Vice-presidente da Associação Gaúcha de Audiodescritores, Felipe Mianes falou com o Observatório Itaú Cultural sobre questões ligadas à acessibilidade no cenário da cultura no Brasil. A conversa é a primeira de uma série de entrevistas com nomes dedicados ao desafio de dar fim às barreiras físicas e comportamentais que afastam uma significativa parcela da população brasileira da produção cultural nacional.

Mianes tem baixa visão desde a infância e enfrentou graves problemas de acessibilidade arquitetônica e atitudinal em sua formação e em sua inclusão no mercado de trabalho – após ter sua nomeação negada em um concurso público para professor no estado do Rio Grande do Sul por causa de sua baixa visão, passou a lutar pelos direitos das pessoas com deficiência.

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No âmbito legal, as discussões ligadas à questão da acessibilidade são recentes no mundo – tomaram forma na década de 1980 –, e ainda mais no Brasil. A Lei de Acessibilidade (Lei 10.098/2000), primeira do gênero por aqui, foi regulamentada em 2004, enquanto a Lei Brasileira de Inclusão (Lei 13.146/2015), considerada o principal documento sobre políticas de inclusão e acessibilidade no Brasil, é de 2015. Por ser tão recente esse debate, qual o panorama do mercado cultural brasileiro em relação à acessibilidade? Qual é a aceitação das necessidades apresentadas por parte de instituições, produtores culturais, gestores, artistas etc.?

A acessibilidade, por ser um tema recente, gera inúmeros preconceitos e estereótipos, até mesmo no setor cultural. Existe ainda muito desconhecimento sobre as pessoas com deficiência e seus direitos. Tanto que o mercado cultural em geral ainda encara a inserção da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e da audiodescrição como um custo a mais para os projetos – quando, na verdade, se trata da contemplação de direitos adquiridos pelas pessoas com deficiência. Mais ainda: seria fundamental que os produtores culturais percebessem que prover recursos de acessibilidade é um investimento na constituição e fidelização de um público imenso – cerca de 24% da população brasileira tem algum tipo de deficiência –, ou seja, pode-se unir o direito das minorias à constituição de nichos importantes de mercado.

O mercado aceita as leis mais por obrigação do que por compreensão, mas ainda não entendeu os fundamentos dessas regras e ações afirmativas e todas as barreiras que essas ações podem derrubar. A Libras, a audiodescrição, as ações de acessibilidade precisam fazer parte dos projetos desde seu princípio, o que parece estar ainda muito longe do ocorrer.

Tendo em vista as mais variadas áreas de expressão (audiovisual, artes cênicas, música etc.), bem como os diversos equipamentos culturais (centros culturais, cinemas, teatros, galerias etc.), existem ambientes mais acessíveis do que outros? Quais universos apresentam mais dificuldades para ser acessíveis?

Geralmente, as pessoas pensam que quem tem uma necessidade específica é que deve ou não se adequar a um ambiente, mas o problema está no local ser ou não acessível – e não nas pessoas que o frequentam. E entender isso é fundamental.

Creio que, em maior ou menor grau, se cumpridas as normas de acessibilidade, todos os lugares podem ser acessíveis para a imensa maioria das pessoas. Sabendo empregar os recursos adequados a cada circunstância, a cada produto ou ambiente, as barreiras arquitetônicas e atitudinais, entre outras, podem ser suplantadas quase totalmente.

Por fim, creio que no Brasil, e em grande parte do mundo, o maior desafio a ser enfrentado seja aliar acessibilidade e preservação do patrimônio histórico. Ou seja, encontrar um equilíbrio entre a manutenção dos ambientes originais com a necessidade crescente de que se tornem cada vez mais acessíveis. E essa ainda é uma discussão delicada.

Os produtos culturais são acessíveis, geralmente, mais para atender às demandas legais?

Creio que se houvesse mais empatia da sociedade como um todo e dos produtores culturais em particular para com as pessoas com deficiência todos entenderiam o motivo que nos leva a lutar tanto pela acessibilidade cultural. Afinal, a cultura constitui nossas identidades e subjetividades, pode nos proporcionar uma vida mais repleta de sensações, de percepções, de conhecimento e de ampliação de entendimento do mundo. Uma vida longe da cultura é certamente sombria e gelada.

Por isso, creio que a cultura é um dos instrumentos mais importantes de inserção social das pessoas com deficiência. É fundamental para que essas pessoas tenham uma sensação de pertencimento em relação ao mundo e às comunidades às quais pertencem. Assim, entendo que a acessibilidade deveria ser tratada mais como uma questão de justiça social do que como mera inclusão de uma minoria.

Quais os principais desafios dessa luta por um mercado cultural acessível no Brasil?

Os desafios ainda são maiores do que as conquistas que temos obtido nos últimos anos. Precisamos conscientizar as pessoas para que entendam a acessibilidade como um direito e não como uma forma de caridade. Afinal, precisamos de mais Libras, audiodescrição, legendas, ambientes acessíveis do que meramente uma cota de gratuidade de ingressos por espetáculos, por exemplo.

Outro desafio é fazer com que as leis existentes sejam cumpridas pelos entes integrantes do mercado cultural, pois sem a consolidação dos recursos já existentes as coisas ficam bem mais complicadas. E, com o atual momento que o país vive, de instabilidade política e econômica, dois itens são os primeiros a sofrer cortes: a acessibilidade e a cultura. Logo, temos pontos de lutas em comum, e isso os produtores culturais precisam perceber. E o nosso papel, enquanto profissionais ativistas e usuários da acessibilidade, é sensibilizar todos para que estejam junto conosco nessas batalhas cotidianas por acesso à cultura.

Por fim, o maior desafio reside na ampliação dos recursos e dos produtos culturais acessíveis para as pequenas e médias cidades do Brasil. Se já é difícil que as produções culturais alcancem as cidades menores, imagine como ficam os habitantes desses municípios com alguma deficiência? A desassistência é ainda maior, e essas pessoas têm os mesmos direitos que aquelas que vivem nas grandes cidades. Sendo assim, precisamos ampliar a quantidade de produtos culturais com acessibilidade e aumentar seu alcance e sua abrangência para a maior parte do território nacional – algo que apenas a televisão tem conseguido fazer, mesmo com as inúmeras ressalvas que precisam ser feitas quanto à qualidade e ao alcance dos recursos de acessibilidade das emissoras de televisão.

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