por Um por Todos – Assucena Assucena

 

Entrego este texto à redação antes das eleições. Com uma angústia latente no espírito, mas também com o otimismo de uma virada progressista diante da ameaça autoritária e fascista contra a tão jovem democracia brasileira. O candidato de extrema direita declarou em alto e bom som todas as atrocidades possíveis contra as liberdades individuais e coletivas. O que fazer quando os ouvidos de boa parte de meus concidadãos apoiam o sentido literal desses enunciados ou estão indiferentes a ele? 

A indiferença é capaz de assassinar, escravizar, torturar e oprimir com a pseudoelegância dos homens de bem, respaldados pelas más intenções de suas heréticas interpretações bíblicas. A indiferença elege a "paz da sala de estar" tutelada pela indecência violenta da indústria bélica na mão de uma criança de 5 anos de idade. O professor Boaventura de Souza Santos apresenta uma definição bem pertinente: "Vivemos em sociedades que são politicamente democráticas, mas socialmente fascistas".

A indiferença não é indiferente. Afinal, as mulheres seguem sendo assassinadas pelos homens, e os homens seguem a assassinar as travestis do centro de São Paulo, e as travestis seguem na cidade a ser xingadas pelo olhar atento e consciente dos eleitores do candidato que se declara orgulhosamente um LGBTfóbico. 

O destino tomado pelo voto da maioria certamente neste momento vocês já sabem. Espero que o termo demo faça jus mais ao seu sentido etimológico, não dando de bandeja seu kratos à famigerada corruptela de nossos tormentos, o demo.

Eu sempre fui otimista no que diz respeito a acreditar que podemos ser uma nação justa, livre e com oportunidade para todos. Nem o golpe que destituiu a presidenta Dilma Rousseff tirou essa chama de otimismo que ardia em mim, apesar de ter sido um fato doloroso, e a despeito de discordar das muitas posturas de seu segundo mandato. A primeira vez, ao longo dos meus 30 anos, que me senti impotente e descrente de um país possivelmente justo, melhor e livre foi quando fui tomada pela consciência da morte da vereadora Marielle Franco, em 14 de março de 2018. Um assassinato político.

Descri da força de nossas instituições, ainda mais sabendo que o Rio de Janeiro fora entregue aos militares, com o velho e malandro argumento da imposição da ordem. O Rio de Janeiro viria a ser o arquétipo mais próximo do Brasil eleitoral deste ano – tendo um “bispo” neopentecostal na prefeitura, um governo militar no poder e uma vereadora comprometida com os direitos humanos assassinada pelas milícias. E o que seria da cultura do Rio nesse contexto assustador? Nem o que foi um dos maiores acervos museológicos do mundo se safou: o Museu Nacional pegou fogo. 

A ascensão do candidato antidemocrático do PSL é um retrocesso que atravessa o nosso passado, não apenas para os tempos da ditadura militar, mas também para uma continuidade de uma ordem sistêmica colonial no que diz respeito à manutenção das estruturas resultantes daquele período: genocídio indígena e negro; a escravidão que culmina na libertação inconclusa (isso quer dizer que todas as políticas de reparação histórica propostas por populações indígenas e negras serão relegadas a “meras aspirações esquerdistas”, não assumindo seu devido lugar na história). Nossas riquezas e nossas estatais, assim como nossos cérebros, alçarão forçadamente voos e assumirão destinos transatlânticos a empobrecer estes parnasianos versos de nosso hino: “Gigante pela própria natureza / És belo, és forte, impávido colosso”. Tudo que é nosso se torna tudo, menos nosso.

“Será que nunca faremos senão confirmar
A incompetência da América católica
Que sempre precisará de ridículos tiranos?
Será, será que será que será que será"*

Depois do pleito, falta ou sobra ao peito a esperança. 

 

*Trecho da música “Podres Poderes”, de Caetano Veloso, gravada no disco Velô, de 1984.

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