Todos os Gêneros: Poéticas da Sexualidade e suas ponderações, por Leonarda Glück
30/09/2014 - 11:45
Leonarda Glück fala dos seus processos criativos, suas relações com as políticas públicas e os desafios de tratar questões de gênero, transexualidade e preconceito em seus trabalhos. Leonarda é, artista residente do Espaço Cultural Casa Selvática, trabalha com fusão entre linguagens artísticas, tais como teatro, dança, performance art, literatura, música, artes visuais e cibernéticas, bem como com suas estreitas relações com o corpo e suas ressonâncias afetivas e é diretora teatral graduada pela Faculdade de Artes do Paraná (FAP).
1 – O MinC tem a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), instituída em 31 de maio de 2012 e que tem como objetivo fortalecer o protagonismo cultural da sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades excluídas. Em sua opinião, há mais espaço e oportunidade para que grupos e produtores culturais responsáveis por manifestações que discutem questões de gênero e sexualidade tenham acesso aos mecanismos de apoio, promoção e intercâmbio cultural, tal como a secretaria objetiva? Qual a sua análise sobre essas oportunidades e quais desafios ainda devem ser enfrentados em termos de política cultural?
Leonarda Glück – Com absoluta certeza, há mais espaço para isso hoje em dia do que há seis, sete anos atrás, quando percebi esse assunto começando a tomar a forma e a ganhar o espaço cultural e midiático que tem hoje. Ainda assim, atualmente, no trabalho dessa questão no âmbito cultural, o que percebo é mais o puro e simples esforço individual ou coletivo de pessoas a quem o tema é caro, de pessoas por quem ele perpassa de alguma forma ou ângulo, de pessoas para quem passar esse assunto à frente é um ponto crucial no que diz respeito ao seu simples conhecimento, principalmente quando os órgãos oficiais de educação do país falham miseravelmente na tarefa de informá-lo e mesmo de esclarecê-lo.
É claro que a criação dessa secretaria vem em boa hora para isso, com o escopo de fomentar manifestações culturais com o viés da informação sobre gênero e sexualidade. Espero ver práticas que saiam do papel e possam figurar, efetivamente, no plano das ações. Espero que, de fato, as oportunidades sejam ampliadas e mais bem percebidas, pois o maior desafio ainda é estruturar as noções do próprio pensamento, reeducar princípios e dogmas já caducos grudados na raiz da construção social, realmente abrir a mente para coisas humanas que, mesmo sendo negadas com veemência por muitos, acontecem natural e secularmente desde que o ser humano foi constituído.
Portanto, quando se fala em “fortalecer o protagonismo cultural da sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades excluídas”, acho belíssimo poética e politicamente, levando-se em consideração que esse “protagonismo” pode ser deslocado das classes sociais às quais está historicamente atrelado para se dar vez e voz a quem antes não tinha. Mas ainda, quero ver onde isso está e de que forma está colocado. Ora, um grupo ou uma comunidade muitas vezes permanentemente excluído do acesso à educação e aos equipamentos artísticos e culturais existentes não protagonizam muita coisa que não seja o próprio drama e um triste observar à distância, sem poder algum de decisão. É claro que isso está mudando, mas, com tantas forças nefastas atuando a contrapelo na política do país, a mudança ocorre a passos de tartaruga, é preciso dizer. Eu sempre falo que de intenção o mundo está cheio, mas o que quero ver mesmo é ação.
2 – Em seu trabalho Iracema 236 ml – O Retorno da Grande Nação Tabajara, peça baseada na obra de José de Alencar, você aborda a questão da identidade nacional, faz uma reflexão sobre a arte que se vende e sua transformação em produto. Com base nesse trabalho, você acredita que hoje a nossa cultura se transformou em produto?
Leonarda Glück – Escrevi esse texto na minha graduação como diretora teatral, em 2004. Com uma década passada desde então, percebi que a coisa ainda tinha muita validade. Se não a mesma, era possível ter ainda mais validade dez anos depois de sua escritura inicial, com toda a conjuntura cultural nacional na qual estamos hoje mergulhados. Essa Iracema contemporânea é um produto tipo exportação, um produto belamente embalado para vender, mas que conta com um terrível histórico de produção. Certamente, trata-se de uma grande e contundente crítica aos modos de viver produzidos pelo desenfreado capitalismo contemporâneo, que, sob a alcunha do neocolonialismo, sempre massacra as pequenas culturas locais em detrimento daquelas midiaticamente maiores, mais facilmente vendáveis e quase sempre mais tolas justamente por isso.
No entanto, eu não diria que a nossa cultura (como um todo) se transformou em produto, ou, ainda, diria que, caso ela tenha se transformado em produto, trata-se de algo pouco consumido, muito pouco vendido, daqueles produtos parados na prateleira, juntando pó. Para a lógica do capital, isso é um péssimo negócio. O que acontece é: alguns artistas, mais preocupados com o rápido e eficaz retorno financeiro do que com aquilo que sua arte pode fazer pelo mundo, acabam se deixando entranhar pelos mercados de arte mundo afora e passam a obedecer às suas regras ou até mesmo a ditá-las. Há espaço para isso também, é claro, pois a arte que se vende sempre existiu e assim deve ser. O problema está em julgar a arte de modo maniqueísta, como se aquela que mais vende fosse essencialmente melhor: esse é um erro epistemológico comum. De resto, só se torna produto quando assim se deseja.
3 – O MinC, com suas diversas secretarias, tem atuado de forma mais presente no território nacional por meio dos Pontos de Cultura e dos Pontões de Cultura. Em sua vivência prática, você percebe se ações como essa ajudam a estimular uma cadeia produtiva cultural maior e estruturada no campo das artes performáticas?
Leonarda Glück – Sim, percebo. Mas, como disse anteriormente, muitas dessas ações não chegam ao nosso conhecimento ou ao conhecimento das pessoas a quem elas deveriam se destinar. Essa é a parte triste, pois tão importante quanto o estímulo propriamente dito é ampliar o acesso do maior número possível de pessoas a essa produção toda, entende? Estimular e dar acesso são duas coisas que deveriam caminhar sempre juntas e de mãos dadas, na minha maneira de entender, pois não podemos considerar, em um país como o nosso, que todos compartilhamos das mesmas bases de entendimento, apreciação, sensibilidade e acesso à produção cultural e aos seus códigos. Estimular cultura, dotá-la de recursos, sem prover seu acesso é, uma vez mais, restringi-la aos mesmos nichos de sempre, geralmente compostos de artistas, produtores, estudantes de arte e afins. É importante também, claro, que esses nichos de “iniciados” se beneficiem do contato direto com a cadeia produtiva cultural, mas há muito mais gente a tocar, há muito mais sensibilidades só esperando para serem formadas. É precisamente nessa troca entre iniciados e leigos que se dá a ideia primordial de formação, de conhecimento a partir do imenso aprendizado possivelmente engendrado pelo costume de frequentar esses pontos de cultura.
4 – Pensando em seus trabalhos, que se flexionam em peças teatrais, performances, produção de textos e outros, perguntamos: Do ponto de vista criativo, qual é o maior desafio de tratar as questões de gênero, de transexualidade?
Leonarda Glück – Do meu ponto de vista, creio ser sempre o maior desafio tratar do assunto com a importância e a simplicidade que ele tem a um só tempo. Pode parecer curioso dizer isso, mas é verdade. Existe muita mistificação e criação de mitos em torno do assunto da transexualidade e das diferenciações básicas de gênero. Muitos não só não correspondem à realidade dos fatos como ainda prejudicam o bom andamento da vida de muita gente. É claro que são assuntos que demandam complexidade de relações e de entendimentos, mas, já há um bom tempo, eu não engulo a ideia da diferença como mote para o desenvolvimento dos estudos de gênero. Essa tal diferença está muito mais localizada nos modos de ser, de agir e de se construir do que realmente instalada nos corpos e em suas necessidades físicas ou psicológicas. Veja bem, o que eu quero dizer é: as necessidades das pessoas trans (para usar o termo mais utilizado sobre o assunto) são bastante similares àquelas de qualquer outra pessoa não relacionada com essa questão especificamente. Respeito, afeto, saúde, medicamentos, tratamentos, consumo, produção, cultura, vivência, capacidade, atividade sexual, intelecto e tudo mais são coisas que dizem respeito a todos os seres viventes, não são? Se não são, deveriam ser. O que está errado é querer tirar o direito do outro em razão de seus modos pessoais de agir: esse erro mora mais na penosa falta de “interpretação de texto” ou na qualidade intrinsecamente má do ser humano, digamos assim, do que em uma diferença realmente palpável. Então, decerto não pode ser a maneira como utilizamos nossa mente e nossas genitálias o que deverá demarcar uma diferença definitiva, pois mesmo essa diferença poderá perfeitamente igualar-se à diferença do outro em outro canto do mundo. Eu costumo dizer, brincando, que só entenderia a questão da diferença se algum de nós apresentasse os genitais na testa ou embaixo dos braços, aí seria bastante diferença mesmo. Em suma, os nossos anseios, humanos, são muito parecidos, embora moldáveis pelo histórico e pela sensibilidade de cada um. Outro grande desafio é dar ouvidos ao que dizem as pessoas transexuais, escutá-las com respeito e seriedade em primeiro lugar, para só depois entrar a crítica e o julgamento, porque esses sim são bastante democráticos e estão aí para tudo e para todos no mundo.
Eu tenho certeza de que o meu trabalho, seja qual for a linguagem utilizada, toca, modifica, melhora e dá pano para a manga para muita gente. Meu sonho é que ele consiga tocar cada vez mais.
5 – Judith Butler, filósofa norte-americana e uma das principais pensadoras sobre gênero da atualidade, defende uma desmontagem de todo tipo de identidade de gênero que oprima as singularidades humanas não encaixadas, não “adequadas” ou “corretas” no cenário da bipolaridade em que nos acostumamos a entender as relações entre pessoas concretas. Em sua opinião, quais são as principais questões de gênero a ser enfrentadas no Brasil? Do ponto de vista criativo, quais os desafios para criar obras que abordem as questões de gênero?
Leonarda Glück – Acredito ser sempre necessário prestar o máximo de atenção a alguém que denuncie a presença da opressão, em primeiro lugar. Se o desmonte dessa opressão ocorrer para que alguém ou algum grupo deixe de sentir um peso grandiosamente incontrolável interferindo negativamente em sua vida e na de outrem, maravilha. Mas eu não acredito em uma desmontagem generalizante ou até mesmo compulsória (como pregam alguns adictos da teoria queer), na qual todo tipo de identidade de gênero seja a saída para todo o mundo, até porque essa ideia, por si só, também carrega uma grande carga de opressão: liberdade de expressar, de escolher e de se identificar é para todos. Portanto, ela inclui também as pessoas que se sentem bem dentro de suas identidades e têm seus papeis de gênero já decididos. Não podemos nos esquecer de que há singularidades humanas envolvidas também na possibilidade de escolha, de afirmação e de negação dessas mesmas identidades perdurando até hoje, além de, é claro, na possibilidade de criar novas identidades por quem assim o quiser.
Agora, perceba bem o desafio de criar obras abordando a temática de gênero: no Brasil, um dos países que mais agride, violenta e mata mulheres em todo o globo, muitas vezes, discutir identidade de gênero, principalmente de pessoas transgênero, é querer saltar por cima da sujeira de séculos empilhada debaixo do tapete. Por exemplo: como pode um sujeito nascido homem querer abdicar do poder automático conferido por grandioso falo para se tornar mulher, esse outro sujeito fisicamente “mais fraco”, sobre o qual todos acreditam ter direitos, posse e palavras de ordem? O problema aqui é, mais uma vez, a malfadada educação que desce entalando na goela do povo brasileiro: o que se fará exatamente com uma mulher transgênero se ainda se soca a cara da mulher inata?!
6 – Em São Paulo, a discussão sobre espaços coletivos sendo “fechados” por conta da aquisição de empreendimentos imobiliários está intensa e a Cooperativa Paulista de Teatro entrou com um pedido de registro de patrimônio imaterial do Centro Internacional de Teatro Ecum (CIT-Ecum) junto ao Conselho Municipal de Preservação. Com isso, a Secretaria de Cultura de São Paulo solicitou o registro também para outros teatros que estão ameaçados. Em paralelo, outra situação é a aprovação recente do Plano Diretor Estratégico (PDE) do município de São Paulo, que conta com a criação dos Territórios de Interesse Cultural e da Paisagem (TICP), com o intuito de promover iniciativas culturais, de educação e do meio ambiente. Levando em conta sua experiência na Casa Selvática, existe em Curitiba alguma ação que trate da conservação ou manutenção dos espaços culturais?
Leonarda Glück – Não, em Curitiba, a prática vigente ainda é o salve-se quem puder. A especulação imobiliária acontece também, é claro, mas, por enquanto, ainda tem menor porte e menor virulência do que em São Paulo. Longe de nós achar que isso não existe por aqui, mas os espaços culturais não oficiais (dos oficiais é o município que trata de cuidar ou descuidar) são mantidos por companhias ou coletivos artísticos interessados em pesquisa e criação artísticas continuadas, como é o caso da Casa Selvática. Portanto, esses espaços são administrados pelos próprios artistas, sem depender de nenhum tipo de política pública no que diz respeito à sua preservação e manutenção.
7 – Com o novo benefício Vale Cultura, você acredita existir alguma influência no número do público frequentador das peças de teatro?
Leonarda Glück – Qualquer movimento em direção à expansão do acesso a todos os tipos de arte e de cultura produzidos e realizados no país eu louvo com sorriso no rosto, de orelha a orelha. Especialmente neste ano de 2014, devo confessar ter percebido o público que frequenta teatros na minha cidade aumentar, de fato. Sou cética, realista, muito embora as pessoas até confundam esse realismo com algum pessimismo, e eu não via, cinco anos atrás, tanta gente frequentando teatros em Curitiba como acontece hoje. Então, se o disparador disso é o Vale Cultura ou qualquer outra ferramenta que promova, dinamize ou facilite o acesso dos trabalhadores e das pessoas em geral aos bens culturais do país, eu, como artista brasileira, só posso enaltecê-la. Bato nesta tecla: cultura e arte só fazem pleno sentido no encontro com o outro, é para esse outro que essas mensagens, informações e sensações são enviadas. Eu mesma, por exemplo, sem o outro, não sou nada, nem mesmo o pó de uma lembrança. Então, feliz é um país que pensa minimamente nisso.
8 – Como você se flexiona entre diversas expressões artísticas, acaba tendo um contato amplo com a cadeia produtiva cultural (desde montadores de palco, costureiras, maquiadores, artistas, músicos etc.). Qual é a sua percepção sobre as demandas desses profissionais? Elas são supridas ou há sobreposição de funções?
Leonarda Glück – Ocorre que, muitas vezes, para um artista, é realmente preciso se desdobrar em várias funções para poder sobreviver, não lhe restando alternativa senão aceitá-las e fazê-las. Isso quando o artista não precisa realizar outro tipo de atividade ou profissão (que não seja a sua) para se manter física e economicamente e, com isso, poder fazer o que realmente gosta. As demandas são sempre crescentes, por trabalho, por respeito, por atenção e cuidados; são demandas que permeiam o mercado de trabalho como um todo e, por conseguinte, também o mundo das artes. É claro que, com esse panorama pintado, frequentemente as demandas dos profissionais da cultura não são supridas e nem mesmo estão próximas disso. Quem trabalha com cultura e arte neste país geralmente o faz por amor mesmo, do tipo mais genuíno, que supre e preenche mais do que dinheiro, o mesmo amor ausente na hora de sermos pagos pelo trabalho árduo e sério realizado. Por exemplo, costumo dizer que eu mesma sou a minha maior empregadora, pois se não escrevo minhas coisas, meus projetos, meus textos para teatro, minha literatura, se não crio minhas próprias oportunidades, minhas performances, meus debates, meu teatro, minha dança, se não crio meu próprio corpo, raramente alguém o fará por mim. Quando era criança, ouvi certa vez o Betinho falar: “um país não muda pela sua economia, sua política e nem mesmo sua ciência; muda sim pela sua cultura”. Eu lembro de ter achado aquilo maravilhoso já naquele momento, mas, hoje, passado algum tempo e depois de ter pensado melhor sobre o assunto, tenho ainda mais certeza disso. Faço tudo o que faço para tentar transformar o mundo em um lugar melhor e também porque, se não fizer, morro. Mas como o mundo será um lugar melhor se eu morrer?!