Ver a cidade e suas nuances | Entrevista com Mauro Neri
26/12/2018 - 16:00
Ver a cidade. Essa frase, que pode ser lida em muitos muros na cidade de São Paulo, sempre acompanhada de uma casa amarela com telhado marrom, é o convite que o artista visual Mauro Neri nos faz para não deixarmos de perceber a beleza, a crueldade, a resistência e as possibilidades da nossa cidade.
Mauro Neri ou Maurão (www.veracidade.art.br e www.instagram.com/reveracidade) assina, desde de 1995, seus desenhos e pinturas na rua como catador, ambulante, letrista, muralista e educador. Em 2002, descobriu-se artista, grafiteiro e/ou pichador. Ele conversou com o Observatório sobre a influência da rua em seu processo artístico, as relações com o Estado e as demandas do mercado da arte urbana, entre outros assuntos.
Formado em artes visuais, frequentou a Academia de Belas-Artes de Bolonha, na Itália, de 2005 a 2008. Idealizador, cocoordenador e cocurador do Encontro Niggaz entre 2004 e 2016, Mauro faz parte dos movimentos Imargem (desde 2006) e Cartograffiti (a partir de 2009) – projetos multidisciplinares que articulam os eixos temáticos: educomunicação, grafite, memória, juventude, arte, meio ambiente, convivência e direito à cidade. Artivista, age a partir das margens das cidades em um percurso de acessos para além das fronteiras, projeta desenhos de gente, casas, escritas e conjugações com palavras, sobretudo com o verbo ver.
O que ou quem lhe inspira no universo do grafite?
A inspiração, para mim, vem da possibilidade de acessar mais gente, de dialogar, de contribuir, de informar, de transformar as paisagens, de um contato com a realidade das ruas e das surpresas dos encontros com as pessoas. A influência da propaganda e da publicidade, do grafite com “e” e graffiti com “ffiti”, da pichação com “ch” e com “x”. Essas distinções têm a ver com o lugar de fala e o nível de envolvimento com a cultura. A minha experiência profissional com comunicação visual, como letrista, cartazista e muralista, e de ver grafites como os de OSGEMEOS e do Niggaz, além do convívio com artistas e grafiteiros como Alexandre Orion (na faculdade, a partir de 2001), Tota (na oficina de grafite, em 2002), o próprio Niggaz (de 2002 a 2003), o Jerry Batista e muitos outros.
Como funciona o seu processo artístico? Como você escolhe os temas, os locais que receberão a intervenção artística? Pode nos contar também sobre as marcas: a casa amarela e o “ver a cidade”?
Meu processo artístico é muito fluido e funciona de forma espontânea quando depende de mim, ou muitas vezes de acordo com uma agenda ou demanda externa. Eu geralmente escolho os temas que são recorrentes para mim. Quando escrevo, faço variações das diferentes marcas, como as da palavra “ver” e “veracidade”, as casinhas, os desenhos de casas amarelas, a figura humana olhando para cima, muitas vezes alongada, com o olhar voltado ao céu e o cabelo esvoaçante. Essas são coisas mais recorrentes que eu faço, mas tem variação disso de acordo com o lugar que o recebe. A temática às vezes vem com um briefing, que também vem daquilo a que eu costumo ser associado, como a causas relacionadas a direitos humanos, política, meio ambiente, informação, educação e transformação da paisagem.
Qual é o diálogo estabelecido entre o seu trabalho artístico e a cidade? Existe uma troca ou influência do espaço público nesse processo? Há espaço para a experimentação?
O diálogo com a cidade é muito natural e acontece sempre. Dialogar com as lacunas da cidade, espaços sem perspectiva de restauro ou reutilização, com o contexto social no qual o lugar se encontra, o que tem no entorno, o que aparece, se é um espaço de visibilidade, se é na periferia ou no centro, se é de movimento. Tudo isso faz a gente diagramar com a cidade, tanto com a poesia concreta, quando se escreve, quanto ao se encaixar a casinha em um canto possível; a figura humana na relação com o espaço também, a pessoa com seus diferentes gêneros. Existe também um contexto de educação, protesto ou um contexto de vender a imagem e fazer propaganda. A gente dialoga assim, na medida em que isso vai fazendo parte do convívio da pessoa, do amadurecimento, da bagagem e de seu repertório.
Dialogar com as lacunas da cidade, espaços sem perspectiva de restauro ou reutilização, com o contexto social no qual o lugar se encontra, o que tem no entorno, o que aparece, se é um espaço de visibilidade, se é na periferia ou no centro, se é de movimento. Tudo isso faz a gente diagramar com a cidade, tanto com a poesia concreta, quando se escreve, quanto ao se encaixar a casinha em um canto possível;
Ainda existe muito espaço para experimentação. Acho que não tem regra, a gente vai buscando jeitos espontâneos e estímulos criativos dentro da resiliência, dentro da maneira possível de se fazer arte, com abundância ou se revendo nos tempos de escassez, com o que é permitido ou não. Tudo isso possibilita ou não a experimentação na rua, com todas as suas intempéries e surpresas.
Quando vocês vão intervir num espaço, existe alguma curadoria para a escolha dos artistas?
Existem diversas curadorias e projetos específicos ao longo do tempo. Já participei e fui curador, fui convidado e convidei – isso quando é um projeto pré-determinado, com financiamento ou não, mas com uma organização, institucionalização ou programação. Mas a curadoria mesmo é essa em que cabe todo mundo, de quem tem coragem e se arrisca para fazer. Vale mais quem tem disposição para ficar pintando, a curadoria que vale é feita por quem se importa com a rua.
O poder público apagando os grafites com sua tinta feita de cal e concreto, em troca de seus benefícios por metro quadrado e seus contratos com suas regionais, é também uma forma de curadoria que dizima muitas expressões incríveis, desperdiçando tempo, energia e arte num processo que é especificamente para bancar a cadeia econômica de empresas com contratos com as prefeituras regionais, que estabelecem essas equipes que deverão apagar grafites.
Tem a curadoria mainstream de quem pode e quem tem credibilidade para conquistar espaços notáveis em grandes avenidas e grandes vitrines da cidade, quem pode mais, seja por audácia e insistência, seja pelos contatos ou views e sua articulação para conseguir espaços interessantes e fachadas visíveis. Essa curadoria é muito orgânica e também atende a interesses de mercado, ao que as pessoas querem ver. E tem a curadoria de quem se importa, que fazem a verdadeira curadoria ou a curadoria estética que são os grafiteiros, pichadores, publicitários, arquitetos e urbanistas, que transformam e desenham a cidade.
E tem a curadoria de quem se importa, que fazem a verdadeira curadoria ou a curadoria estética que são os grafiteiros, pichadores, publicitários, arquitetos e urbanistas, que transformam e desenham a cidade.
Muitos artistas brasileiros são reconhecidos primeiramente no exterior, e no grafite isso aparece de forma mais latente. Como você percebe hoje o mercado do grafite?
No Brasil é notável o reconhecimento internacional da arte contemporânea e isso inclui, certamente, a arte urbana. As artes aqui são associadas à imagem do sucesso, e isso se globaliza de uma forma muito grande. Mas esse cenário é para poucos, são centenas e milhares de artistas que tentam e sobrevivem com seus méritos, suas chances e seus privilégios de conviver e de ser adicionado na economia artística. Ao longo dos anos, a gente vai também conquistando o público e colocando o nome na história e na cena, com uma certa insistência. Migrar o projeto de “veracidades”, por exemplo, faz com que a gente vá tendo outras percepções, outros gostos, outros olhares, um olhar internacional. E, com a internet, cada vez mais vai sendo possível acessar grandes artistas e grandes referências em diversas partes do mundo. Enfim, o gosto internacional se identificou com a originalidade do trabalho brasileiro.
É possível e importante que a arte urbana também possa trazer um legado de repensar essa economia de distribuição e acesso à arte. Por exemplo, quando um artista pinta a fachada de um barraco, sendo ele de alvenaria, de madeira ou metal, e agrega um valor àquela fachada a ponto de aguçar o interesse de colecionadores e compradores para pagar pela obra, valores que podem até mesmo comprar ou financiar uma nova casa para essa família humilde.
Acredito que é importante que a arte de qualidade continue e esteja também nas ruas, ainda que possa ser vendida para grandes coleções e atingir grandes cifras, para que possa financiar os projetos dos artistas. Que ela, a arte, seja compartilhada com a sociedade, não limitando as grandes obras para coleções particulares, fazendo valer uma arte pública de qualidade e acessível para todo mundo. Acredito muito nisso, nessa possibilidade de agregar e de movimentar o mercado, pintando em fachadas e comercializando essas telas em troca de novas fachadas pintadas em barracos populares, nas periferias.
Você como artista que tem um trabalho artístico ligado diretamente a cidade, percebe que a cidade reconhece as demandas levantadas pela população e pelos problemas percebidos pelos artistas?
Acredito que existe uma possibilidade cada vez maior de comunicação por meio do grafite, algo como infografite, com que a gente possa entender de alguma forma as pautas da cidade, fazendo com que o grafite, a pichação e outras manifestações possam complementar algo de interesse social e de utilidade pública, de demandas e pautas urgentes para a cidade. O que a gente precisa ver, o que a gente precisa ler na cidade, como esses garranchos com potencial tão forte, tão negado e tão reprimido que são a pichação podem nos ensinar e contribuir para a educação, fazendo parte do currículo escolar dos alunos – é na pré-escola que começa o pichador, pichando a carteira da sala. E, quanto mais reprimido, mais ele se estimula e ganha o status de marginal, de entusiasta e de sagaz.
Eu acredito que é possível provocar sem ofender, sem desagradar, de modo que a gente possa diminuir um pouco essa polarização, esse ódio, com informações que possam conectar ambos os lados, ainda mais em um país tão dividido. Tentar transmitir, trocar e circular entre as bolhas, fazer reverberar o que têm em comum. Todos querem uma cidade linda, todo mundo quer uma cidade justa, o que nos difere é o jeito de pensar. A gente precisa se colocar mais no lugar do outro para entender o que a pessoa traz no vandalismo.
Acredito que é preciso ter tolerância para ler, ter interesse para ver a cidade e perceber as suas nuances porque, afinal, não é apenas tinta em paredes efêmeras, que deixam recados há tanto tempo para a gente ver a verdade que está impressa na cidade.
O interventor, na cidade, tem um grande poder e uma grande responsabilidade sobre o que vai ser escolhido para compor a memória e as bagagens das reflexões sobre o que a gente vê na cidade.
Acredito que São Paulo, esse lugar de cultura como transgressão, pode contribuir muito para políticas públicas, na relação conflituosa entre o ser humano e o meio ambiente. O interventor, na cidade, tem um grande poder e uma grande responsabilidade sobre o que vai ser escolhido para compor a memória e as bagagens das reflexões sobre o que a gente vê na cidade.