por Cristiane Batista 

Refugiado é aquele que se vê obrigado a abandonar sua casa e seu país porque a vida em seu lugar de origem está em risco em razão de guerras, tragédias naturais, perseguição religiosa, racial ou política. Após atravessar fronteiras, desbravar territórios e procurar abrigo, cinco imigrantes encontraram mais do que isso em Curitiba (PR): uma oportunidade para reescreverem sua história em residências artísticas que se transformaram no livro Narrativas: exílios e encontros

Contemplado no programa Rumos Itaú Cultural 2019-2020, o projeto foi idealizado pelas professoras de letras Bruna Ruano e Carla Cursino após participarem de cursos gratuitos de português para imigrantes em 2013, no Centro de Línguas da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Elas queriam proporcionar uma experiência de acolhimento muito além da língua: “Uma migração em si mesmos, para que encontrassem refúgio em suas memórias, trajetórias, identidades e culturas. Normalmente, quando a gente pensa nos refugiados, não enxerga as pessoas. Nós pensamos em uma massa, e isso é muito triste, porque desumaniza cada uma das 82,4 milhões de pessoas que foram forçadas a deixar suas casas [dados da Agência da ONU para Refugiados (ACNUR)]. Por trás desse número, cada um tem um nome, uma história, uma família. A imigração é apenas mais um fator nesta vida”, pontua Carla.

A fotografia mostra quatro pessoas na tela, sendo que uma mulher está com segurando um violão, enquanto as outras presenciam a apresentação.
Myria Tokmaji, da Síria (de casaco vermelho); Ninoska Pottella, da Venezuela (de xale, com o cuatro em mãos); Gloire Nkialulendo, da República Democrática do Congo (blusa rosa); Maiker Gutierrez (de casaco marrom). (imagem: Brunno Covello)

Gloire Nkialulendo, da República Democrática do Congo, Myria Tokmaji, da Síria, Russel Cerilia, do Haiti, Maiker Gutierrez e Ninoska Potella, da Venezuela, são algumas dessas pessoas, parte dos 57.099 refugiados reconhecidos pelo Brasil, segundo dados divulgados pelo Comitê Nacional para os Refugiados (Conare) no relatório Refúgio em números, ao final de 2020. Eles toparam dividir suas experiências e transformá-las ao lado de uma equipe multidisciplinar, formada pelas professoras e pelo ator, músico e ilustrador Alexandre Zampier, pela psicóloga Elaine Schmitt e pelo fotógrafo Brunno Covello, autor das imagens do livro.

A série de residências artísticas aconteceu por quatro semanas, primeiro virtualmente, por causa da pandemia, depois presencialmente, no Campo das Artes – complexo artístico-cultural situado nos Campos Gerais, próximo a Curitiba – e em um estúdio, onde os participantes deixaram seus relatos em áudio. O trabalho consistiu em exercícios de expressão oral, corporal e de escrita, além de rodas de conversa.

Várias pessoas estão sentadas em uma sala, separadas em duas fileiras espaçadas. Na parte da frente da sala é possível ver uma mulher segurando um violão.
Equipe de autores e de produção do Narrativas: exílios e encontros na última Residência Artística, no Campo das Artes (imagem: Brunno Covello)

Os autores e as autoras foram provocados a realizar “tarefas de casa”, manipulando fotos, relembrando canções, produzindo colagens, ilustrações, poemas, cartas e textos autobiográficos em que cada um contou suas lutas, angústias, conquistas e projeções, que viraram matéria-prima para a escrita do livro.

A primeira proposta era a de voltar à infância, pensando em suas infâncias nos países de origem, na família, na escola. No segundo encontro, a ideia era refletir sobre como havia sido a transição para a adolescência e a idade adulta. Depois, o processo de imigração e o que pensam para o futuro.  

O resultado dessa nova travessia foi registrado no projeto Narrativas: exílios e encontros, o qual, além de um livro impresso, traz conteúdo digital que pode ser acessado por um QR Code que disponibiliza áudios dos participantes em português, árabe, espanhol, crioulo haitiano e francês, contribuindo para que o público também se sinta um estrangeiro. “O registro foi feito em língua materna, a primeira casa de um cidadão do mundo, e as traduções para o português ajudam a construir pontes”, explica Carla.

Histórias

No livro e nos depoimentos em áudio há histórias como a de Myria Tokmaji, nascida em Alepo, na Síria, e formada em design, que chegou ao Brasil em 2013 depois de fugir de seu país, assolado pela guerra, em um avião cravejado de balas. “Tudo o que deixamos para trás – família, amigos, sonhos e planos – não foi destruído, está em reconstrução”, acredita ela. Há também a história do haitiano Russel Cerilia, que passou por um terremoto no Haiti e acredita que suas experiências no Brasil podem ajudar no futuro de seu país. 

Fotografia de um homem negro. Ele usa cavanhaque e está com uma camiseta colorida, na qual se predomina a cor verde. Está com o rosto levemente inclinado para o lado.
Russel Cerilia, do Haiti (imagem: Brunno Covello)

Já o estudante de odontologia venezuelano Maiker Gutierrez, no Brasil desde 2016, conta ter aprendido a amar os momentos simples, “o caminho e nada mais, porque rever o passado dói, mas a gente tem que pegar essa parte e se reconciliar”, diz. Outra venezuelana, a cantora Ninoska Potella, usa sua arte para protestar contra a extração ilegal de minérios que dizima a selva amazônica venezuelana e divide familiares. “Muitos não resistiram ao caminho, outros ficaram agarrados ao tráfico de pessoas. Muitos não vão voltar a se ver”, lamenta. 

Para Gloire Nkialulendo, da República Democrática do Congo, mestre em direito internacional com especialização em direitos humanos, a experiência com o projeto foi também terapêutica. “Consegui me reconciliar com meu passado obscuro e acho que este livro tem como legado a valorização da pluralidade cultural, da unidade dentro da diversidade, porque temos várias origens e nacionalidades diferentes, mas experiências similares”, conta.

Imagem de uma mulher, com cabelo longo, cacheados e preto. Ela veste uma blusa cinza, com uma calça preta e um blusa vermelha por cima. Está com um cachecol no pescoço.
Ninoska Pottella, da Venezuela (imagem: Brunno Covello)

Carla faz coro e complementa: “O Brasil é feito por migrações e imigrações forçadas desde o dia 1, é da sua concepção como país. É inegável que a gente está em um território de múltiplas culturas, línguas, resistências e vivências. O que a gente precisa é reconhecê-las e ouvir suas vozes. Aqui no Sul do país, por exemplo, as pessoas sempre querem saber seu sobrenome, de que parte da Itália ou da Alemanha sua família é. Esquecem-se de que essas famílias vieram fugindo da pobreza tanto quanto as famílias haitianas que estão aqui. A cultura de um país está sempre mudando, se reconfigurando em nós como sociedade e em cada um como indivíduo. A migração é a chegada e a saída de onde a gente está. O que nos une é a humanidade”, conclui.

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