Por Luciana Amaral

A primeira técnica fotográfica, conhecida como daguerreotipia, foi patenteada pelo francês Louis Jacques Mandé Daguerre em 1839. Portanto, a fotografia analógica existe há quase 180 anos. Nesse longo período houve transformações significativas nos métodos de produção e na escolha de materiais relacionados à formação da imagem fotográfica. Podemos dizer que, até a invenção da fotografia digital, a imagem analógica era constituída de um suporte (metal, vidro, plástico e papel), ligantes (albumina, colódio e gelatina) e um formador da imagem, comumente a prata. Tentativas de correções em processos de degradação da imagem foram levando ao surgimento de novos materiais. Por exemplo, a busca por um ligante mais estável e robusto nos trouxe a gelatina, que ainda é utilizada nos processos analógicos.

Com o passar dos anos, as pessoas foram percebendo que as fotografias duravam muito tempo. Essa característica possibilitou o seu acúmulo e a sua utilização pelo ser humano para conhecer imagens de lugares nunca visitados e detalhes nunca vistos antes. Além disso, as fotografias ganharam espaço nos mercados de arte, pois começaram a ter alto valor comercial. Por esses motivos, conservá-las em acervos institucionais era um fator importante, tanto do ponto de vista cultural como do financeiro. A criação de uma disciplina voltada para estudos de conservação fotográfica veio ao encontro das necessidades de prolongar a vida dos diversos tipos de fotografia. No início da década de 1970, a George Eastman House formou uma equipe multidisciplinar, cujo foco era realizar pesquisas em preservação e conservação, bem como realizar o treinamento de profissionais da área, num curso com duração de três a quatro anos. Desse modo, hoje conhecemos técnicas e procedimentos seguros para a preservação e conservação de fotografias analógicas.

Por outro lado, a produção de imagem digital e sua disseminação é bastante recente. A primeira câmera digital foi inventada pela Kodak, em 1975 (CCD), mas o equipamento não foi fabricado em escala industrial, em razão de seu leiaute inadequado e de difícil utilização. A produção de câmeras digitais para fins comerciais foi iniciada pela Sony, em 1981, com a fabricação da câmera Mavica. No final da década de 1990, as fotografias digitais tornaram-se comuns e a sua disseminação aumentou notavelmente por meio do uso do CD-ROM e da internet.

É preciso entender que a imagem digital não consiste em um novo gênero fotográfico. Ela continua sendo um artefato bidimensional, formado a partir de um equipamento; a mudança é que o armazenamento de informações sensoriais, anteriormente registradas nos sais de prata, agora é feito com o uso de uma “equação numérica”, como diz Burmester, o que representa a imagem capturada. Até então, a imagem analógica era editada, recortada, retocada ou até colorizada a partir de processos manuais ou mecânicos; hoje, essas alterações são processos digitais, com a utilização de programas de computação mais rápidos e eficientes. Portanto, o surgimento da imagem digital ampliou as possibilidades de trabalho de pós-produção (BURMESTER, 2006).

No mundo digital, surgiram dois tipos de imagem: as nato-digitais, ou seja, formadas a partir da câmera digital, e as cópias digitais, feitas a partir da digitalização de uma imagem analógica. O arquivo produzido nesse segundo caso, composto de bits, pode ser adulterado ou “restaurado” com muito mais facilidade do que com o uso de técnicas de restauração em laboratório de conservação. Na entrada da era digital houve muitas discussões sobre restauração de imagem com uso de processos digitais.

Afirmar que a digitalização de imagens é a melhor solução para o seu restauro é exagero, pois o valor da fotografia é representado pela somatória de sua materialidade – o próprio artefato – e de seu conteúdo. As facilidades do uso de tecnologia digital para o restauro do conteúdo de fotografias são inquestionáveis. É possível recompor partes faltantes, corrigir contrastes, apagar riscos e rasgos, mas o artefato não é recomposto.

Outra questão que deve ser levantada é a da preservação de arquivos digitais, que podem ser constituídos de imagens nato-digitais, ou seja, formadas numa câmera digital, ou provenientes de um processo de digitalização. Em 1997, no II Seminário Internacional de Conservação e Preservação de Fotografia, realizado pela Fundação Nacional de Artes (Funarte) no Rio de Janeiro, já se discutia a preservação de acervos digitais. Lee Dirks, então gerente da Corporate Archives, da Microsoft, afirmava que a vida útil de um CD, única mídia existente para cópias digitais naquela época, teria uma durabilidade de cem anos, portanto, seria uma mídia para guarda de informações de valor histórico. Após 15 anos, período em que ocorreram vários estudos sobre preservação de acervos digitais, Humberto Innarelli (2012) afirma que um CD em ambiente climatizado [10 ºC e umidade relativa do ar (UR) de 25%] entraria na zona  vermelha (zona crítica para a conservação) em 200 anos, mas, nas condições atmosféricas mais condizentes com nossa realidade – 25 ºC e UR de 50% –, os processos de degradação de um CD começariam em apenas 25 anos. Enfim, a mudança para o processo digital é atualmente a tecnologia de transferência de informação mais utilizada, mas não garante o acesso aos conteúdos em longo prazo.

A mudança de paradigmas de preservação e conservação na entrada dos acervos digitais também é um aspecto importante a ser considerado. No caso das imagens analógicas, podemos afirmar que os tipos fotográficos existentes se concentram em técnicas já muito reconhecidas e estudadas, fabricadas em formatos padronizados e amplamente aceitos. Atualmente, existe amplo consenso sobre como preservar e conservar fotografias analógicas. Quando falamos de conservação digital, a recomendação é realizar backups, mas não é tão simples assim. A preservação de documentos digitais precisa ser realizada de forma dinâmica e é necessária certa autodisciplina.

A guarda de acervos digitais não consiste em somente armazená-los em um disco rígido magnético ou em discos ópticos numa área climatizada, mantendo a umidade e a temperatura dentro de uma faixa aceitável, como no caso das imagens analógicas. É necessária a atualização constante de hardware e software e a migração para mídias mais atuais. Além disso, há a questão financeira: existe o risco de não haver mais verbas para a manutenção dos sistemas e a migração de dados. Caso os recursos financeiros acabem ou se tornem muito escassos, a informação ainda poderá ser recuperada por um curto período de tempo, mas, em médio prazo, não poderá mais ser acessada. Seja por causa de arquivos corrompidos, seja por causa de formatos e tecnologia obsoletos, os conteúdos estarão completamente perdidos. Isso aponta para a necessidade de se manter uma política de preservação digital orientada não apenas à manutenção tecnológica, mas atenta aos custos implicados em médio e longo prazo, além da necessidade de uma comunidade de apoio com o conhecimento técnico adequado para assegurar a manutenção da infraestrutura, ou seja, preparada para preservar, renovar e reparar o sistema no qual os arquivos digitais estão guardados. Portanto, a digitalização não é a garantia da perenidade de um documento de valor histórico.

 

Luciana Amaral é historiadora e mestra em ciência da informação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP). É docente do bacharelado em fotografia e da pós-graduação em fotografia aplicada no Centro Universitário Senac e diretora da empresa Imagem e Informação.

 

Referências bibliográficas

BURMESTER, Cristiano Franco. Fotografia – do analógico para o digital: um estudo das transformações no campo da produção de imagens fotográficas (tese de mestrado). 103 f. Programa de Pós-Graduação da Ciência da Informação da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006.

CONARQ. Recomendações para digitalização de documentos arquivísticos permanentes, 2010. Disponível em: http://www.conarq.arquivonacional.gov.br/images/publicacoes_textos/Recomendacoes_digitalizacao_completa.pdf. Acesso em: 25 mai. 2016.

SCIENCE AND TECHNOLOGY COUNCIL. O dilema digital. Tradução: Fernanda Paiva Guimarães. Cinemateca Brasileira, 2009.

_________. O dilema digital 2. Tradução: Millard Schisler, Patricia de Filippi e Osvaldo Emery. Instituto Butantã, 2015.

THE BRITISH LIBRARY NATIONAL PRESERVATION OFFICE. Preservação de documentos: métodos e práticas de salvaguarda. Tradução: Zeny Duarte. Bahia: EDUFBA, 2003.

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