Em junho deste ano, o Itaú Cultural realizou Todos os Gêneros: Mostra de Arte e Diversidade. Participaram da programação, com debates e uma mostra de filmes, integrantes do [SSEX BBOX] – coletivo que busca oferecer perspectivas plurais sobre sexualidade e gênero. Em entrevista ao Observatório, a coordenadora nacional do grupo, Júlia Rosemberg, fala sobre a origem dele e sobre a conferência realizada com o Mix Brasil, além de discutir a inserção de questões de gênero na gestão cultural e nas políticas públicas.

Qual é a origem do [SSEX BBOX]? Conte um pouco da história e da proposta do grupo.

Priscilla Bertucci, que fundou o projeto, sofreu bullying durante toda a infância por ser queer e ter cabelo cacheado. Uma criança queer nos anos 1980... Pouco era conversado sobre o assunto, de forma que as dúvidas e o sofrimento eram administrados por conta própria. Após anos morando na bay area [região metropolitana que circunda a baía de São Francisco no norte da Califórnia, Estados Unidos], palco de revoluções tanto sexuais quanto raciais, Priscilla absorveu muito da história política e ativista do local. Voltando para o Brasil, entre 2009 e 2010, percebeu o quão distante daquela realidade estava o país – na edição do Big Brother Brasil daquela época, o vencedor por júri popular havia sido um homem com discurso neonazista, homofóbico, transfóbico e sexista.

Com a intenção de combater o conservadorismo e a repressão que permeiam a vida de pessoas queer no mundo todo, Priscilla criou o [SSEX BBOX]. Como transitava entre São Francisco e São Paulo, firmou o núcleo nessas duas localidades. A perna europeia ficou sob responsabilidade de Tiago Bartholo, um amigo que morava ora em Berlim [Alemanha], ora em Barcelona [Espanha].

No início, o projeto baseava-se na produção de filmes sobre pessoas e vivências queer. Aos poucos, as atividades expandiram-se e o projeto desdobrou-se em outros formatos, como exibição de filmes, realização de debates, publicações, podcasts, workshops e festas. Em 2015, realizamos o primeiro evento, no formato de uma conferência internacional.

O [SSEX BBOX] é um projeto que visa, sobretudo, à justiça social para a população LGBTQIA+ como um todo, promovendo atividades, encontros, ocupações culturais e debates em que é possível discutir as questões de gênero e as múltiplas faces da sexualidade. Além disso, atenta e expõe conflitos a partir de diversos recortes socioculturais, tais como classe social e raça.

Em 2015, vocês realizaram a I Conferência Internacional [SSEX BBOX] Mix Brasil, seminário a respeito de questões de gênero. Como foi essa experiência?

Antes dessa conferência, o projeto acumulou muitas atividades realizadas, como as Ocupações e Circuitos [SSEX BBOX] – em que a escuta sobre as questões da população LGBTQIA+ era valorizada. Tivemos ainda apresentações artísticas e musicais e exposição de arte, fotografia e gravuras. Também pudemos apoiar e dar espaço para que outras produções de pessoas LGBTQIA+ aparecessem, além de rodas de conversa, debates, batalha de poesias e performances.

A experiência acumulada dessas atividades mostrou que a sensação de “quero mais” por parte do público estava sempre presente. Duas horas nunca eram suficientes para exprimir tudo o que queria ser dito, debatido e aprofundado. Em 2014, surgiu a ideia de mostrar ao Brasil uma coisa maior. Em uma conversa com a cartunista Laerte Coutinho, Priscilla Bertucci teve a ideia de trazer os maiores expoentes da cena queer para o país, fossem eles pensadores, acadêmicos, performers ou pessoas importantes na comunidade. Foi esse intercâmbio o mote da conferência internacional.

Ao trazer essa troca de ideias e realidades distintas, houve um choque cultural bastante producente para entendermos e assimilarmos questões locais que diziam respeito à população LGBTQIA+ no Brasil, e essa experiência foi muito enriquecedora. Pudemos contar com a colaboração de Carol Queen, Miss Ian Libraryan, Buck Angel, Claire Rumore, Marissa Lobo e Daniela Sea. No Brasil, participaram mais de cem pessoas ligadas às questões relativas ao público-alvo, nomes importantes do ativismo brasileiro.

A experiência de organizar a conferência foi nova para o [SSEX BBOX]. Tivemos dificuldade em conseguir financiamento para o projeto, que no final se baseou em doações externas de amigos e militantes LGBTQIA+ para sua realização. Os militantes não cobraram cachê para participar.

Como vocês enxergam a relação entre questões de gênero e gestão cultural no Brasil? Os equipamentos culturais estão prontos para lidar com esses desafios?

O [DIVERSITY BBOX] é um dos braços do projeto e visa à sensibilização sobre as questões relativas à população LGBTQIA+ em ambientes empresariais, desde o atendimento até o acolhimento da equipe, sendo ela plural e diversa. Por meio dele, tivemos contato com algumas empresas e organizações nas quais realizamos atividades de sensibilização de funcionários de diversos setores. O Itaú Cultural foi uma delas. Sendo o instituto um exemplo de gestão cultural no Brasil, podemos afirmar que as relações não só de gênero, mas de sexualidade, estão em todos os equipamentos, empresas, organizações e coletivos que queiram produzir cultura. Primeiro porque as pessoas LGBTQIA+ estão presentes em seu corpo de funcionários, e segundo porque há entre essa população um profundo senso cultural. As pessoas LGBTQIA+ produzem muita cultura.

Outro exemplo que ilustra bem a relação e o diálogo entre questões de gênero e sexualidade e produção e gestão culturais são as Ocupações e Circuitos [SSEX BBOX], que fomentam o encontro e o exercício de atividades relativas à cultura dessa população, sempre com um olhar atento que valoriza o que está sendo produzido em termos de cultura no local em que se realizam. As questões de gênero e sexualidade e a gestão cultural estão em diálogo, sobretudo hoje em dia, com uma imensa produção cultural dos grupos historicamente marginalizados. Os equipamentos culturais nunca estiveram tão prontos para lidar com tais questões, uma vez que há demanda por espaços que abriguem tais ocupações e, para tal, é necessário ter sensibilidade para identificar essa demanda e essa disponibilidade para trazê-las à tona em forma de atividades diversas.

Quanto às políticas públicas, elas atendem ou não às demandas dos movimentos sociais que militam por questões de gênero?

Falta muito. Há uma crescente onda conservadora na política brasileira atuando para a desinformação e para o enfraquecimento dos poucos direitos conquistados a duras penas por parte dos movimentos sociais. Falta a prática concreta de um Estado que seja laico, com cada vez menos decisões e projetos de lei pensados sob um viés religioso, de moral cristã e conservadora. Faltam vontade política e honestidade política nesse sentido.

Temos uma pequena parte de nossos representantes democraticamente eleitos que advogam nesse sentido e que, nas casas legislativas, não encontram apoio para tocar pautas progressistas de respeito às diferenças e de promoção da justiça social. As liberdades individuais são desrespeitadas e atravessadas pelas decisões morais e religiosas por parte de quem acredita que o controle social do corpo é importante para uma hegemonia de discurso. Estamos em uma disputa discursiva bastante significativa em termos de política. Temos muitos exemplos concretos de perdas de direitos básicos e também de assuntos que precisam ser amplamente debatidos para começar a avançar. E para isso é necessário que o Estado seja mediado por pessoas abertas e sensíveis a essa população e que haja reconhecimento de que existem pessoas que não participam dessa democracia ainda jovem e com tanta necessidade de ser ampliada.

Dessa forma, ações que promovem encontros, debates e conversas são significativas no sentido da resistência necessária para se opor a essa onda de retrocessos, para que esses grupos possam se unir e se pautar politicamente e para que se possa sensibilizar sobre a necessidade de disputarmos como comunidade sexo e gênero diversa os espaços de poder, produzindo assim outras novas políticas – abrindo espaço e transformando o ultrapassado modo de pensar e fazer política no Brasil. É nesse sentido que tentamos nos posicionar atualmente, pensando também na necessidade de aplicar práticas plurais e inclusivas nos espaços. Entendemos que, mesmo que houvesse uma ampla gama de políticas públicas voltadas para as demandas dos movimentos sociais organizados, só elas não seriam suficientes. Há que pensar também em sua aplicação. Acreditamos que a sensibilização dos agentes públicos é primordial para isso.

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