por Amanda Rigamonti

 

Lucas Cirillo (gaita), Kau (bateria e programações eletrônicas) e Vitor Arantes (teclados e piano) são A Timeline. O trio, que apresentou Oroboro no Itaú Cultural (IC) em fevereiro de 2020, pouco antes do início do distanciamento social, se viu impossibilitado de seguir lançando seu primeiro disco Brasil afora, mas continuou pensando e produzindo música.

“A quarentena nos distanciou presencialmente, mas nos mostrou que a conexão musical não depende da presença física: somos Wi-Fi em nossa comunicação subjetiva artística também. Compusemos uma suíte nessa quarentena, baseada em conceitos musicais e não musicais das tradições Tupi e Iorubá. Tudo feito a distância e driblando as dificuldades tecnológicas em um ano cheio de retrogradações em Marte, Mercúrio etc. [risos]”, conta Cirillo.

Segundo o dicionário de símbolos, “Oroboro é uma criatura mitológica, uma serpente que engole a própria cauda formando um círculo e que simboliza o ciclo da vida, o infinito, a mudança, o tempo, a evolução, a fecundação, o nascimento, a morte, a ressurreição, a criação, a destruição, a renovação”. O trabalho, com esse título e uma sonoridade múltipla que convida quem escuta a fechar os olhos e viajar, parece ter sido feito sob encomenda para esse ano tão peculiar.

Em entrevista, os músicos falam sobre como se juntaram, sobre o processo de produção do disco e a escolha das participações especiais, fazem um balanço de 2020 e compartilham expectativas para o futuro: “O ano de 2020 nos ensinou a não nos apegar muito aos planos futuros. Planos servem para nos ajudar a apontar a flecha, mas o disparo já é outra história. A caça voa, camufla-se e o caçador também pode se distrair”.

A Timeline: Kau, Lucas Cirillo e Vitor Arantes (imagem: Agência Ophelia)

Ao final da entrevista, Lucas Cirillo, Kau e Vitor Arantes indicam, cada um, três músicas que fizeram o seu som. Aproveite para salvar a playlist que montamos com as dicas no Spotify.

Contem-nos um pouco sobre a história do grupo. Como se conheceram e o formaram?

Nós nos conhecemos durante uma Oficina da Música Universal (conceito fundado por Hermeto Pascoal) com o mestre Itiberê Zwarg. Vitor Arantes era o pianista da oficina, Kau era o baterista e Lucas Cirillo era o gaitista do naipe. Algum tempo se passou e nos reencontramos em um show de Robert Glasper. Lá, descobrimos que estávamos estudando e pesquisando os mesmos assuntos relacionados à música, então resolvemos juntar nossas curiosidades e vontades e começar a nos reunir para compor e tocar toda sexta-feira.

Sempre foi muito fluido e natural o processo, acho que por conta de nossa convivência nos dias de oficina, mas também porque o resultado imediato dos encontros nos agradava muito. Assim fomos construindo nosso repertório, com a criação de uma música nova a cada sexta-feira. Passado algum tempo, saímos para o mundo para nos apresentar e compartilhar o que estávamos germinando. Por onde íamos éramos bem notados, e o sentido e o propósito do que fazíamos só crescia e se tornava mais consistente para nós. Foi então que resolvemos registrar esse momento em um álbum, e nasceu Oroboro.

Como foi a produção de Oroboro?

A partir do momento que decidimos gravar um álbum, pensamos em quem nos ajudaria a traduzir o som que estávamos buscando. Lourenço Rebetez, que é um excelente produtor, compositor e arranjador, foi a primeira pessoa que nos veio à mente, tanto por trabalhos com outres artistas quanto por seu grande álbum O Corpo de Dentro, que de certa maneira motivou A Timeline a criar uma espécie de fruto dele dentro dessa árvore genealógica musical/cultural, com tronco formado por Abigail Moura, Moacir Santos, Letieres Leite e outros tantos nomes sagrados de nossa música.

Lourenço se mostrou entusiasmado com o trabalho e passamos a nos encontrar, os quatro, para pensar nos arranjos e no álbum como um todo – quais seriam as participações e qual atmosfera queríamos. O bom produtor é aquele que sabe a hora de interferir e a hora de deixar voar o trabalho do grupo, como foi o caso com Lourenço. Era ele quem dava o “seLou” de qualidade (brincadeira que criamos com o nome dele durante o processo de produção) àquilo em que trabalhávamos até nosso limite antes de nos reunirmos para mostrar.

Fazer arte por aqui – não é novidade para ninguém – requer muito foco e dedicação, uma vez que em raríssimas exceções temos o subsídio para tal. Conosco não foi diferente. Cada um foi se desdobrando para pagar as contas e tirando tempo de onde não tinha para conseguirmos atravessar as distâncias e nos encontrar. Um fato curioso é que Vitor Arantes, durante o processo de pré-produção e produção, estava morando no Rio de Janeiro por conta de um trabalho, e, na semana de irmos para o estúdio, em São Paulo, ele se mudou para ainda mais longe, coisa de 400 km a mais apenas [risos].

Chegamos ao estúdio com tudo bem ensaiado e foi a hora de materializar o que trabalhamos e o que queríamos para o disco. Para isso, um ótimo engenheiro de som é imprescindível. Não poderíamos falar na produção de Oroboro sem citar o Thiago Big Rabello, que também assina a primorosa mix do disco, ao lado de sua equipe no estúdio Da Pá Virada.

Queríamos um disco com sonoridade cheia, de orquestra, mas que também contasse nossa história enquanto trio; queríamos que tivesse uma atmosfera orgânica, mas também eletrônica, e acredito que conseguimos contemplar todos esses desejos e entregar algo que nos orgulha e orgulhará enquanto durar nossa existência. Para celebrar esse momento, nada mais justo do que chamarmos quem sempre acreditou na nossa caminhada, já que agregar mais gente ao trio era uma prática comum à experiência do ao vivo.

Falando nisso, o disco tem participações superespeciais. Como elas se deram?

Concordamos quando se usa "super" para falar das participações, e fizemos questão que fossem apresentadas dessa maneira no disco, sendo o convidado instrumentista ou artista da canção. Era importante, para nós, romper com certa sisudez que a música instrumental por vezes apresenta, se fechando em seu mundo – mesmo porque não queremos rotular nosso trabalho como somente instrumental. Como bem define Kau: "A gente é um trio de música instrumental, mas não é". Nossa proposta é apenas ser e deixar a música ser o que quer no momento em que a estamos materializando.

Assim, queríamos trazer tudo aquilo que acreditávamos que fosse música para o álbum, sendo fluidos como água e também nos banhando nos universos des convidades. Ana Karina Sebastião é uma grande amiga que estava presente em nosso primeiro grande show. Um dos maiores nomes do contrabaixo no país e no mundo. Na gravação da faixa que dá título ao álbum, “Oroboro”, Ana registra a presença marcante de seu contrabaixo, seja no solo, seja na condução dos grooves – sem falar no astral dessa pisciana que contagia e faz toda a diferença na hora do rec.

Por falar em piscianas, Xênia França, que é uma parceria do trio desde sua fundação, foi carinhosamente apelidada por nós de "madrinha". Ela estava em nossas jams de garagem e apresentações; também montamos junto com ela um show chamado In Lab pouco antes de lançarmos o disco. Ela trouxe “The key to forever”, uma canção de amor em inglês, toda a memória sonora que gostaríamos que ela tivesse, uma nostalgia particular. O canto de Xênia facilita nossa conexão com atmosferas mais inacessíveis no meio do “corre” diário, é um alento.

Fejuca, que é do signo de touro, é amigo de longa data e parceiro de composições, assim como Xênia, de um dos membros do trio, Lucas Cirillo. A participação de Fejuca foi o único caso em que a música ainda não existia, surgindo em uma tarde na qual ele se juntou ao grupo para criar uma história narrada pelo seu violão. Fejuca é festeiro, gosta de agregar, é conteúdo e recipiente, por isso batizamos nossa composição de “Kumbuka”, um item indispensável em nossas festas e que conta muito sobre nossa identidade. Na mesma faixa temos percussão de Ricardo Braga, mas também queríamos dar a ele uma faixa exclusiva e celebrar mais sua música – e não haveria melhor opção do que “Avenida Sete”, nossa homenagem ao samba-reggae. Em estúdio, certamente por sua vasta experiência, Braga é de uma precisão, objetividade e criatividade sem igual.

Semanas antes de chegarmos ao estúdio, uma faixa em particular nos colocava em estado de alerta pela dificuldade de execução que nos propusemos: “Odé Kayodê”. Queríamos um contrabaixo com uma linguagem diferente das já escolhidas e que conseguisse tocar a peça naquele espaço curto de tempo. A história naturalmente deixou claro que esse baixista seria Vincent Delia, com quem já tínhamos feito mais de um show durante suas breves passagens pelo Brasil. Ele é brasileiro, mas toca e estuda fora do país. No dia da gravação, o que parecia difícil se tornou simples na presença dele, e em poucos takes ficamos satisfeitos com o resultado sonoro.

Somos um trio, mas que gosta muito mesmo de um contrabaixo. Fejuca nos apresentou João Moreira e as afinidades logo sugeriram uma grande amizade. João é um contrabaixista cuja pesquisa musical busca a sonoridade específica do instrumento num recorte temporal que vai da era de ouro do baixo elétrico brasileiro até os baixos synth do pop americano.

Maria Gadú é uma amiga antiga, com quem Cirillo já percorreu o país tocando durante o ano de 2016. Ela ficou muito feliz com o convite, em especial quando contamos que queríamos que interpretasse uma faixa eternizada por Milton Nascimento, “Canoa canoa”, que lá nos anos 1970 contava sobre os povos indígenas Avá-canoeiro. Para essa faixa, queríamos trazer uma sonoridade bem orquestral e, além de Gadú, contamos com a participação da lenda de nosso contrabaixo brasileiro, Robinho Tavares, e de membros da Orquestra Tom Jobim, tocando um arranjo de Vitor Arantes, que também os conduziu.

Como contamos, a nossa ideia enquanto pesquisa musical tem formação também no rap, e por isso convidamos Rashid, com quem Cirillo já havia gravado alguns trabalhos. Queríamos que Rashid nos ajudasse a contar essa história, pois, por meio de uma pesquisa musical profunda dos ritmos de matriz, procuramos fazer uma conexão com as sonoridades urbanas. A rima dele trouxe uma nova camada de compreensão para a música, ao mesmo tempo que está totalmente conectada com nosso conceito, o que mostra o quanto ele domina o poder das palavras e as expressa de maneira única.

Contem-nos um pouco sobre as influências na composição do disco. Eu li que, para a faixa “Sete flechas”, vocês mergulharam num estudo sobre o caboclinho. Quais outras pesquisas ou mergulhos fizeram?

A Timeline nasce do exercício de mergulhar. O álbum todo é composto em cima de pesquisas sobre os ritmos ancestrais que guardam um Brasil profundo, preservado e codificado em claves – o menor padrão rítmico identificável em determinado ritmo – ou timelines, como grafou a etnomusicologia internacional. Dessa maneira, como você bem colocou, a faixa “Sete flechas” nasce da aproximação entre um estudo sobre o caboclinho e um groove mais urbano, americanizado talvez, para receber e servir o rap. A faixa “Timeline” é uma brincadeira com a clave do samba; “Heiy Iya” traz um estudo sobre o toque ilú, feito para Oya no candomblé ketu. “Mojuba” é um estudo sobre a clave de mesmo nome, mas também uma saudação sagrada a Exu, que é a quem dedicamos a composição. Até onde pode não parecer está presente a pesquisa rítmica. Em “The key to forever”, por exemplo, reverenciamos o ritmo ijexá em diversas leituras possíveis dessa mesma clave.

Os mergulhos e essa característica laboratorial de nos debruçarmos sobre um mote musical e seus desdobramentos é nossa pedra fundamental, o que também nos traz tesão durante a feitura e nos revigora na prática. Talvez seja por isso que o distanciamento social foi tão duro para nós.

Passamos por esse longo período de distanciamento social no ano de estreia do primeiro disco do grupo. Qual foi o impacto disso para vocês pessoal e criativamente?

Há um oriki – fala sagrada a respeito de Exu – que diz: Exu mata um pássaro ontem com a pedra que jogou hoje.

Logo antes de lançarmos o álbum, esperávamos pelo final de março de 2020 em uma grande negociação que acabou não dando certo. Porém, fomos contemplados com um convite do Itaú Cultural para lançar o álbum e o que já era muito bom – por se tratar de um palco onde gente que admiramos demais já havia se apresentado – se mostrou providencial, pois dias depois do evento todas as casas de show foram obrigadas a fechar. Se, por um lado, deixamos de ter nossa agenda de lançamento do ano cumprida, por outro, pudemos ao menos fazer uma noite histórica para nós antes dessa pausa forçada.

A quarentena nos distanciou presencialmente, mas nos mostrou que a conexão musical não depende da presença física: somos Wi-Fi em nossa comunicação subjetiva artística também. Compusemos uma suíte nessa quarentena, baseada em conceitos musicais e não musicais das tradições Tupi e Iorubá. Tudo feito a distância e driblando as dificuldades tecnológicas em um ano cheio de retrogradações em Marte, Mercúrio etc. [risos].

Pessoalmente, acho que, como para todes, foi o ano mais desafiador de nossas vidas, no qual uma série de reformas e curas internas tiveram de ser manifestadas sob diferentes qualidades e dificuldades que enfrentamos. O principal, que são nossas saúdes mentais, corpóreas, emocionais e espirituais, certamente foi cuidado com carinho pela força do tempo, de todas as reflexões que dele nasceram. Enquanto trio, nós nos transformamos também, passamos a chamar A Timeline em vez de Timeline Trio, para justamente não nos limitarmos a uma formação logo em nosso nome. Como já sugeriu nosso álbum de estreia, gostamos de poder colaborar, juntar mais gente sempre e deixar se manifestar a potência de cada um nas criações coletivas. Além dessa mudança estrutural, passamos a pensar estratégias e a ampliar nossa arte trazendo outros universos artísticos para perto. Dessa maneira, desenvolvemos um diálogo com as artes contemporâneas sob a curadoria de João Carlos Villela, um grande parceiro nosso, juntamente com o artista visual Yuri Garfunkel. Passamos a pensar numa expansão artística e em formas de nos expressar que não dependam somente do palco, e é por essas sendas que vislumbramos nossa caminhada em 2021.

O que mais vocês esperam de 2021?

O ano de 2020 nos ensinou a não nos apegar muito aos planos futuros. Planos servem para nos ajudar a apontar a flecha, mas o disparo já é outra história. A caça voa, camufla-se e o caçador também pode se distrair. Só nos cabe esperar por todo o plantio que fizemos nos anos anteriores, para colher e replantar em 2021, 2022, 2023, 2024... Falando nisso, colheremos um prêmio com que fomos contemplados pelo álbum Oroboro, por meio da Secretaria de Cultura de Mogi das Cruzes, e o celebraremos com uma bela performance audiovisual, nos moldes da que entregamos para o Festival Arte Como Respiro.

Para 2021, queremos produzir uma versão de nosso álbum inteira de remixes, para mais uma vez chegar a públicos bem distantes da música instrumental, e também porque entendemos nossa música como obra aberta. Se J Dilla fez o que fez sampleando clássicos da música americana, se o rap tem sido um portal de descobertas pela figura do DJ, para nós também seria um sonho e uma meta ser sampleado e ir além do que ainda nem mesmo imaginamos.

Nesse ano também pretendemos continuar essa nova história que estamos desenvolvendo com a inclusão de outras artes e epistemologias. Ainda não sabemos qual será o produto, a plataforma ou como isso se desenvolverá, porém, acreditamos que será feito com nosso pleno afinco e movendo fios de arrepio durante a feitura, senão nem saímos de casa – ou melhor, nem ligamos o Wi-Fi [risos].

Confira as músicas indicadas pelos integrantes de A Timeline:

Lucas Cirillo

1. “Borderline with my atoms”, de Hiatus Kaiyote

Para mim, Hiatus Kaiyote é dessas bandas que ficamos aguardando lançar um disco novo e, quando isso acontece, sabemos que vem mudança no curso de um rio por aí. Estava num ponto de ônibus quando os ouvi pela primeira vez em meus fones e na hora pensei que esse som tinha tudo a ver com a nossa pesquisa.

Em “Borderline with my atoms”, sinto muito nítida a presença de claves já conhecidas por nós, mas que se apresentam de certa maneira disfarçada. Conversando com o baterista da banda, contei para ele que o início da música era nitidamente um aguerê, ritmo de cantigas lentas presente no candomblé ketu. Ele não sabia, mas achou interessante a relação. De certa forma, sinto que essa maneira de fundir a pesquisa de claves originárias com elementos já consagrados do pop está presente na obra toda de Hiatus Kaiyote.

A forma como o trabalho de teclas da banda se aproxima mais da música eletrônica, com arpejos e efeitos, também é algo que buscamos e em que nos inspiramos. Acredito que a faixa selecionada seja um bom convite para chegar à obra, mas em qualquer que seja a faixa, de qualquer um dos dois discos de estúdio da banda em que você possa vir a aterrissar, se gosta do universo de A Timeline, certamente irá amar a chegada a esse novo planeta.

2. “Curly Martin”, de Terrace Martin

Gosto muito dessa faixa porque ela concentra nomes de uma geração que uma vez um crítico chamou de “pós-hip-hop”. Prefiro chamá-los de geração pós-J Dilla, que foi quem humanizou a máquina, trazendo uma nova linguagem de se tocar organicamente. A faixa é autoral, de um dos produtores que mais admiro, Terrace Martin, que também é produtor de um dos mais importantes álbuns da indústria americana da década, em minha opinião, To Pimp a Butterfly (TPAB), de Kendrick Lamar. Não por acaso, essa música concentra alguns dos nomes que figuram em TPAB.

Acho muito especial como a cultura do sample – ou seja, recortar uma frase musical e colá-la para produzir música – sempre trouxe consigo portais. Não seria diferente em TPAB, porém, mais do que samples, em sua organicidade, esse disco trouxe nomes que estão por trás de sua sonoridade tocando à vera.

O trabalho de cada um dos envolvidos, de certa forma, construiu nosso som, e em “Curly Martin” ouvimos nitidamente tudo isso, com convidados como Ronald Bruner Jr. (bateria), Robert Glasper (teclas), Thundercat (baixo) e Terrace Martin no vocoder, na produção e no saxofone. Gosto muito do uso do sustain (longas notas) no saxofone, somado a efeitos. Esse disco e essa geração nos influenciaram muito e, em Oroboro, tento trazer para a gaita uma abordagem parecida.

3. “New throned king”, de Yosvany Terry

Em julho de 2017, nós nos reunimos para fazer um show na cidade de Mogi da Cruzes, terra natal de Kau, e aproveitamos para fazer um intensivo de escutas, do qual nasceram composições como “Odé Kayodê” e “Gan”. Um disco que ouvimos bastante e com que nos identificamos foi o New Throned King, do músico cubano Yosvany Terry. A faixa escolhida é a que dá título ao disco.

Considero esse disco a fusão certeira entre a linguagem do jazz e a tradição oral das cantigas cubanas. Na mesma época que aprendíamos com Letieres Leite e treinávamos para ser clave-conscientes (termo cunhado pelo próprio maestro), descobrir esse álbum foi uma espécie de confirmação de como a pesquisa e a reverência aos ritmos e cantos ancestrais podem conduzir processos criativos extremamente originais. Yosvany Terry realiza isso com maestria em uma atmosfera exclusivamente orgânica com sonoridades amadeiradas. De certa forma, é parte telúrica que amalgama a nossa sonoridade. Mais uma vez, essa é a faixa escolhida para adentrar esse universo.

É impossível ouvir e não se comover com o trabalho vocal tão peculiar e excelente que se desenvolve em Cuba e que está presente nesse disco, nessa faixa, também conectado à cultura tradicional dos cantares de nosso próprio território. Impossível não se mexer com o balanço proposto pela base de tudo – bateria, percussão e baixo – e não se elevar ao ouvir o fraseado do saxofone que se liga a ela, acessando a tradição melódica de Cuba e fazendo pontes com a história do jazz moderno.

Kau

1. “Tribal dance”, de Lionel Loueke

Essa música tem um trabalho claro em cima da clave, usando também, nos elementos harmônicos e melódicos, um pensamento cíclico que vai se alterando aos poucos e levando a experiência do ouvinte para novos lugares na música improvisada. Uma música muito bonita, com um ar etéreo que nos leva a uma conexão interna com o som riquíssima.

2. “Interlúdio 2 (supernova)”, de Lourenço Rebetez

Uma síntese da manifestação estética e sonora que o nosso trabalho pesquisa e busca abordar se encontra nessa faixa de Lourenço Rebetez, produtor e quarto elemento na concepção de Oroboro. Assim como rio e mar se misturam de maneira equilibrada na troca das marés, o poder tecnológico moderno e a moção originária ancestral se cruzam e coexistem lindamente nesse interlúdio riquíssimo.

3. “Mar”, de Munir Hossn

Uma miscelânea rítmica com suas raízes fincadas no fértil solo musical brasileiro, trazendo uma abordagem percussiva a todos os elementos que compõem a música e, no movimento contrário, também tambores que cantam. Munir é um artista que mistura abordagens contemporâneas com a tradição rítmica brasileira, e essa faixa é uma boa síntese desse trabalho.

Vitor Arantes

1. “The grid”, de Tigran Hamasyan

Tigran é um pianista e compositor armênio que traz em seu som uma vasta exploração dos elementos rítmicos, com agrupamentos e sobreposições, além de uma harmonia modal, características que estão bastante presentes no disco Oroboro, em especial na faixa “Odé Kayodê”.

2. “Feira das sete portas”, de Letieres Leite

Letieres é, sem dúvida, uma das principais influências do grupo. Nessa música, ele usa como base a clave de ijexá, mas com uma adaptação para 7/4, um compasso diferente do usual. Com uma grande orquestração, contém várias camadas rítmicas sobrepostas.

3. “Oriente”, por Antonio Loureiro

Essa canção de Gilberto Gil é trabalhada de forma muito criativa, ousada e original [nessa versão]. Trouxemos essa faixa para a lista também por remeter à forma com que pensamos a execução de músicas que não são de nossa autoria, sempre explorando ao máximo suas possibilidades de acordo com as nossas referências estéticas.

O Som que Fez o Som é uma série publicada na primeira sexta-feira do mês e reúne as influências de diferentes artistas.

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