por Ruy Castro
É como se, ao nascer, em 1922, a Semana de arte moderna tivesse decretado um sigilo de cem anos sobre certas questões. Nem o seu recente centenário, festejado com palestras, debates, seminários, exposições, concertos, balés, performances, teses acadêmicas, dezenas de livros e centenas de artigos em jornais, nem assim, repito, conseguiu responder a elas. Exemplos: alguém já viu alguma foto do que aconteceu no Teatro Municipal naquelas gloriosas noites de 13, 15 e 17 de fevereiro? Pode-se determinar tudo que foi realmente dito e declamado no palco? Sabe-se de verdade qual foi a reação dos visitantes aos quadros expostos no saguão? E por que o próprio Municipal não guardou um prego ou parafuso usado naquelas noites?
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>>Fevereiro: Luz Ribeiro
>>Março: Heloisa Hariadne
>>Abril: Amara Moira
>>Junho: Vânia Leal
>>Julho: Indi Gouveia
>>Agosto: Miguela Moura
O sigilo continua. Onde estarão os artigos sobre o evento n’O Estado de S. Paulo e na Folha da Noite, sem falar na imprensa carioca, a única de repercussão nacional? E, falando nisso, por que a participação dos cariocas na Semana foi sendo apagada no decorrer das décadas, a ponto de, em 1942, já não restar vestígio dela?
Veja bem: o Rio de Janeiro não reivindica nenhuma responsabilidade pela Semana. Ela foi um fenômeno estritamente paulistano – de bairro, mesmo. Como espero ter deixado claro em meus livros Metrópole à beira-mar (2019) e As vozes da metrópole (2021), ambos pela Companhia das Letras, o Rio já era moderno em 1922, não precisava ser modernista. Era a porta de entrada e de saída do país para o mundo, abrigava escritores vindos de todos os estados, contava com 20 jornais diários, tinha prédios de dez andares com elevador e ficava aceso a noite inteira. Era a metrópole, a única cidade do Brasil com mais de 1 milhão de habitantes. E, em setembro daquele ano, sediaria a Exposição internacional do centenário da independência, que receberia quase 20 países expositores, conheceria importantes novidades tecnológicas, ficaria um ano em cartaz e seria visitada por 2 milhões de pessoas. Precisava de uma Semana de arte moderna?
Ideia de carioca
Isso não quer dizer que, mesmo de longe, o Rio não tenha participado dela. A própria ideia da Semana veio de um carioca: Di Cavalcanti, então por acaso estudando em São Paulo. Foi Di, em 1917, quem apresentou Anita Malfatti a Oswald de Andrade e aos outros. Depois, em fins de 1921, Di os apresentou a Graça Aranha, a qual sugeriu que ele levasse a ideia da Semana ao milionário paulista Paulo Prado, que poderia bancá-la. O que Di fez, e, não fosse por Graça Aranha – escreveu Oswald em seu Diário confessional –, a Semana não teria se realizado no Municipal. “Não passaria de um coreto no Bixiga”, disse Oswald. Mas isso não interessa. Com ou sem Graça Aranha, a Semana teria acontecido do mesmo jeito, assegurou Mário de Andrade.
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Por causa do carioca Ronald de Carvalho, também apresentado por Di aos modernistas, a Semana teve a participação de Villa-Lobos, que eles não conheciam. Mas, no que conheceram, ficaram encantados, e Villa foi o único a ter sua obra apresentada nas três noites da Semana – aliás, duas noites e uma matinê. Sua música, interpretada por ele ou pelos músicos que ele levou do Rio, ocupou 30% do primeiro dia, 30% do segundo e 100% do terceiro. E nem poderia ser diferente, porque, afinal, Villa não tocou pela glória. Foi pago para isso, e quem bancou essa despesa foi o governador de São Paulo, Washington Luiz, amigo íntimo de Oswald e futuro padrinho de casamento do antropófago.
Nos anos seguintes, o Rio, involuntariamente, continuou a prestar serviços ao pessoal da Semana. O Manifesto pau-brasil, por exemplo, saiu pela primeira vez, em 1924, no jornal carioca Correio da manhã, que era lido em todo o país. O famoso discurso em que Graça Aranha rompeu com a Academia Brasileira de Letras (ABL), o que finalmente chamou a atenção nacional para a Semana – até então um segredo de Estado –, foi lido por Graça, também em 1924, no saguão da própria ABL, no Rio, com a presença dos modernistas, que viajaram de propósito para a ocasião. E foi no Palace Hotel, na Avenida Rio Branco, em 1929, que Tarsila do Amaral realizou sua primeira exposição individual no Brasil.
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Os modernistas tinham muita dificuldade para publicar seus livros. Como estes não tinham público, nenhum editor os aceitava – confira no insuspeito Mário de Andrade por ele mesmo, de Paulo Duarte. As primeiras edições dos hoje clássicos Pauliceia desvairada, Memórias sentimentais de João Miramar e até Macunaíma foram bancadas por seus próprios autores e encalharam nos seus armários. Mas, em 1932, a editora carioca Ariel, de Agrippino Grieco e Gastão Cruls, publicou comercialmente o Serafim Ponte Grande, de Oswald. Encalhou do mesmo jeito, porém o livro ressuscitaria 40 anos depois. E, finalmente, foi no Palácio Itamaraty, no Rio, a convite da também carioca Casa do Estudante, que Mário fez sua famosa palestra em 1942 – uma espécie de obituário da Semana de arte moderna, vista então por ele como algo que tivera a sua hora, mas já pertencia ao passado. Incrível como até Mário de Andrade podia se enganar, não?
Mas atenção: não estou contando isso para botar o Rio de Janeiro na história e muito menos para “levar a Semana de arte moderna para o Rio”, como às vezes me acusam. Repito: a Semana foi um fenômeno estritamente paulistano – de bairro, mesmo. O Rio não passou de mero coadjuvante, e olhe lá. Prestigiou o evento, participou com alguns nomes e ajudou a engrossar o caldo, mas só isso. E, como é de seu feitio, nunca pediu nada em troca, nem tinha por quê.
E, agora, “bora” para o bicentenário da Semana!
Ruy Castro é jornalista, colunista da Folha de S.Paulo e escritor.