Casarão abandonado ganha vida nova pelas mãos do coletivo Mouraria 53
27/12/2021 - 09:00
por Ana Luiza Aguiar
“Era uma casa muito engraçada, não tinha teto, não tinha nada.” Essa primeira estrofe da música “A casa”, escrita por Vinicius de Moraes, parece descrever perfeitamente a Mouraria 53, um casarão no Centro Histórico de Salvador, na Bahia, em 2017. Dez anos antes, três irmãos compraram o imóvel, que estava quase em ruínas, com a ideia de reformá-lo. A reforma nunca saiu do papel e o casarão continuou abandonado. Foi aí que um coletivo, que tinha entre seus integrantes alguns estudantes de arquitetura, fez uma proposta ousada: eles queriam habitar e ocupar o espaço sem pagar aluguel, em troca de reformá-lo e devolvê-lo quatro anos depois em melhor estado. Foi o início de um experimento em arquitetura e habitação que se transformou também em uma investigação arquitetônica e artística.
Esse processo todo foi cuidadosamente registrado pelos fotógrafos Fernando Gomes (hoje um dos integrantes do coletivo Mouraria 53), Alan dos Anjos, Milena Abreu, Manuel Sá e Rodrigo Sena, e resultou no fotolivro cincotrês, que documenta a caminhada em meio ao caos da reforma experimental do casarão. Ali, construção e habitação acontecem simultaneamente, e os significados de habitação são múltiplos: uma clínica de psicologia se sobrepõe a festas, pequenos escritórios, moradas, ateliês, espaços de reunião, exposições, shows, um bar comunitário que vira cozinha vegana.
A obra inverte ordens da arquitetura tradicional, e a construção se inicia antes da existência de um projeto acabado. Lá dentro, carpinteiros, serralheiros e pedreiros se tornam professores de arquitetos e acadêmicos. E a reforma foi possível graças ao reúso de materiais que sobraram de mais de 70 reformas e demolições de Salvador.
O processo de edição do livro, uma parceria entre o coletivo e a Editora Gris, é apoiado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2019-2020 e aconteceu durante a pandemia de forma remota, o que envolveu uma navegação nostálgica pelos milhares de arquivos acumulados entre 2017 e 2021. “O livro é um documento de sonhos e experiências e também um labirinto, em que nos perdemos em tempo e espaço, incerteza e trocas”, explica Lara Perl, coordenadora editorial do projeto. “A casa vira livro e o livro vira casa; ambos possibilitam o nosso encontro de diferenças, de sonhos individuais e delírios coletivos.”
Além de Lara, a publicação tem projeto gráfico de Rafa Moo e edição coletiva de Alan dos Anjos, Dário Sales, Fernando Gomes, Filipe Duarte, Iago Lobo, Lara Perl, Pedro Alban, Rafa Moo e Rodrigo Sena. A previsão de lançamento é fevereiro de 2022.
Histórico
A história da casa não é incomum no Centro de Salvador. Construída nas primeiras décadas do século XX, em 1938 foi doada à Santa Casa de Misericórdia. Em uma cidade cada vez menos religiosa, a instituição enfraqueceu e não conseguiu manter o imóvel habitável, e a casa passou por uma fase de abandono e ocupações informais, até que, em 2005, finalmente foi leiloada com outros “imóveis-problema”. Três irmãos, Marcus, Naia e Cláudio, adquiriram o imóvel. Um novo telhado foi feito, mas os planos para o casarão foram frustrados pelo colapso de outros negócios familiares. Sem possibilidades de investimento e sem valor de revenda, o imóvel foi abandonado em uma espécie de limbo – até a chegada do coletivo de jovens com suas ideias mirabolantes.