Tablado de Arruar e a lida com a matéria incandescente do real
03/09/2019 - 09:00
por Encontro com Espectadores – Maria Eugênia de Menezes
O espanto antecede o luto. A crise e o processo de deterioração da jovem democracia brasileira foram objeto do grupo Tablado de Arruar no espetáculo Pornoteobrasil. A criação, que conta com dramaturgia de Alexandre Dal Farra e direção conjunta de Dal Farra e Clayton Mariano, cumpriu duas temporadas em 2019, ambas em São Paulo: na Oficina Cultural Oswald de Andrade e no Teatro Cacilda Becker.
Para discutir as motivações e a recepção dessa obra, Dal Farra e Mariano foram os convidados da 32a edição do Encontro com Espectadores, realizada em 25 de agosto, com a mediação da jornalista e crítica teatral Beth Néspoli. A ação, que ocorre sempre no último domingo de cada mês, às 15h, na Sala Vermelha do Itaú Cultural, em São Paulo (SP), é uma parceria entre o instituto e o site Teatrojornal – Leituras de Cena.
A reflexão sobre a peça Pornoteobrasil não considerou a obra de maneira isolada, mas sim como parte de um coerente e instigante percurso trilhado pelo Tablado de Arruar. O grupo, que surgiu em 2001 dedicando-se a um repertório de teatro de rua (seu primeiro espetáculo é A Farsa do Monumento, de 2001), gradativamente passou também a conceber trabalhos voltados para o espaço fechado das salas de teatro. Sempre manteve, contudo, o senso de investigação e a agudeza política no trato com a realidade – sua fonte preferencial de pesquisa.
Em 2005, Dal Farra assumiu papel como dramaturgo da companhia. Ainda que continue influenciado pelo pensamento da criação coletiva – em que todos os membros têm voz ativa nos processos de concepção e no desenvolvimento das obras –, o Tablado de Arruar trabalha com a divisão de tarefas e saberes. Dessa maneira, originaram-se títulos como Mateus 10 (2012), que tratava do fundamentalismo religioso e mostrava um protagonista dilacerado por dilemas éticos e morais.
Outro marco nessa trajetória é a Trilogia Abnegação, série de criações em que as contradições de um governo de esquerda eram exploradas por meio de formas narrativas distintas. Abnegação, Abnegação II – o Começo do Fim e Abnegação III – Restos criaram grande celeuma no meio teatral, por trazerem um ponto de vista sobre os fenômenos do real mais complexo e menos dicotômico.
Um aparte necessário quando se observa a produção desses artistas é que algumas das obras que influenciaram diretamente a atual criação foram concebidas em um ambiente externo ao grupo. Ainda que tenha sido escrita por Dal Farra e contado com Mariano no elenco, por exemplo, Refúgio não pode ser considerada um título do repertório do Tablado – mas parcela da perplexidade e do senso de absurdo que contaminam Pornoteobrasil encontra eco ali.
O trabalho com temas e fenômenos de uma realidade muito próxima foi um dos temas centrais da discussão desse Encontro com Espectadores. Segundo Beth, Dal Farra prefere lidar com uma espécie de matéria incandescente, “um magma do real” a ser manipulado e moldado pelo dramaturgo. A situação presente apreendida por esse olhar é a do trauma. Pornoteobrasil é o retrato de um país em choque, sem ter ainda as condições de compreender o caminho que percorreu até a atual polarização política.
Caros Ouvintes em setembro
O espetáculo Caros Ouvintes, comédia sobre a passagem da era do rádio para a da TV, será o tema da próxima edição do Encontro com Espectadores, marcado para o dia 29 de setembro, às 15h. Estarão presentes o ator Dalton Vigh e o autor e diretor Otávio Martins, novamente sob a mediação de Beth Néspoli.
Visto por mais de 70 mil pessoas, Caros Ouvintes está em cartaz no Teatro Renaissance, na capital paulista. A peça, que estreou em 2014, foi reconhecida por importantes prêmios, como o Shell e o Aplauso Brasil. A princípio, o título investe em um diálogo nostálgico e afetivo com a plateia: mira o fim das radionovelas e mostra o elenco de um programa que se prepara para se despedir do público. Porém, com sua ação ambientada nos anos 1960, também abre a possibilidade de uma revisão de episódios históricos e políticos, que podem ser revisitados à luz do presente.