por Um por Todos – Assucena Assucena

 

Na primeira vez que fui chamada de TRAVESTI, demorei a entender quanto aquela palavra me vestia. Eu a vislumbrei em letras garrafais, colossais. Não titubeei. Embora não tivesse plena consciência da performance que me nomeava, eu agarrei a palavra, a engoli, a digeri e segui com ela, discernindo-a em mim, para mim, sendo eu a própria palavra em movimento. Já que a primeira impressão é a que fica, imprimi inocentemente como regra o jeito carinhoso da primeira vez que fui chamada de TRAVESTI. Embora em mim o termo estivesse adornado de privilégios de uma estudante universitária de classe média, essa diferença de classe se diluía a nada toda vez que meu corpo travesti se atirava porta afora de minha casa, para conquistar sua dignidade de gente, nos espaços públicos à luz do sol. O que não se diluía com o todo era o meu corpo. A palavra foi ganhando outros contornos.

Um corpo “estranho”, um corpo não diluível no todo, um corpo xingável, no qual sua expressão como matéria parecia insultar pelo motivo de ser/estar. Entender-se no mundo dessa maneira não ruiu a primeira impressão que ficou da palavra, mas a todo momento me fez querer resgatar e defender seu sentido primário. Quando a concepção de sua identidade no mundo se dá para os outros como uma anomalia social, imbuída da mais vil desumanização, é preciso confrontar as narrativas das palavras que te nomeiam na ágora das disputas ideológicas: A RUA. E no caso das TRAVAS tem hora: à luz do dia. Não é à toa o ditado: “Bota a cara no sol, querida”.

Quando digo “se atirar porta afora de minha casa”, digo porque esse deslocamento do privado para o público é cruel para nós. O enfrentamento de todas as violências verbais e físicas pode não ter limites e te coloca diante de uma realidade que haja saúde mental para aguentar o tranco! Esse embate começa em casa. Tive a sanidade testada pelo famigerado espelho, janela sincera das ideias de meus enfrentamentos cotidianos. O espelho é a rua dentro de casa, o espelho é o olhar pontiagudo a me transpassar no metrô, ou a palavra lançada pela janela de um carro com a intenção de me ferir como pedra. Eis um corpo nomeado de TRAVESTI a TRANSitar entre o público e o privado.

As pessoas às vezes confiam na diluição de suas individualidades nos espaços públicos a ponto de tomar como indivíduo o poder de massa para doutrinar, disciplinar e violentar um corpo “TRANSgressor”. Esse reivindicar de massa para si como indivíduo tem um óbvio fundamento no todo: a massa é transfóbica, a massa é machista e sua agressão tem rosto e digital. Quando digo massa, estou falando dos engravatados da Avenida Brigadeiro Faria Lima, estou falando dos olhares de desaprovação dos moradores dos Jardins, da análise minuciosa de quaisquer atendentes de quaisquer estabelecimentos comerciais no centro de São Paulo, a mesma análise que recebo quando meu corpo adentra nos transportes públicos de Curitiba, apenas para se deslocar de um canto para outro, como todo corpo no mundo.

Um dia, tomando uma cerveja na companhia de duas amigas cisgêneros, num bar na região da Praça Roosevelt, uma travesti me cumprimentou e manifestamos rapidamente signos de empatia em nossa troca de olhar. Começamos uma conversa que lhe foi estranha, ela me disse que não encontrava ameaça em mim. A rua, mais propriamente os pontos de prostituição, a insensibilizara: quando deu por si, não confiava nem nas parceiras de ponto, pela disputa acirrada por clientes que a prostituição provoca. Nós nos abraçamos por um tempo, até a despedida. Fomos ali uma o espelho da outra no sentido mais narcísico possível. Narciso não se apaixonou por ele mesmo, ele se apaixonou por sua imagem. Ela era a minha imagem e eu a imagem dela. Ou, como me disse Larissa Ibúmi, melhor que Narciso: “Fomos como Oxum mirando seu espelho, despida do clichê da vaidade, como quem enxerga o outro através de si, a deusa olha o espelho não apenas para mirar-se, mas para atentar às ameaças que sobreiam suas costas, protegendo assim toda sua comunidade”. Era com a tradução daquele afeto caçado, num boteco paulistano, que buscávamos nos ver, e naquele dia nos achamos, desarmadas e sensíveis a um abraço vestido de palavra, colossal e em letras garrafais: TRAVESTI.

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