por Heloísa Iaconis

Com quantas catástrofes se faz uma vida? Dos desastres coletivos aos particulares, os reveses todos reverberam no interior humano. Em Andradas, cidade no sul de Minas Gerais, lugar pequeno, mora um garoto que, de súbito, se vê nu diante de uma matilha. Uma foto revela-o: de joelhos em um banheiro de um clube, o seu corpo avisa que gosta de corpos iguais. Ele é gay – mas ali, vindo de um âmbito conservador, não poderia ser, dizem os outros. A imagem acaba por colocá-lo em bocas alheias, espalhada pelos corredores do colégio, estopim para insinuações várias. Surgem a culpa e, após andanças e ressignificados, o desejo livre enfim. As forças do pesar e do querer, luta simbolizada pela exposição cruel, são a tônica do primeiro romance de Leonardo Piana, um trabalho que mescla ficção e lembranças pessoais em uma espécie de invento da memória. Com linearidade temporal, elaborada a partir de fragmentos, com o ritmo a se intensificar no decorrer dos capítulos, a narrativa entremeia baques e faltas em uma busca por existir.

Contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2017-2018, o projeto chama-se Sismógrafo, título que abarca, por exemplo, pesquisa jornalística, leitura de textos-base e revisão do volume. O enredo propriamente dito, vale observar, não tem ainda um nome, a ser construído ao longo do processo literário, trajetória essa que conta com Luiz Ruffato no posto de consultor. “Não esperava ser selecionado pelo Rumos. E fui. Receber a notícia foi emocionante. Senti como se tivessem me dado uma chancela, um recado: agora vá, caminho certo”, afirma Leonardo. Agora vá. E está ele indo, indo em direção da sua vontade maior: “Quero poder viver à luz da minha origem, da minha história, não à sua sombra”, resume o escritor, frase que cabe nele e em seu personagem.

Circuladô

Que deus te guie, aponta Haroldo de Campos em um poema de Galáxias (1984). Que Deus te guie, apontava também uma família interiorana, noite atrás de noite. Nesse lar cristão, em Andradas (onde se passa quase a obra inteira), nasceu Leonardo. Em círculo, rezavam ele, o irmão, o pai e a mãe antes de dormir. Noite atrás de noite. Primeira Comunhão, sacramento da Crisma. Apesar do laconismo de seus pais, os dizeres devotos, mesmo no silêncio, prevaleciam. Livros não havia na casa; o que existia, sem dúvida, era a conduta rígida – pecado, penitência, perdão. Desse jeito, desenvolveu-se o rapaz, com um vazio de palavras outras. Da lacuna emerge a ânsia da criação: desde 8 ou 9 anos, formula versos. “Mas, na adolescência, passei a escrever cada vez menos. A sensibilidade para a escrita estava ligada demais ao feminino, assim como a minha timidez. Escrever virou, então, ‘coisa de bicha’. E eu não queria ser bicha”, relembra o autor. A contrição instaura-se e ele inicia um conflito íntimo para detê-la.

Hoje, aos 26 anos, Leonardo acredita que o esmorecer da escrita, na puberdade, foi um erro. Aprendeu, contudo, a não se achacar, lição árdua e preciosa. Adolescente, em meio a um clima de “todo mundo comenta sobre todo mundo”, ele carregava um medo grande daquilo que a fofoca corrompia. “Se falam, não é um problema meu. É um problema deles. Eu vou continuar amando” – sentencia o homem, agora fortalecido, capaz de transpor as suas experiências para uma trama concebida. Haroldo de Campos, em sua poética, “não pode guiá”; Leonardo, por seu turno, pode. E guia. O tesão – pelo próximo escolhido e por si. Um novo círculo seu.

Linguagem resgatada

Libertação: no começo de 2011, Leonardo mudou-se para a capital paulista com o intuito de estudar comunicação na Universidade de São Paulo (USP). Deixar Andradas, ver-se longe do juízo inquisidor. Na metade de 2017, ano em que se inscreveu no edital do Rumos, era aluno de uma oficina, na Casa Mário de Andrade, ministrada pela escritora Geruza Zelnys. Nesse curso, a sua produção ganhou uma unidade, uma voz coerente. As linhas giram em torno da culpa e do desejo, os seus temas-mote, questões que sempre o acompanharam. “Foi importante colocar esses assuntos na roda, ajudou o romance a tomar forma. Sou grata à Geruza pelo estímulo”, pontua o artista. A prosa procura compreender as vontades – que perpassam pelo amor, pelo sexo, pela fuga.

Leonardo Piana | foto: Joaquim Ramalho

Mexer em recordações suas é a maneira encontrada pelo ficcionista para imprimir verdade ao enredo. “Não significa que o que narro é real. A maioria é inventada, mas tento trazer o que senti em determinada situação, com alguém, para relatar não como ocorreu e sim imaginar como poderia ter ocorrido”, explica Leonardo. A inserção, nessa teia, de infortúnios globais também constitui uma técnica de explorar a realidade. O 11 de setembro, o terremoto no Haiti em 2010, a chacina na região metropolitana de São Paulo (SP) em 2015, o atentado em Paris no final de 2015, o rompimento da barragem em Brumadinho em 2019. Desgraças não param de acontecer e, a despeito da frieza dos números (10, 100, 200 vítimas), refletem uma dimensão profunda, visceral, do eu com o eu no centro do caos. É essa a essência a ser capturada por intermédio da literatura.

Retorno ao ventre

Em razão da obra, Leonardo voltou, em 2019, para Andradas: três meses passou lá, o período mais longo desde sua transferência. A geografia local entrou em uma esfera reflexiva, gestos foram recapitulados; espaços, revisitados. Abandonou a certeza de nunca mais residir na terra natal e não compactua com a arrogância de menosprezar municípios menores. “Quero a origem impressa na minha cara, com os desejos culpados de menino gay crescido no interior, com os meus erros e os meus acertos”, pondera o jornalista.

Reconciliação semelhante firmou com a sua mãe – ou, para colocar nos termos do narrador da trama, com a mãe, visto que o pronome de posse não combina com o papel atribuído àquela mulher. Depois de muito cobrar que a mãe se encaixasse nos parâmetros de maternidade por ele estabelecidos, o autor notou que a relação de ambos não se enquadra no duplo mãe-filho. “Nós nos respeitamos e nos aceitamos. É preciso que os filhos aceitem que as mães são, antes, livres”, salienta. A liberdade que Leonardo Piana conseguiu, a liberdade esparramada pelas sílabas de seu trabalho, a liberdade que é sensibilização, questionamento, beleza, amor. Vida – ainda que com catástrofes.

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