por Cristiane Batista

Como elaborar uma dança de autodefesa? O movimento pode ativar a memória dos corpos negros e exaltar sua identidade? Para responder a essas perguntas (e criar outras mais), a Escola Repertório de Autodefesa (Repertório N. 2), projeto idealizado pelo coreógrafo e pesquisador carioca Davi Pontes e contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural, propõe cinco ciclos de formação dirigidos a profissionais multidisciplinares negros da dança no Rio de Janeiro.

“O tema surgiu quando comecei a escrever o meu projeto de mestrado em estudo contemporâneo das artes, em um momento de violência escancarada no Rio de Janeiro, quando o menino João Pedro Mattos Pinto foi assassinado em São Gonçalo [na região metropolitana do Rio de Janeiro] com um tiro na barriga após uma operação policial”, conta Pontes. Na ocasião, como em muitas outras similares, uma nota divulgada pela polícia justificava o crime com a palavra autodefesa – o que, para o artista, soa como uma “autorização do Estado para a crescente violência racial”.

Em Escola de Autodefesa N. 2, Pontes sugere práticas coreográficas que invistam na ideia de dança como um treino de autodefesa. O programa, virtual por causa da pandemia, teve um total de 36 inscrições, para as quais foram disponibilizadas dez bolsas para artistas negros, entre curadores, artistas, coreógrafos e pesquisadores em performance contemporânea. A formação, realizada em setembro e outubro, teve a participação dos artistas Ana Pi, Castiel Vitorino Brasileiro, Iara Izidoro, Thiago de Paula Souza e Wallace Ferreira e combinou prática corporal, exibição e análise crítica dos trabalhos dos artistas selecionados e uma série de atividades para acompanhamento e desenvolvimento – oportunidade para testar métodos e formas de colaboração e de apresentação.
 

A imagem é uma tela do Zoom com vários quadrados com pessoas. Há homens e mulheres negros, a maioria sorrindo.
Projeto Escola Repertório de Autodefesa (Repertório N. 2) | foto: divulgação

“Trata-se de uma escola livre, sem implicações formais. Partimos do princípio de que não pode haver distinção entre conhecimento prático e teórico e de que é essa mesma divisão que induz a uma alienação no próprio trabalho – um apelo que não dissocia corpo e mente, já que o corpo também carrega conhecimento”, explica Pontes.

A teoria é provocada por meio do estudo de pensadores como a artista e ativista brasileira Denise Ferreira da Silva, professora titular de ciência política da Universidade British Columbia (Canadá); Elsa Dorlan, autora de Autodefesa: uma filosofia da violência (2020); André Lepecki, autor de Exaurir a dança: performance e a política do  movimento (2017); e Jota Mombaça, autointitulade “bicha não binária, que escreve, performa e faz estudos acadêmicos em torno das relações entre monstruosidade e humanidade, interseccionalidade política, justiça anticolonial, redistribuição da violência e tensões entre ética, estética, arte e política nas produções de conhecimentos”.

Como registro da atividade, há o lançamento, marcado para o dia 23 de novembro de 2021, um livreto digital no Instagram @escoladerepertorio, com um texto de apresentação e várias fotos e imagens do trabalho dos artistas, como o do participante Alan Athayde, o Alan X, que escreve seu texto sem acentuação, como quem dança. 

Lançamento do livreto
terça 23 de novembro de 2021
às 20h
on-line – no Instagram @escoladerepertorio

[livre para todos os públicos]

Dois homens negros estão sem camisa, um ao lado do outro. Davi Pontes, a esquerda, possui cabelo tingido de loiro e barba. A direita, Wallace Ferreira tem o cabelo e as sobrancelhas descoloridas, e usa um piercing no nariz. Ambos usam brincos e colares.
Os artistas Davi Pontes e Wallace Ferreira fazem parte da equipe de formação do projeto (imagem: divulgação)

Repertório N. 1

O trabalho é sequência de Repertório N. 1, espetáculo realizado por Pontes no ano de 2018, em parceria com o artista da dança, performer e artista visual Wallace Ferreira. A dupla partiu de uma pesquisa corporal cuja prática carregava o desafio de posicionar a dança como uma experiência que ativa narrativas silenciadas sobre três pilares: coreografia, racialidade e autodefesa.

“A própria coreografia, como conceito, foi inventada para guardar, como registro, por um matemático e um padre jesuíta, para que a dança não desaparecesse com o tempo”, explica Pontes. “Nos nossos repertórios, falamos que, ao mesmo tempo que é importante guardar, também é importante esquecer. Pensar no tempo, na não localidade e na impermanência.”

Em Repertório N. 1, a preparação para o espetáculo começa bem antes da chegada do público: os dois artistas, nus em uma sala fechada e sem ar-condicionado, intercalam corridas e paradas por, pelo menos, meia hora e só recebem a plateia quando seus corpos já estão tomados pelo suor. Só aí começa a performance, potente, marcada pela percussão dos pés e pelo olho no olho dos artistas. “Em um primeiro momento, as pessoas ficam sem entender se é luta, parceria, ou se há um envolvimento sexual entre mim e Wallace. Depois se surpreendem com os movimentos de ataque, defesa, escape, contragolpe. Em uma luta, tudo pode acontecer, e a fuga também é uma tática de autodefesa”, diz Pontes, que conheceu o trabalho de Wallace assistindo a uma performance do artista no Rio de Janeiro.

“Guardo a noção de que a coreografia é uma parceria, minha articulação com o outro, método que não está na fala nem na escrita”, diz. O duo vai se apresentar presencialmente nos dias 4 e 5 de dezembro no festival Les urbaines, em Lausanne, na Suíça. Eles também podem ser vistos no filme Delirar o racial, realizado para a segunda edição da plataforma Pivô satélite, da Galeria Pivô, em São Paulo, e lançado em maio de 2021.

Veja também