por Heloísa Iaconis

Era junho de 1494 quando, na vila de Tordesilhas, Portugal e Espanha dividiram o “novo continente” por meio de uma linha hipotética que passava a 370 léguas de Cabo Verde. A terra localizada a leste pertencia aos portugueses, e com os espanhóis ficava a porção a oeste. O território da gente lusitana tinha início próximo a onde hoje se encontra Belém, capital do Pará, e, como uma reta, descia até perto de Laguna, em Santa Catarina. Esse tratado, bem se sabe, foi desconsiderado em 1750 (após um tanto de invasões portuguesas à área castelhana) e seguido por outro firmado em Madri.

É o acordo do século XV, porém, que serve de orientação para que Anderson Astor e Túlio Pinto se embrenhem no Brasil: em maio de 2020, a dupla pretende viajar de Belém a Laguna e, durante o caminho, deve registrar o entorno – principalmente, fotografando. “O Tratado de Tordesilhas não tem peso algum na atualidade. Contudo, a partir desse traçado, o país cresceu, inchou e o marco ficou ali no meio”, destaca Anderson. Intitulado Tordesilhas, o projeto, selecionado pelo edital Rumos 2017-2018, visa contemplar a diversidade de paisagens e histórias que pulsam no interior brasileiro.

Túlio Pinto e Anderson Astor com as suas companheiras inseparáveis: as bicicletas | foto: divulgação

Para conhecerem com calma cada canto, além de estabelecerem uma relação de intimidade com o contexto, os amigos transitarão de bicicleta – três dias com as rodas em movimento para um dia de descanso. “Sem um veículo motorizado, que é uma camada adicional, ficaremos muito mais sensíveis ao que estará à nossa volta”, comenta Anderson. Ele e Túlio, aliás, têm experiência de sobra em iniciativas que compreendem deslocamentos. De forma separada, os artistas já andaram por várias regiões, como reservas indígenas e praias. Tempos atrás, Anderson executou um trajeto inteiro a pé. Túlio, por sua vez, completou um roteiro correndo. Apenas os dois, pedais que pouco pararão e o mínimo de bagagem: a expectativa é de uma imersão grande, grande como o chão a ser trilhado.

Marabá (PA), na sequência um lugar entre Goiânia (GO) e Brasília (DF), Uberlândia (MG), Ouro Preto (MG), Curitiba (PR), Joinville (SC): no horizonte dos parceiros há cidades desejadas, prováveis, mas nada de bater o martelo da certeza. Ao longo do processo ocorrerão mudanças, intervenções externas (desde o clima – do sol à chuva – até o improvável), pitacos deles próprios à procura de rotas alternativas. “O interessante é o exercício de explorar o novo e o que isso gerará em nós. Essa dinâmica interna não tem como prever”, diz Túlio. Só mesmo com a vida posta na estrada, no período de realização, é que o trabalho ganhará corpo – cujo eixo é a captação de imagens (o que não impede, no entanto, de surgir inspiração para textos, palavras). Labuta-se com o inesperado.

Dessa vivência de aproximadamente três meses (uma estimativa, lembre-se) pode nascer uma exposição, um site, uma publicação. A risca de Tordesilhas diferenciava o conhecido do desconhecido do ponto de vista das metrópoles europeias naquela época. E também a arte, assim como a ciência, não pertence ao campo daquilo que não se sabe, daquilo que é, em certa medida, mistério? Depois de não terem sido aprovados na edição 2015-2016 do programa Rumos, Anderson e Túlio reformularam algumas ideias, cortaram outras e se inscreveram, em 2017, de novo. Selecionados, percebem, agora, que é possível aliar à esfinge um norte: “Estamos felizes. Apesar de lidarmos com muitas dúvidas, temos a segurança de seguir um fio condutor e de ter o suporte do Itaú Cultural”, afirma Túlio. Há, enfim, um enigma. Um enigma, todavia, firme.

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