por Heloisa Iaconis da Costa

 

Soledad. Maria. Cleide. Felicia. Suzy. Mulheres que sobrevivem e se deslocam em territórios fronteiriços, personagens que se fazem no chão entre Brasil, Paraguai e Argentina. São elas e outras mais que compõem o documentário Pasajeras, cuja direção é de Fran Rebelatto, cineasta e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila). Selecionado na edição 2017-2018 do programa Rumos Itaú Cultural, o projeto teve suas gravações realizadas em setembro de 2019 e, agora, o material está com a editora Virginia Osório Flores, responsável pela montagem. Existem ainda demais fases técnicas, a exemplo da edição de imagens e de som, correção de cor e legendagem, longo percurso de lapidação de uma narrativa que é, a valer, o cruzamento de muitas tramas femininas. Todas femininas.

De laços e trocas

Confiança é um sentimento que precisa madurar: uma conversa, um próximo encontro, mais um, outro papo e, de pouco em pouco, cria-se um elo. Fran bem sabe disso e vem construindo, há seis anos, uma relação atenciosa com as caminhantes das fronteiras. Meses atrás, pouco antes de colocarem a câmera para rodar, as equipes, tanto da produção quanto do Rumos, fizeram juntas uma imersão: visitas a locações e espaços de trabalho e moradia das protagonistas formam o trajeto dedicado ao conhecimento íntimo da área de divisa, dos tempos de travessia e das dinâmicas de deslocamento. Em uma segunda etapa, produtoras e personagens compartilharam momentos pessoais, em um círculo de escuta recíproca. A reunião, ocorrida no Centro de Direitos Humanos, em Foz do Iguaçu (PR), estreitou ainda mais o vínculo entre as envolvidas. Já em uma terceira oportunidade, o roteiro ganhou uma leitura conjunta, chance de elaborar um texto final com as contribuições das participantes, posto que, uma semana à frente, começariam as gravações.

E começaram. Durante 20 dias, filmadoras, tripés e fios foram para lá e para cá nos três países implicados. “Foi um processo intenso, profundo e bonito, pois contamos com a generosidade enorme de cada mulher que nos permitiu interferir em sua vida com uma proposta que parte do documentário, mas se estrutura como uma ficção”, afirma Fran. Acessar o coração de quem é retratado nas telas gera expectativa – e uma responsabilidade enorme. A diretora tem ciência exata desse misto de sensações: à postura séria soma um entusiasmo para que as sequências fiquem prontas, fora a alegria por ter sido contemplada pelo edital do Rumos e, por isso, conseguir apresentar trajetórias, feitas de laços e trocas, que há muito lhe comovem.

O acaso sorri

No início, Alejandri não constava no elenco pelo simples motivo de não a conhecerem. Nem Fran nem nenhuma outra integrante do grupo presumiriam que, de um jeito inesperado, uma menina indígena Maká assumiria um papel importante na lógica do enredo. Até que ela, Alejandri, apareceu no decorrer das filmagens e passou, assim, a simbolizar a ideia de que essa terra de fronteiras é, historicamente, indígena, de trânsito de vários povos, zeladora de lendas e gente. Gente grande, gente pequena (como a garotinha).

Alejandri | foto: Luciana Baseggio

O imprevisto, é certo, não veio só na figura de uma criança. Por se tratar de um longa cujas protagonistas não são atrizes, o fascínio e a entrega total dessas mulheres arrebataram a equipe inteira. “A comerciante Felicia tomou tamanho gosto pela produção que acabou nos ajudando e fez questão de assistir as colegas quando estavam em cena”, recorda Fran. Espalhou-se, pois, pela comunidade, uma dada admiração pelos mecanismos que sustentam o atrás das lentes: a captação em desacordo com a ordem cronológica do filme, o contato com os aparelhos, a complexidade intrínseca ao próprio fazer cinematográfico. Para Fran, “perceber essa capacidade de encantar aqueles que não são do meio é uma das coisas mais bonitas do cinema”. O não planejado, o tal do acaso, enfim, chega, por vezes, acompanhado de surpresas boas, brilhos – e sorri.

Dentro e fora do set

Produzido pela Besouro Filmes, de Porto Alegre, em parceria com a Vision Art, de Foz do Iguaçu (PR), e a argentina Cooperativa de La Tierra, Pasajeras (cujo lançamento está previsto para abril de 2020, em circuitos de festivais brasileiros e estrangeiros) é gestado por um time, em sua maioria, feminino. Essa configuração representa, segundo Fran, “um compromisso histórico de mudança de um set de filmagem, ambiente sempre majoritariamente ocupado por homens”. A equipe une quatro docentes do curso de cinema e audiovisual da Unila (entre elas, Fran Rebelatto), três profissionais graduadas pela universidade e quatro atuais estudantes, o que possibilitou a expansão de um diálogo intergeracional para além da sala de aula. “Creio que todas saímos tocadas com tudo o que vivemos coletivamente. Trata-se de um projeto colaborativo, respeitoso e que dá um passo no sentido da desconstrução de uma sociedade machista”, resume a criadora. Uma conduta fiel dentro e fora do set.

 

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