Intercâmbio cultural leva música e criatividade para município indígena no Acre
23/04/2019 - 18:15
por Marina Lahr
Uma melodia encantadora, um ritmo convidativo, uma composição cativante. Não existem no mundo muitas barreiras que consigam resistir às notas musicais e aos acordes de uma boa canção. Consagrada como linguagem universal, a música é uma arte capaz de aproximar grupos sociais distintos e reunir diferentes culturas em um mesmo universo.
A perspectiva da musicalidade de exceder os entraves característicos da comunicação, limitada muitas vezes pelo sem-fim de idiomas e dialetos conhecidos e pelas fronteiras geográficas, foi o estímulo primeiro para que Nana Vasconcelos Orlandi – produtora, musicista e geógrafa nascida no Rio de Janeiro – mergulhasse, em conjunto com a também produtora Carou Trebitsch e a jovem indígena Rita Pinheiro Sales Kaxinawá, no desenvolvimento de uma iniciativa singular, capaz de harmonizar os prazeres da boa música com os aprendizados propiciados por ela e originar, dessa forma, uma extensa troca cultural.
A primeira nota
O etnohaus, coletivo que possui sede no bairro carioca de Botafogo, surge, nesse contexto, como uma das bases do projeto idealizado por Nana. Criado há oito anos para suprir a necessidade de um espaço que fosse voltado para a criação e o exercício das atividades musicais da produtora e de seus amigos, o etnohaus passou, nos momentos seguintes à sua fundação, a ser constituído por artistas e produtores de diferentes áreas, que se propuseram a estruturar e realizar projetos, principalmente na área musical, e a manter, de forma colaborativa, uma casa que funcionasse ao mesmo tempo como estúdio, incubadora de iniciativas e centro cultural – este oferecendo uma programação dinâmica de shows e cursos.
A segunda nota
Essa funcionalidade multíplice do coletivo proporcionou, em 2017, a conexão com o Guardiões Huni Kuin, grupo organizado inicialmente por representantes do povo nativo Huni Kuin da Amazônia e que foi responsável por trazer, na década passada, de forma inédita, os ensinos da floresta para as grandes cidades do país, instituindo os primeiros rituais do chamado Nixi Pae – conhecido também como ritual do cipó – na cidade do Rio de Janeiro.
Os Guardiões, conectados com o etnohaus por meio de uma de suas integrantes, a produtora carioca Carou Trebitsch, deram início, assim, a uma série de reuniões artísticas na sede do coletivo, que vieram a se tornar mais tarde o Encontro Mi Mawai – em essência, um diálogo dos artistas músicos Huni Kuin com diversos músicos da cena urbana contemporânea. Desde a sua concepção, o encontro promoveu seis shows dessa série e o plano de seus idealizadores é lançar, no futuro, discos e clipes diferenciados de cada apresentação já concretizada.
A terceira nota
Entre as edições do encontro, a mais frutífera foi, de certa forma, a terceira. Ainda em 2017, o Mi Mawai uniu membros do grupo percussivo Maracutaia e três músicos do grupo Kayatibu. Este último despontou em 2013 como uma coletividade de jovens indígenas, também da etnia Huni Kuin, que vivem no pequeno e isolado município do Jordão, no interior do Acre, que se localiza numa confluência de rios componentes da Terra Indígena Kaxinawá do Rio Jordão.
O Kayatibu foi criado com o propósito de desenvolver a cultura Huni Kuin a partir da pesquisa das canções, histórias, danças, artes e rituais do povo nativo. Por meio desse movimento, o princípio dos jovens se baseia em aprofundar a bagagem ancestral, expandir a expressão criativa e se tornar, cada vez mais, um ponto de referência para crianças e jovens indígenas – e não indígenas também – do município.
A tríade
Da associação entre etnohaus, Guardiões Huni Kuin e grupo Kayatibu nasceram os primeiros elementos da partitura de Kayatibu e Encontro Mi Mawai, um projeto norteado desde seus primeiros tons pela troca comunitária de saberes. Nana Orlandi, cocriadora da proposta contemplada pelo programa Rumos Itaú Cultural, descreve, em síntese, os objetivos e orientações da iniciativa.
“Todos os projetos que temos realizado com o povo Huni Kuin vêm de uma vontade de retribuir muita cura e aprendizados que recebemos da cultura, da espiritualidade e da ancestralidade Huni Kuin. Realmente acreditamos que, neste momento, temos a possibilidade e a responsabilidade de construir uma aliança, na qual cidade e floresta possam estabelecer uma troca justa, sempre em favor da luta e da resistência dos povos originários do Brasil e do mundo”, reflete a produtora.
A música, como também explica Nana, é a “arte da linguagem universal e sagrada, que permite que esse encontro aconteça apesar das grandes diferenças culturais, sociais e inclusive linguísticas, visto que o povo Huni Kuin utiliza, basicamente, sua língua própria – o hatxa kuin – para se comunicar”.
A melodia
Concebido inicialmente como uma série de oficinas de instrumentos e práticas de canto e corpo, o Kayatibu e Encontro Mi Mawai ganhou sons muito diferentes conforme iam se afinando os preparativos para a efetivação do projeto, realizado no próprio município do Jordão.
Marcada fortemente pela expressão artística, que acontece de forma muito espontânea no cotidiano, independentemente de distinções de gênero ou idade, a cultura Huni Kuin faz com que os membros do grupo Kayatibu sejam artistas muito talentosos e genuínos. Diante disso, as idealizadoras do projeto perceberam que a vivência inicialmente planejada funcionaria muito mais como uma residência artística do que uma oficina musical somente.
Assim, depois de um longo período de planejamento e pré-produção no mês de março deste ano, Nana Vasconcelos Orlandi, Carou Trebitsch e Rita Pinheiro Sales Kaxinawá partiram para realizar 11 dias de vivência no Jordão.
A equipe que foi para o município acreano, composta ainda dos músicos-professores Luiz Gabriel Lopes, Rafael Rocha e Fábio Lima e dos produtores audiovisuais Lucas Canavarro e Chaya Vazquez, se juntou a 15 integrantes do grupo Kayatibu, reunindo ao final mais de 20 pessoas da comunidade local.
Nos quatro primeiros dias de vivência foram realizadas as atividades específicas com os instrumentos musicais, enfocando o aprendizado de teorias, práticas de voz e composição e a capacitação para uso e manutenção dos equipamentos adquiridos pelo projeto – que acabaram doados para o grupo Kayatibu. Nos dias seguintes, teve início a produção musical em si, em um processo que misturou oficina de gravação e registro das faixas que vão compor, em breve, um vídeo-álbum. O repertório é composto de mais de 20 faixas autorais e algumas versões de cantos tradicionais na língua hatxa kuin.
Em paralelo a todo esse processo, a produtora Nana Orlandi conta que, além das oficinas, foram realizados também momentos de prática musical coletiva, encontros de apreciação de referências de clipes diversos, uma apresentação na escola pública local e uma jiboia musical pelas ruas da cidade – dinâmicas que enriqueceram ainda mais o intercâmbio cultural entre a arte urbana e a arte nativa.
A próxima etapa compreende a finalização das faixas gravadas e do vídeo-álbum – produto final do projeto Kayatibu e Encontro Mi Mawai, com previsão de lançamento para o início do segundo semestre de 2019, nos canais e perfis da iniciativa.
“Cultura é proteção”
A frase acima, proferida pelo já falecido pajé Huni Kuin Agostinho Ikamuru, é, para a idealizadora Nana Orlandi, a sinfonia final de toda a proposta Rumos.
“O grupo Kayatibu surgiu com o propósito de pesquisar a cultura ancestral porque por meio desse estudo os jovens se aproximam dos conhecimentos do seu povo, assim como fortalecem sua identidade, permitindo que esses conhecimentos se perpetuem e sejam passados de geração em geração”, esclarece.
O povo Huni Kuin, segundo os relatos dos responsáveis pelo projeto, foi quase que dizimado pela exploração da seringa nas décadas de 1970 e 1980. A partir da demarcação de suas terras, vive agora um intenso processo de resgate e fortalecimento de sua cultura, língua, espiritualidade e conhecimentos tradicionais, que tem despertado o interesse de muitas pessoas por todo o mundo. Nana Orlandi descreve, assim, a importância da conexão do etnohaus com os jovens indígenas do Jordão.
“O grupo Kayatibu foi um dos primeiros coletivos de jovens que surgiu com o propósito de preservação da cultura, inclusive sendo pioneiro na forte presença de lideranças femininas. Nesse sentido, serviram de referência para o surgimento de outros grupos dentro e fora da aldeia. É como se a cultura fosse uma árvore que, quanto mais aprofunda as raízes, mais e melhores frutos são gerados. É uma via de mão dupla que se retroalimenta”, analisa.
Por fim, sobre as expectativas dos idealizadores quanto aos efeitos que Kayatibu e Encontro Mi Mawai pode exercer na rotina dos Huni Kuin, diz: “Esperamos que, por um lado, a capacitação material e técnica facilite a autonomia na produção de projetos próprios. Por outro, torcemos para que os conhecimentos adquiridos e as trocas estabelecidas fortaleçam o trabalho do grupo, a fim de atrair mais jovens que se interessem pela própria cultura. Que o trabalho do Kayatibu, assim como o de outros coletivos artísticos indígenas, possa ser amplamente divulgado, alcançando um número cada vez maior de pessoas e permitindo que as novas gerações possam viver e trabalhar com sua cultura e seus modos de vida característicos”.
*O povo Huni Kuin e sua produção cultural inspiraram outros dois projetos do programa Rumos Itaú Cultural (edição 2013-2014) e uma mostra, realizada na sede do instituto (em 2017). Uma das proponentes do projeto Kayatibu e Encontro Mi Mawai, Rita Kaxinawá, participou da montagem da exposição.
Confira:
Rumos 2013-2014 – Huni Kuin: os Caminhos da Jiboia
Rumos 2013-2014: Um encontro mágico com os Huni Kuin
A exposição Una Shubu Hiwea – Livro Escola Viva do Povo Huni Kuĩ do Rio Jordão