Por Marcella Affonso

No ano passado, no Brasil, 193 mil mulheres acionaram a Lei Maria da Penha para registrar queixa de violência doméstica; pelo menos 61 mil foram vítimas de estupro – considerando-se apenas os casos dos quais se tem registro; e quase 6 mil foram assassinadas dentro do próprio lar, sendo mais de mil unicamente por serem mulheres*. Os números são conhecidos, noticiados pela imprensa, e a causa primeira de todas as agressões, o machismo diário e sistemático, é cada vez mais discutida. Ainda assim, mulheres permanecem sendo covardemente violentadas, agredidas e mortas por desconhecidos, namorados, maridos e ex-companheiros todos os dias, ano após ano.

Buscando compreender os motivos que levam essa realidade a ser perpetuada de geração em geração, o projeto Sentinelas – Oficina Audiovisual propõe a abertura de um diálogo com homens condenados à pena de reclusão cujos crimes se relacionam com a violência de gênero. “Em geral, discutimos o efeito dessa violência e conversamos com as vítimas – o que é muito importante que seja feito –, mas começamos a pensar em como poderíamos entender esse outro lugar, que é o da criação que leva os homens a achar que essa é a forma de se relacionar com uma mulher”, comenta a documentarista Eliza Capai, que ministrará a atividade junto do jornalista e fotógrafo Bruno Miranda.

A ideia de abordar o tema colocando o agressor no centro do debate, como conta Eliza, surgiu de uma conversa que teve com Bruno sobre a educação que ambos tiveram em Vitória, no Espírito Santo, de onde vieram. “Fomos sacando que para mim, enquanto mulher, era algo muito normalizado que um cara no Carnaval, por exemplo, podia me puxar pelo braço ou pelo cabelo se quisesse me dar um beijo. Eu sabia que se eu não aceitasse todos os outros caras ao redor iriam começar a me xingar, me chamar do que fosse. Mas eu conhecia só aquilo, não existia outro jeito. Da mesma forma que para ele, enquanto homem, também era normalizado que esse era o único modo de tratar uma mulher. É um caminho quase que natural dentro de uma criação machista”, comenta.

A proposta era – e ainda é – que o assunto fosse tratado em um filme, o Sentinelas, mas, percebendo quão difícil e delicado seria trazer o agressor como protagonista da discussão e não a vítima, a realização de uma oficina audiovisual como espaço e tempo de pesquisa para o longa documental surgiu como meio para produzi-lo. Ainda em fase de desenvolvimento, o projeto ocorrerá ao longo de cinco meses, de abril a agosto de 2019, em ao menos uma penitenciária masculina do Espírito Santo. Desse modo, por seu alto índice de violência contra a mulher – em 2017 apresentou a maior taxa de feminicídio da região Sudeste e a quinta maior do país* –, o estado servirá de microcosmo para lançar luz sobre a realidade brasileira.

Penoso, necessário

Ao longo dos encontros serão exibidos filmes que servirão de base para ensinar aos presos técnicas de fotografia, captação de áudio, roteiro, dramaturgia e reportagem. Também serão realizados exercícios práticos que resultarão na produção de cartas audiovisuais, ou seja, filmes curtos feitos pelos próprios condenados que serão encaminhados para fora da penitenciária. “Já no primeiro dia queremos fazer algumas entrevistas para ouvir quem eles são, por que estão ali, como é estar preso, como se imaginam saindo daquele lugar. Depois, a ideia é que eles também comecem a fazer o papel de entrevistadores, assumindo essa posição, e nessa medida vamos percorrendo os curtas”, conta Eliza.

A proposta principal, contudo, é que a imersão no sistema carcerário funcione como uma oportunidade de troca entre os realizadores e os participantes, já que todo o material e todas as atividades abordarão o tema da violência de gênero e a situação em que os condenados estão, levando-as a se enxergar como agentes responsáveis pelo problema apresentado.

Assim, se por um lado se pretende escutar atentamente as histórias por trás de cada agressor ali presente, por outro espera-se que, a partir das discussões e reflexões, esses homens consigam também escutar uns aos outros e a si próprios e, dessa forma, repensar suas próprias condutas. “Gostaríamos de mostrar a eles que a violência contra as mulheres não é natural como nossa educação faz parecer ser”, observa Bruno.

Um dos projetos apoiados pela última edição do programa Rumos Itaú Cultural, o Sentinelas – Oficina Audiovisual encontra-se atualmente no processo de seleção das penitenciárias. “Acabamos de visitar a primeira e foi muito positivo; a equipe nos recebeu bem, com muita vontade que role a oficina lá dentro”, conta Eliza sobre a experiência vivida, impressão compartilhada por Bruno.

Ao todo serão visitadas quatro instituições. E, como observa a documentarista, apesar de estarem trabalhando para apresentar aos participantes uma oficina bem estruturada, a intenção é que tanto ela quanto Bruno, como realizadores, se mantenham abertos para a escuta, para que o projeto possa ser transformado a partir desse encontro. “Eu sempre conversei com mulher; meu trabalho é muito com mulheres, e acho que vai ser um processo muito difícil, mas também acho que é nessa dificuldade que vão surgir aprendizados muito profundos”.

 

*Dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2018.

 

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