Aberto em junho de 2013, o .Aurora é um espaço autônomo formado e gerido por cinco artistas (Bel Falleiros, Diogo Lucato, Francesco Di Tillo, Gabriel Gutierrez e Laura Daviña) e por uma arquiteta de exposições (Claudia Afonso). Localizado em um prédio comercial do centro de São Paulo, funciona como ateliê dos artistas e também como espaço expositivo e de trocas artísticas. Ainda em 2013, ganhou o edital de espaços independentes do Programa de Ação Cultural (Proac), da Secretaria de Cultura do governo de São Paulo. Na programação de 2014, apresentou os projetos Vitrine, Diálogos, Janela e Obra Aberta. O coletivo conta ainda com um espaço dedicado a múltiplos e publicações, que recebe produções de outros colaboradores, além de expor e divulgar o que é feito internamente.

Esta conversa abre uma série de entrevistas que a equipe do Observatório está realizando com coletivos culturais para mapear as formas de organização, gestão, financiamento e arranjos produtivos desses grupos.

Observatório: Como o grupo se formou? Quais foram as motivações e quais são os princípios que norteiam o trabalho do .Aurora?

Ter um espaço de livre-troca artística, no centro da cidade de São Paulo, já era um sonho antigo para muitos de nós e foi se materializando aos poucos. O espaço deveria possibilitar a todos os artistas o compartilhamento de um ateliê que, no fim, seria também o espaço expositivo. Na procura por um lugar para receber esse projeto, nos deparamos com o imóvel onde hoje funciona o .Aurora, na Rua Aurora, no bairro da República. A rua deu nome ao espaço. Nesse percurso, algumas pessoas acabaram desistindo e outras novas se comprometendo, para pensarmos juntos um projeto, um ponto inicial. O grupo se formou com a união de cinco artistas e uma arquiteta de exposições, pessoas que hoje constituem o .Aurora. Somos um grupo heterogêneo, formado não só por laços de amizade, mas também pela vontade de construir esse projeto como um espaço para a produção e o intercâmbio de experiências, onde poderíamos experimentar em diversas plataformas: na maneira de expor, de se sustentar, de gerir e de trocar com o público.

Inauguramos com uma exposição coletiva. No decorrer do tempo, percebemos que as dimensões e o potencial apontavam para além do projeto inicial e que a ideia poderia então se expandir e tomar nova forma. Um dos pontos-chave da formação do .Aurora era a garantia de experimentar o fazer artístico de formas diversas, além de trazer à tona aspectos desse fazer, que na maioria das vezes permanece oculto. Assim, se consolidou uma dinâmica baseada no diálogo livre entre os integrantes, estendido sempre ao público e à cidade, por meio de fruição direta e experimental.

Na prática, até agora conseguimos realizar alguns projetos que seguem esses princípios: Vitrine, Obra Aberta, Diálogos e Janela (além de cineclube, editora, lançamento de livros e projetos, e acolhendo algumas exposições). Cada um deles traça um partido dentro do que acreditamos ser essencial para a formação identitária do espaço e para o desenvolvimento das ideias iniciais.

O projeto Vitrine visa dar lugar para que artistas ocupem um pequeno espaço do .Aurora, espaço esse denominado Vitrine. Esse nome veio da ideia de exposição de novas ideias, de novos artistas, levando em consideração o risco que existe em exteriorizar a própria produção em um caso específico, como ocupação.

O projeto Obra Aberta se consolidou pela vontade de abrir os processos criativos de artistas experientes por meio de conversas informais. Os convidados são instigados a falar de suas referências e seus partidos, levando em conta a abertura dos processos, para além da obra final.

Já o projeto Diálogos aconteceu pela necessidade de cada um dos integrantes do .Aurora de garantir um espaço, entre o turbilhão de tarefas competentes à gestão, de criação e livre-troca com profissionais das mais diversas áreas de atuação. Dessa forma, testamos os limites do fazer artístico e da troca. Cada um dos artistas do .Aurora desenvolveu diálogos com convidados. O resultado disso tem sido múltiplo até então.

O projeto Janela, por fim, visava à extrapolação do espaço circunscrito da arquitetura e da privacidade em direção à rua, ou seja, para além da janela do espaço. Essa conversa com o mundo externo e com aquilo que é essencialmente público está presente desde a exposição inaugural. O uso e a apropriação do espaço público são muito importantes para todos nós, como posicionamento artístico e político.

Todos esses projetos, entre outros, acontecem no .Aurora em continuidade. Temos ainda a editora ,Aurora (vírgula Aurora), que se ocupa da pesquisa e da disseminação das artes no que toca o campo editorial. Ela tem sido muito importante para o desenvolvimento do espaço, sempre acolhendo propostas internas e externas de publicação. Por meio da editora, também os artistas residentes e outros artistas têm a possibilidade de criar obras mais acessíveis ao público, tanto financeiramente como conceitualmente, como livros de artistas e múltiplos.

Observatório: Sobre as propostas alternativas de financiamento adotadas pelo .Aurora, como elas dialogam com os princípios norteadores do grupo? 

Até agora, sobrevivemos de um misto muito variado de financiamento. Começamos com a ajuda de investidores. Apesar da formalidade do nome, eram amigos que acreditavam no projeto e que nos ajudaram a consolidá-lo, cobrindo os custos básicos de aluguel e contas. Em troca, oferecemos obras nossas para poder retornar o investimento a essas pessoas próximas.

Nesse ínterim, fomos nos organizando por meio de exposições e da venda informal das nossas obras. Já tínhamos também a noção clara de que a escrita de projetos para editais, aproveitando as iniciativas oferecidas pelo governo, era indispensável para a continuidade da manutenção do espaço, tanto financeiramente como conceitualmente.

Assim, ganhamos, depois de seis meses, nosso primeiro prêmio. Inscrevemos os projetos desenvolvidos no espaço, já citados acima, no Proac para espaços independentes e fomos contemplados. Mesmo assim, o valor do prêmio, em derrisão das atividades propostas, cobriu apenas a implementação dessas atividades e nos ajudou com os gastos básicos do espaço.

Nossa preocupação maior, em todas essas formas, é sempre respeitar o artista e seu trabalho, como artistas que somos. Conhecemos, pela posição que ocupamos, as necessidades e as dificuldades da profissão, e isso nos dá uma base para podermos agir de forma idônea e coerente em relação ao que o espaço se propõe.

Vamos construindo essa maneira de gerir por meio de e durante nossas experiências de acertos e erros. É difícil encontrar na arte lugares em que seu tempo estendido seja respeitado, em que seus processos sejam compreendidos como parte do trabalho e, portanto, da remuneração como algo para além da obra como mercadoria, objeto para venda. Isso não significa que negamos a venda de obras, pois isso também é uma das nossas muitas fontes híbridas de renda. No entanto, não é a primeira.

De certa forma, seguimos vivos e nos reinventando a cada vez. É uma batalha diária. Fazemos isso sempre em colaboração com todas as pessoas que nos tocam e são tocadas por nós. Estamos, no momento, elaborando três novas frentes para ajudar nesse sustento: um projeto de crowdfunding, um clube de colecionadores e um projeto para um edital de governo que, pela primeira vez, prevê uma verba para manutenção de espaços como o nosso.

Observatório: Para vocês, quais são os principais desafios da área artística? Como vocês acreditam que deve se dar a atuação do Estado?

Existem desafios em diferentes escalas da área artística, seria longo descrever todos esses desafios. Talvez possamos dividi-los por pontos-chave, como as dinâmicas de um universo extremamente atrelado ao mercado; a dialética entre gestão e produção individual, ao que nos toca como artistas gestores; a divulgação e a veiculação das obras; entre muitos outros pontos. De certa forma, esses desafios acabam falando sobre um ponto maior, que julgamos talvez ser um nó, que é a profissionalização do artista, ou melhor, a falta de profissionalização do artista. Acreditamos que ainda exista uma dificuldade dos próprios artistas e do sistema de encarar a arte como uma profissão, que tem seu tempo, sua dinâmica, seu fazer próprio. A visão romântica que paira sobre tudo isso se torna um grande empecilho para o artista.

A atuação do Estado é essencial nesse caso. A criação de editais e programas de incentivo à cultura deveria ser pensada para estabelecer e solidificar cada vez mais essas relações entre o artista e seu modo de manutenção, seja como espaços, seja individualmente.

Um passo adiante, nesse sentido, seria a criação de mais modos de incentivo público que visassem à manutenção da dinâmica profissional dos artistas e dos espaços, de forma mais continuada. Hoje, os prêmios e os editais que temos em vista atuam de forma muito pontual nesse sentido. O ideal seria uma intervenção estatal que permitisse mais autonomia, de maneira a responsabilizar os artistas e a população beneficiados por tais programas, principalmente na fase inicial da atuação. Nem sempre isso acontece. Isso é fruto de uma falta de diálogo entre os agentes políticos, artísticos e a população em geral.

No campo das artes visuais, em especial, o diálogo e a organização entre artistas, coletivos e espaços são pequenos, o que nos coloca numa situação solitária e um pouco caseira, em sua maneira de ser. Essa troca deve cada vez mais acontecer entre Estado e comunidade artística, comunidade que ainda não encontrou sua liga, e que acaba enfraquecendo suas demandas, suas necessidades e seus anseios por falta de articulação.

De qualquer forma, não podemos encarar a atuação do Estado de forma ingênua. Essa articulação tão necessária deve partir de um sentido político ponderado de atuação.

Observatório: Na revista Observatório Itaú Cultural número 17, Cristiane Costa, em seu texto “As novas funções do autor na era digital”, levanta uma questão que é válida não somente para os escritores, como também para os demais artistas que lidam com todas as etapas do processo artístico: “Diante de uma nova realidade em que é visto como produtor de conteúdo a ser compartilhado [...] o autor, na certa, ganha autonomia, mas também se vê sobrecarregado com novas funções [...]. Multitarefas, uma de suas maiores dificuldades, hoje, é superar a dispersão”. Como os artistas do .Aurora lidam com esse desafio?

Como artistas inseridos nesse tempo, somos tocados obviamente por essas questões e, como em todo ato, contexto e situação, pontos bons e ruins podem ser ressaltados.

Não sabemos se é possível superar a dispersão, pois, sendo um dado de nosso tempo, que permeia toda e qualquer atuação, ele acaba sendo integrado na ordem do fazer artístico. Aqui no .Aurora, a dispersão se dá, além da produção de conteúdo a ser compartilhado, nas tarefas físicas e burocráticas de gestão do espaço.

Podemos encarar essa dispersão de várias formas. Há todo o tempo gasto no Facebook, em divulgação de eventos e contato social, mas também há a não especialização. Ao contrário de uma distração ou de um trabalho específico, ela é a concentração e a atuação em vários campos. Julgamos que é a maneira mais profícua de abarcar essa ordem do contexto em que estamos inseridos.

Existe um texto belíssimo de Bergson  que tange a essa questão e dá luz, de outra forma, a essa dispersão do trabalho. É um discurso que ele dá aos seus alunos formandos do Lycée D’Angers. O discurso se intitula “A especialização”. Ali, Bergson aponta a especialização como uma forma vazia de abordar as questões do trabalho, da pesquisa e do fazer. Para ele, chegar-se ao particular, à menor escala, deve ser decorrência de uma abertura para enxergar o todo de forma mais livre, experimentar outras áreas e, aí sim, lançar um olhar concentrado a uma tarefa ou fazer único. Bergson fala das ciências, mais especificamente, mas não podemos desassociar as artes desse ponto de vista, já que, como um produto humano, elas também se formam da percepção que cada artista lança, empiricamente ou não, sobre o que o rodeia. Obviamente, cada um lidará de forma pessoal e diferente com essas dinâmicas. Aqui no .Aurora, a forma de cada um atuar é bem diversa.

No que tange às tarefas prosaicas e corriqueiras, acabamos por acumular as funções de gestores para além do desenvolvimento de cada trabalho pessoal, o que representa certa sobrecarga. Tentamos aliviar o cotidiano dividindo tarefas e tentando preservar sempre um espaço e um tempo para o desenvolvimento das práticas artísticas relacionados ao fazer pessoal, respeitando sempre as características individuais, desde o uso do espaço até a maneira de lidar com essa dispersão.

Observatório: Ainda nesse mesmo número da revista, o autor Anderson da Mata reflete sobre os coletivos editoriais brasileiros do século XXI, que surgem como “contraponto e complemento das casas editoriais estabelecidas”. Para vocês, isso se aplica ao projeto editorial ,Aurora? Vocês podem falar um pouco a respeito do projeto e de suas perspectivas?

Essa perspectiva ainda não se aplica a nós. Estamos caminhando para isso, já que a editora ,Aurora (vírgula Aurora), como espaço acolhedor de publicações, vem desenvolvendo cada vez mais seus próprios produtos editoriais.

Hoje possuímos de edição própria a Coleção Ensaios. É uma série de ensaios teóricos, inéditos ou não, que são pensados especialmente pela editora, estudados, paginados e vendidos. Além dessa coleção, os livros de artistas e múltiplos dos artistas residentes do .Aurora, pela troca que há na produção desse material, passam por uma editoração e são comercializados como contraponto ao que se vê por aí, e ao que o próprio .Aurora produz. Há um contraponto e complemento de nós mesmos. O,Aurora (vírgula Aurora), quando foi lançado como braço editorial, visava cumprir a função de democratizar o que seria produzido no .Aurora e oferecer em maior escala e de maneira acessível obras e edições nossas e de outras pessoas que estão de alguma forma abertas ao diálogo com o público e entre si. Dessa forma, de pouquinho em pouquinho, estamos desenvolvendo bem essa plataforma de forma a torná-la sólida para configurar um contraponto às casas editoriais estabelecidas. Hoje, ainda somos um pequeno ponto.

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