
Clébson Francisco é o diretor de Não fique triste, menino (2018). O curta trabalha temas como identidade negra, sexualidade e diáspora africana. “Meu filme”, conta Clébson, “é uma obra de montagem de arquivo feita como forma de reposicionar a memória enquanto território de vida ativa. É um filme em que me imagino não esquecendo, ou não deixando que me façam esquecer, das memórias partilhadas coletivamente por nós”. Nesse processo, mesclam-se fotografias de infância e referências artísticas, como os irmãos Arthur e João Timótheo da Costa, pintores, e o músico Milton Nascimento.
“Com essas imagens todas, esses sons”, fala ele, “tento construir outras temporalidades e me inserir, mesmo que de forma ficcional. Entendo ‘ficção’ não como algo inventado, mas como uma operação que reconstrói os arquivos e os ressignifica noutra linguagem”.
Já Marcelo Díaz esteve à frente de Maria Luiza (2019), que retrata a primeira transexual a integrar a Força Aérea Brasileira (FAB). Maria Luiza, define o diretor, “é uma pessoa simples, recatada, tímida, goiana do interior. Muito católica e militar por escolha. É fã de automobilismo. Está fora das caixas que costumamos ver e estabelecer”. Após “22 anos de serviços prestados, com medalhas e alta conceituação”, como descreve Marcelo, ela foi aposentada por invalidez pela Aeronáutica – “exclusivamente por ser uma pessoa trans”, assevera ele, que decidiu “conhecer argumentos e razões desse preconceito”.
Maria Luiza teve impacto nessa realidade. De acordo com o diretor, o Supremo Tribunal de Justiça reconheceu o preconceito sofrido pela militar, tendo citado o documentário feito por Marcelo como prova. “Para mim”, comenta ele, “talvez o maior prêmio até aqui”.
“Falta espaço para o que se produz fora do eixo Rio-São Paulo”
Em certo sentido, as mostras O ser amazônico, Um olhar do centro e Reexistências audiovisuais nordestinas estão na contramão do panorama audiovisual estabelecido no país, que privilegia produções do Sul e do Sudeste. Além de questões econômicas e de política cultural, essa situação leva o Brasil a “se ver” pelo ponto de vista dessas regiões. Questionamos os diretores sobre esse cenário.
Para Marcelo, as condições de circulação de obras do Centro-Oeste são “restritas, ainda mais nestes tempos em que a cultura passa por uma profunda desvalorização”. Diz ele, “falta espaço, investimento e valorização reais e permanentes ao que se produz fora do eixo Rio-São Paulo para que o país possa conhecer mais a si próprio. Falta reconhecer a cultura como essencial, como meio de formação, mudança, sustentabilidade. Valorizá-la concretamente, para além de espaços pontuais e recursos restritos”.
Diagnóstico semelhante aparece no depoimento de Sérgio: “Sempre apoiei as iniciativas de descentralização da atividade audiovisual no Brasil; começamos a trilhar novos e eficientes caminhos para isso, vimos surgir a regionalização de editais e a formação de novas plateias”, recorda ele, “mas é muito difícil transpor certo bairrismo do cinema brasileiro, arraigado à comunidade produtiva da região Sudeste. Também, o desapreço à cultura por parte do governo federal atual fez ruir nossos ideais”.
Clébson, que desenvolve o Mapa difusão do cinema negro no Brasil, apresenta um indicativo de avanço. Segundo o diretor, esse mapeamento, iniciado em 2018, catalogava “cerca de dez eventos voltados para a difusão da produção cinematográfica de autoria negra no país, que se concentravam sobretudo no Sudeste, mas que estavam também no Nordeste”. Três anos depois, a situação captada na pesquisa é outra: “em 2021, esse número saltou para quase 30 festivais e mostras, espalhados pelas cinco regiões”.
Tal transformação, entende o artista, se deve tanto à criação de eventos de pequeno e médio portes quanto à multiplicação dos canais disponíveis para exibição de produção audiovisual – para além dos cinemas, espaços virtuais, plataformas de streaming.
Esse último recurso – a transmissão de filmes sob demanda pela internet – é visto pelos três entrevistados como uma ferramenta com boas potencialidades. Alterado o ambiente midiático, há agora uma possibilidade maior de que o Brasil se conheça. Nessa direção, analisa Marcelo: “A TV ajudou a difundir estereótipos e contribuiu para a desvalorização da riqueza e da diversidade do Brasil, com uma visão maniqueísta do país. Atualmente, creio que há uma mudança, principalmente nos canais por assinatura”.
“Chega a ser uma questão política”, diz Sérgio, “no Brasil, temos diferentes fusos, climas e compreensões – por enquanto desequilibrados. Assim como aprendemos a conviver com sotaques cariocas ou paulistas, é preciso que o Brasil se liberte de preconceitos e bairrismos e assimile sua vocação multicultural. É fundamental que novos canais levem sotaques e rostos diferentes e raros para nossa cinematografia. Espero que surjam cada vez mais mostras em streaming, para que se descubram novas linguagens e histórias”.
“Temos de reconhecer que o Brasil é uma grande ficção”
Por essa via, o Brasil tem a chance, enfim, de enxergar a si? Clébson problematiza a questão: “A gente tem de se perguntar: que Brasil é esse? Que cultura é reconhecida como cultura brasileira? Que outras culturas brasileiras são essas e, assim, qual Brasil vai conhecer os seus outros brasis?”. Na história do país, há uma fonte primordial para responder a essas perguntas.
“Temos de, primeiramente, reconhecer que o que chamamos de Brasil é uma grande ficção”, postula ele, “o Brasil enquanto projeto de nação se resume aos territórios do Sudeste, do Sul e de parte do Centro-Oeste – tudo que está para além disso recebe outros nomes, é dito como fora, estrangeiro ou imigrante. O que está do lado de cá da fronteira é o Nordeste, é a Amazônia, o Norte; o que está do lado de lá da fronteira é o Brasil, a nação”. Esse histórico, elucida ele, determina problemáticas socioculturais e estipula a recepção das obras e a construção de sujeitos e estilos “regionais”.
“O filme feito aqui no Ceará é chamado de cinema local, mas se esse mesmo filme fosse filmado na periferia de São Paulo ou na área média de Curitiba seria chamado apenas de filme, não seria cinema paulista ou cinema curitibano. Seria diretamente cinema, sem subtítulos”, explica Clébson. Em outro nível, segue ele, “quando eu falo, falo na posição de um sujeito nordestino, mas quando outra pessoa fala é na posição de brasileiro, pois nos foi colocado que nós de cá somos nordestinos e os de lá são brasileiros”.
Essa condição, no entanto, pode ser apropriada e remanejada, como sublinha o diretor: “Acabamos por assumir isso e transformar esse paradoxo em possibilidades imagéticas e identitárias. Talvez seja assim, um pouco, que nós forjamos múltiplas territorialidades. E assim operamos e criamos para além do Brasil, para além das fronteiras”.
Assista aos filmes na Itaú Cultural Play
Veja A floresta de Jonathas, Não fique triste, menino e Maria Luiza na Itaú Cultural Play, gratuitamente. Confira também as outras produções destacadas em cada mostra: O ser amazônico, com curadoria do Matapi – Mercado Audiovisual do Norte; Um olhar do centro, com curadoria do Mercado Sapi; e Reexistências audiovisuais nordestinas, com curadoria do Nordeste Lab. Não deixe de ver também o restante do catálogo.