“Mapeamento sonoro Porto Velho” registra a cidade em áudio
11/08/2022 - 10:00
por André Felipe de Medeiros
Uma cidade na Amazônia com meio milhão de habitantes, vindos de diversos fluxos migratórios ao longo de mais de um século, a qual se estende por uma enorme planície à beira do Rio Madeira. Porto Velho (RO) é uma cidade cheia de particularidades que nem todos podem ter a oportunidade de conhecer, principalmente levando-se em consideração sua distância de outros centros urbanos brasileiros, mas o projeto Mapeamento sonoro Porto Velho oferece uma experiência singular de contato com a capital rondoniense através da audição.
Realizado no formato de cartografia sonora – no qual gravações são feitas, normalmente durante caminhadas (sound walks), para registrar os elementos acústicos que formam a paisagem de determinado local –, o projeto, contemplado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020, explorou a área urbana de Porto Velho e também seus arredores em captações que documentam a vida dos habitantes nas cidades e a natureza local, em um resultado que é tão investigativo da geografia social do lugar quanto uma obra de arte.
O projeto foi idealizado e realizado por três artistas locais com experiência em produção musical: Anderson Silva, Rinaldo Santos e Anderson Benvindo. Ao comentar o trabalho, Silva conta que seu conceito surgiu de conversas entre os três sobre ecologia acústica – ciência que estuda a relação dos seres humanos com o ambiente através dos sons –, e, daí, resolveram criar na linguagem da cartografia sonora. “Escolhemos um formato que pudesse apontar as paisagens sonoras específicas daqui e que influenciam a maneira como se vive e os relacionamentos interpessoais”, explica.
Natural de Humaitá, cidade no Amazonas na divisa com Rondônia, Silva mudou-se para Porto Velho aos 7 anos de idade e foi lá que ele realizou seus estudos e desenvolveu carreira na música, sendo também integrante da banda Soda Acústica. Ele conta que trabalhar no Mapeamento sonoro não só o fez revisitar sua relação com a cidade, mas também entender melhor sua história.
“Na escola, estudamos sobre as muitas etnias que formaram a cidade em seus diferentes fluxos migratórios, que transformaram a paisagem ao longo desses cem anos”, conta. “Tive que revisar tudo o que sabia enquanto caminhava e captava o áudio, pensando no desenvolvimento da cidade. Isso me conectou de uma maneira diferente com Porto Velho e com as questões de consciência histórica e ambiental.”
Chamou-lhe atenção, por exemplo, notar que um grande marco sonoro da história do local não existe mais: o som do trem, cuja construção da linha férrea se deu na fundação da cidade, em 1907. O registro da paisagem sonora contemporânea – como o que se ouve à beira do Rio Madeira, “com os barcos passando e a vida ribeirinha”, ou em pontos turísticos (como o Porto do Cai n’Água) e nos muitos balneários naturais, com seus igarapés e pequenas cachoeiras, frequentados pela população local aos fins de semana – faz-se também como uma documentação para a posteridade da Porto Velho dos nossos dias.
Do registro à música
Anderson explica que Mapeamento sonoro foi feito por meio de três “eixos”. O primeiro deles é o registro da paisagem urbana, no qual os produtores caminharam por ruas, avenidas e praças de grande importância para a identidade local. “O fundo histórico foi o que nos orientou a ir aos lugares que trazem mais da tradição ou do desenho de uma identidade cultural”, conta ele. O segundo eixo é justamente a documentação da natureza, com a Floresta Amazônica e a visita a uma tribo karitiana a 50 quilômetros da capital.
Ambos os processos foram realizados através da captação em formato binaural 3D, ou seja, que permite a identificação da espacialidade pelo ouvinte através apenas da disposição dos sons nos fones de ouvido. Já o terceiro eixo, que eles chamam de “parte sintética do trabalho”, foi executado não apenas por outro meio, mas também com outra intenção.
Com o uso de PlantWave, tecnologia que precisou ser importada para a execução da obra, foram captados os impulsos elétricos de plantas locais, desde árvores até flores. “O equipamento codifica isso em um algoritmo que está relacionado a notas musicais”, explica Silva, “então, esses impulsos, à maneira rítmica com que eles chegam, vão criando sons. Temos a possibilidade de escolher um tom e dá para fazer uma breve configuração de composição. É uma tradução musical do impulso de cada planta e, usando diferentes presets e timbres na estrutura, nós tiramos sons diferentes.”
A intenção musical foi a última ideia a ser incorporada ao projeto, mas está ligada intimamente à sua gênese, visto que ele foi criado na reunião de três músicos. Parte da produção de Silva está relacionada a músicas de relaxamento e meditação, uma tendência contemporânea (principalmente após o isolamento na pandemia) que se utiliza também de sons da natureza. “Fico feliz por perceber que há conexão entre o que está sendo produzido agora e o que foi criado a partir dessa cartografia sonora”, conta Silva.
Ele comenta, ainda, que a necessidade de sons que nos conectem à natureza ficou explícita durante as gravações na área urbana. “Tive uma grande dificuldade em alguns lugares com a poluição sonora”, relata o artista. “Existe aqui uma cultura de as pessoas colocarem caixas de som para fora das lojas e casas. Quando ouvi as gravações, percebi que há sempre muita interferência. Logo, o projeto pode ser usado como um banco de dados de pesquisa das questões acústicas e ecológicas, mas também de saúde.”
De acordo com Silva, essa é a primeira intenção de uma cartografia sonora na Região Norte do Brasil, entre as poucas já produzidas no país. “Mapeamento sonoro Porto Velho coloca a região em comunicação com o restante do país de uma maneira que as pessoas possam, por meio do som e das frequências sonoras, ter uma experiência artística com profundidade”, afirma. “O trabalho tem muita força por ser na Amazônia, com sua infinidade de lugares, e nós podemos levar um pouco da imersão da floresta para quem não mora aqui, e principalmente para quem mora nos grandes centros do mundo.”