Coreógrafo e performer, Mestre e Especialista em Literatura Brasileira e graduado em Artes Cênicas, há 15 anos André Masseno cria espetáculos que lidam com a relação entre corpo, questões de gênero e sexualidade na arte contemporânea. Seu trabalho mais recente é O Confete da Índia (2012), contemplado pelo Prêmio APCA 2013 de Melhor Projeto Artístico em Dança. Atualmente desenvolve uma pesquisa de doutorado sobre a visão dos trópicos na contracultura brasileira. André Masseno  fala dos seus processos criativos, suas relações com as políticas públicas e os desafios de tratar questões de gênero, transexualidade e preconceito em seus trabalhos.

1 – O MinC tem a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SCDC), instituída em 31 de maio de 2012 e que tem como objetivo fortalecer o protagonismo cultural da sociedade brasileira, valorizando as iniciativas culturais de grupos e comunidades excluídas. Em sua opinião, há mais espaço e oportunidade para que grupos e produtores culturais responsáveis por manifestações que discutem questões de gênero e sexualidade tenham acesso aos mecanismos de apoio, promoção e intercâmbio cultural, tal como a secretaria objetiva? Qual a sua análise sobre essas oportunidades e quais desafios ainda devem ser enfrentados em termos de política cultural?

André Masseno – Há duas “frentes” de manifestação que é preciso levar em conta: uma delas é a manifestação social das diversidades, constituindo-se em sua inserção na esfera pública por meio de ações que reivindicam seus direitos e sua visibilidade. A outra frente seria a da manifestação artística em si, isto é, a produção artístico-estética interessada em discutir a sua condição minoritária. Neste caso, estão situadas obras artísticas às voltas com questões de gênero e com a exclusão de determinadas representações e expressões identitárias e de gênero em nossa sociedade. A meu ver, a maior visibilidade dessa segunda frente depende de um setor público, de um olhar atento capaz de compreender que tal fazer artístico é extremamente político, porém, empoderado de uma política de outra via. Acredito que ainda há muito a ser feito por parte da SCDC, uma secretaria com somente dois anos de existência. Espero realmente que seus mecanismos de apoio, promoção e intercâmbio cultural possam ser direcionados a políticas artístico-culturais que discutem questões de gênero e sexualidade dentro de uma sociedade em que efervesce um discurso “majoritário” cada vez mais racista, transfóbico, homofóbico e misógino.

2 – Quanto aos financiamentos para a realização de projetos, você utiliza aportes financeiros por editais ou via lei de incentivo fiscal municipal/federal? Comente os desafios de captação para as artes performáticas.

André Masseno – Há exatos 15 anos, elaboro os meus trabalhos solo. Nessa trajetória, criei seis espetáculos: O Confete da Índia – criado em 2012 – foi o meu primeiro projeto com aporte financeiro do fomento à dança da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro e do Prêmio Funarte de Dança Klauss Vianna, ambos de 2011. Os espetáculos anteriores foram criados sem qualquer tipo de aporte financeiro, seja porque não foram inscritos em editais ou lei de incentivo fiscal, seja porque não foram aprovados. Isso é extremamente cruel, pois o artista se depara com um plano de apoio financeiro meramente pontual, que opera mais pela aprovação de um projeto específico do que por uma trajetória artística. Além disso, são quase inexistentes os editais, os fomentos ou as empresas via leis de incentivo que recebam projetos de arte no campo estético da inespecificidade (um termo cunhado pela crítica argentina Florencia Garramuño em seu recente livro Frutos Estranhos), isto é, em um fazer artístico contemporâneo que não se encaixa em (e até mesmo resiste eticamente aos) padrões canônicos e setorizados, que pensam a arte sob áreas de interesse (teatro, artes visuais, dança, performance...). O desafio é o surgimento e o fortalecimento de editais que abarquem obras de aspecto mais fluido, permeável, pouco afeito aos rótulos. E, antes de tudo, até mesmo de se pensar em captação, há um problema maior não somente nas artes performáticas, mas nas manifestações artísticas como um todo: a escassez de meios de manutenção em longo prazo para os artistas e seus projetos. Preocupa-me muito a política de pontualidade na qual estamos submersos...

3 – Você afirma que o espetáculo O Confete da Índia é ancorado na abordagem corporal do desbunde e de seu legado cultural, que ele é um espaço de conflito e de pulverização entre passado e presente, fonte e influência, uma experiência compartilhada, uma reflexão físico-crítica das posturas e políticas corporais em vigor na esfera pública atual. Quais seriam essas políticas corporais públicas a que se refere?

André Masseno – Ressalto que essa minha afirmação consta no release do espetáculo e é preciso ter em conta tratar-se de um texto aberto, para que o leitor (no caso, o espectador) retire suas próprias conclusões, confrontando essa afirmação com o evento performático em si. Em vez de ser um “guia de leitura” da obra para a plateia, trata-se de uma textualidade para aguçar problemas, algo “para se pensar”. Mas, enfim, deixarei aqui alguns rastros sobre o que penso dessa minha afirmação: primeiramente, ela advém de um procedimento artístico que, na realidade, perfura as especificidades do “espetáculo” (mesmo que, muitas vezes, visite os padrões de um “espetáculo de dança”) para se posicionar como um projeto artístico, isto é, como estratégia de pensamento e de ação sobre um contexto social e cultural, algo que vai para além da pontualidade de uma apresentação, repensando modos de fazer, difundir e ver a arte e a vida. Dito isso, o que é o convívio desse tipo de estratégia com uma esfera pública em que as pessoas têm cerceados não somente os seus corpos, mas também os seus desejos e seus modos de existir e de se posicionar no mundo? Dentro desse contexto, o que é revisitar uma experiência comportamental e de vida como o desbunde? Bem, essa afirmação foi proferida em 2012, quando O Confete da Índia estreou. Contudo, eu ainda a acho muito potente, principalmente desde a metade de 2013, quando começou a ocorrer uma transformação bastante importante no âmbito brasileiro, com sujeitos deste país (re)incorporando pública e performativamente as suas revoltas.

4 – Sobre sua performance Outdoor Corpo Machine, que tem como ponto inicial as imagens midiáticas do corpo masculino encontradas em outdoors, filmes de ação, revistas, enfim, imagens que “vendem” ideais de juventude, força, beleza e poder econômico: se colocarmos a nossa cultura nessa mesma esfera, você acredita que a indústria cultural seria mais receptível às novas formas de expressões artístico-performáticas ou seria ainda mais restritiva?

André Masseno – A indústria cultural tem suas lógicas de funcionamento e, em minha opinião, não há como nenhum artista contemporâneo ficar de fora da questão sobre como sua produção se posiciona em relação a essa indústria. Eu não sei se a indústria cultural está interessada em ser “receptiva”. Entretanto, não afirmaria que ela seria “restritiva”. Acho que a indústria cultural está mais preocupada com questões de mercado e vendagem. Muitas vezes, essas questões acabam se apropriando da potência de certas expressões culturais e artísticas para, por fim, liquefazê-las um pouco e torná-las mais “palatáveis”. Enfim, uma antropofagia cultural às avessas. Por outro lado, acho que as expressões artístico-performáticas sempre foram muito mais receptivas às formas propagadas pela indústria cultural, deslocando suas lógicas ou retomando, sob o viés da ironia, aquilo que essa indústria havia sequestrado do cerne daquelas expressões. Ao que me parece, algumas expressões artístico-performáticas estão menos concentradas em deglutir do que em regurgitar e em “vomitar” aquilo que a indústria cultural tentou lhes empurrar acriticamente pela goela abaixo.

5 – Judith Butler, filósofa norte-americana e uma das principais pensadoras sobre gênero da atualidade, defende uma desmontagem de todo tipo de identidade de gênero que oprima as singularidades humanas não encaixadas, não “adequadas” ou “corretas” no cenário da bipolaridade em que nos acostumamos a entender as relações entre pessoas concretas. Em sua opinião, quais são as principais questões de gênero a ser enfrentadas no Brasil?

André Masseno – Em suma, eu suplemento essa questão com outras tantas: como pensar, no Brasil, questões de gênero como a identidade? Como pôr em diálogo identidade e pluralidade, encarando a identidade também como uma experiência fluida? No Brasil, pensar tais questões é um desafio, pois o modo como as identidades de gênero são vivenciadas pelos sujeitos inscritos em nossa cultura e sociedade não é tão estanque como parece à primeira vista. Na realidade, tenta-se a todo instante encaixar num padrão binário aquilo que, na cultura brasileira, é muito mais complexo. A meu ver, caminhamos para uma problematização mais aguda sobre que espécie de “montagem” é essa das ditas identidades-padrão de gênero no Brasil, uma “montagem” que, em alguns momentos, permite a apresentação (e até mesmo a incorporação) de certas expressões de gênero consideradas “inadequadas” – pensemos como essas questões são confrontadas com a vivência da sexualidade durante a nossa experiência carnavalesca, por exemplo. Antes de tudo, é necessário deslocar nosso olhar, desenquadrá-lo para, assim, enxergar as especificidades das discussões de gênero em nossos frescos trópicos.

6 – Do ponto de vista criativo, quais os desafios para criar obras que abordem as questões e problemáticas de gênero?

André Masseno – No meu modo de ver e viver o campo criativo, as questões e problemáticas de gênero precisam ir além de um recorte temático em uma obra artística. Opto pelos problemas de gênero como uma visada e um pensamento de mundo que deve ser o modus operandi da criação. Acredito que aqui reside o diferencial entre uma criação concentrada em “dar conta do tema” (isto é, das questões de gênero como seu assunto) e uma criação que tem as questões e problemáticas de gênero como sua “carnalidade”, como algo indissociável de seu processo investigativo e da vivência do entorno e de seu próprio fazer artístico.

7 – Quanto à formação dos públicos das performances ou apresentações de dança, você acredita que há necessidade de uma maior divulgação ou de um maior incentivo aos profissionais dessas áreas, para que suas expressões culturais sejam mais conhecidas?

André Masseno – Novamente, estamos retornando à problemática das visibilidades e suas gradações... A meu ver, incentivo e divulgação são ações sempre necessárias, realmente imprescindíveis. Isso é um denominador comum – principalmente quando se trata das artes da performance e da dança, que, dependendo de suas escolhas ético-estéticas, podem encontrar certas dificuldades para abranger um público mais vasto. Por outro lado, eu me pergunto que tipo de incentivo e de “formação” nós, artistas, estamos procurando. Afinal, que “público” estamos querendo com e para os nossos fazeres? Estamos pensando em níveis qualitativos ou quantitativos? É necessário primeiramente entender quem é esse “público”, ou melhor, qual é a ideia de “público” que cada um de nós, artistas, projeta com nossos trabalhos (pois muitas vezes o público é visto quase como uma entidade, como uma massa inalcançável e dissociada da relação com a arte). Eu tenho alguns problemas com a palavra “formação”, que me parece acionar uma forma evolutiva e sequencial de “educar” pessoas para assistir a uma determinada obra artística, como se elas não estivessem “preparadas” para receber aquele trabalho. Eu prefiro pensar em termos de “in-formação”: apresentar possibilidades e caminhos diversos para o sujeito ficar empoderado de suas escolhas estéticas. Ou então pensar em uma “des-in-formação” que provoque no sujeito um autodeslocamento de seu senso comum. Tornar alguns fazeres mais visíveis é uma ação que não depende somente e diretamente dos artistas, mas do diálogo que as instituições e os fomentadores de cultura fazem com as práticas artísticas. Atualmente, prefiro pensar em como o que eu faço poderia trazer mais conhecimento – e aqui podemos entender o termo “conhecimento” como cada um desejar. Para mim, é o conhecimento como a possibilidade de “dar-se a ver”, de colocar na pauta do dia o que está sendo rechaçado, posto à margem: da cultura, da sociedade e do campo da arte e de seus procedimentos.

8 – A quantidade de festivais de dança no Brasil hoje é maior do que em alguns anos passados. Em seu ponto de vista, o que justifica essa crescente demanda?

André Masseno – No meu ponto de vista, muitos festivais, mostras e fóruns de dança buscam suprir uma carência cultural tentando descentralizar, por exemplo, a circulação da dança nas metrópoles do eixo Rio—São Paulo, onde há presença de eventos bastante consolidados. Também acredito que esses festivais “fora do eixo” são gerados por uma lógica administrativa e de produção (e que também considero extremamente ética) orientada por outras formas de fazer festivais de dança, com sua opção por microações locais em vez de esperar a resposta positiva de editais e leis de fomento para concretizar as suas edições. Vide o Olhares sobre o Corpo, idealizado por Fernanda Bevilaqua, em Uberlândia, e o Encontro de Artes em Ipatinga (Enartci), fomentado pelo grupo Hibridus, projetos que conheço bem de perto e que suscitam discussões e afetos que reverberam para além das apresentações e colocam os artistas em diálogo constante. Porém, ressalto que o surgimento crescente de tantos festivais pelo Brasil não é proporcional ao número de projetos de festivais economicamente contemplados. Muitos desses festivais executam suas propostas com dificuldades econômicas, frequentemente sem perspectivas para as edições posteriores.

9 – Com o novo benefício Vale Cultura, você acredita existir alguma influência no número do público frequentador das performances e apresentações de dança?

André Masseno – Seria interessante fazer essa pergunta aos demais profissionais de dança com espetáculos atualmente em cartaz. Ainda não é possível avaliar os efeitos do Vale Cultura no número de espectadores em meus espetáculos. Até o presente momento, não tenho notícia de alguém que tenha utilizado o Vale Cultura para assistir às minhas apresentações. E isso é extremamente sintomático, pois, no caso da dança, há um problema anterior ao benefício, que é a dita e recorrente formação/“in-formação” do público e da abrangência na divulgação da dança contemporânea. Ela encontra dificuldades em competir com outras produções culturais que possuem maior entrada e divulgação nos meios de comunicação. Isso é um fato histórico-cultural e, para vislumbrarmos a possibilidade de reversão desse quadro, é necessária uma ação continuada e abrangente tanto na “in-formação” de plateia quanto nas alternativas de divulgação condizentes com as necessidades de cada produção de dança. Retornando à questão do Vale Cultura, acredito que seja um benefício de enorme relevância para incentivar o consumo dos bens simbólicos.