por David José Lessa Mattos
“Sapo não pula por boniteza; sapo pula por precisão” – Riobaldo Tatarana, Grande Sertão: Veredas (1956), de João Guimarães Rosa
Às vezes, vinda não sei de onde, a figura de Lima Duarte irrompe e invade meus pensamentos. Como se fosse num sonho, ele aparece vário, diverso, múltiplo, numeroso, com dezenas, centenas de faces em diferentes épocas de sua vida, rostos seus e de personagens que interpretou. Quando isso acontece, uma pálida lembrança de mim mesmo se insinua na minha consciência. Junto com recordações do passado, antigas emoções recobram vida e se misturam com o presente. Logo tomam conta de mim uma profunda admiração e respeito por ele, os mesmos sentimentos que tive quando o conheci, em 1953, ele com 23 anos de idade, eu, menino ainda, com 11 anos.
Naquele tempo, eu saía do grupo escolar por volta do meio-dia e caminhava sozinho uns 2 quilômetros por uma estrada de terra cercada de eucaliptos até chegar ao sítio onde meus pais moravam, que ficava além de Campo Grande, nas cercanias do bairro de Santo Amaro, perto de Interlagos. De repente, um dia, numa curva dessa estrada, eu me deparei com ele. Que emoção diante daquela figura exuberante! Ele era um soldado nordestino, daqueles que caçavam cangaceiro, usava grandes botas e trazia uma espingarda nas mãos. Manhoso, avançava cautelosamente, metia os pés na lama de uma poça d’água e apontava sua arma fazendo mira em alguém. Participava das filmagens em 16 mm de pequenas cenas externas, sem áudio, que entrariam no programa TV de Vanguarda, o famoso teleteatro que a TV Tupi-Difusora de São Paulo levava ao ar, ao vivo, aos domingos à noite. Outros artistas da televisão também estavam lá: Dionísio Azevedo, sua mulher Flora Geni, Lia de Aguiar, Heitor de Andrade, Jota Silvestre...
O trabalho deles prosseguia e eu ali, quieto num canto, só olhando. Depois de um tempo, Lima puxou conversa comigo, perguntou onde eu morava, em que ano estava na escola, foi me dando corda até eu ficar à vontade. Já entrosado, perguntei o que ele fazia com aquela espingarda na mão, se era de verdade ou de brincadeira. Era de brincadeira, ele disse. E disse ainda que tudo o que ele e seus amigos faziam ali também era de brincadeira. Perguntei então se era difícil fazer aquilo que ele fazia. Ele me perguntou: “Você já brincou de bandido e mocinho, não brincou?”. “Já”, respondi. Ele continuou: “É difícil brincar de mocinho e bandido?”. “Não. É gostoso”, eu disse. Foi quando ele arrematou: “É isso aí. Fazer teatro não é difícil, não. É gostoso. É como brincar de mocinho e bandido”.
>>Acesse conteúdos exclusivos no site da Ocupação Lima Duarte
>>Agende sua visita
Alguns meses depois, levado por ele e por Lia de Aguiar, fui fazer teatro infantil na TV Tupi-Difusora. Os dois me conduziram ao casal Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, que produziam na televisão O Sítio do Pica-Pau Amarelo, de Monteiro Lobato. Desde essa época e até os meus 26 anos de idade, convivemos cotidianamente como amigos e trabalhamos juntos na televisão, no teatro e no cinema. Foram os anos da minha adolescência e de parte importante da minha juventude, anos em que ele foi uma espécie de paradigma a ser seguido, como ator e como ser humano. Aliás, vem agora à minha memória aquela noite de domingo, no mês de agosto de 1960, quando termina o primeiro ato do teleteatro TV de Vanguarda, que apresentava ao vivo uma adaptação do conto “O Último Pirata”, de Arkady Avertchenko, em cujo elenco estavam, além de mim, o Adriano Stuart, o Percy Aires, a Geni Prado e o Lima, que fazia o papel de um pele-vermelha. Eu era o protagonista da peça e tinha páginas e páginas de texto com longas falas, os chamados “bifes”, a ser ditos de cor, sem o auxílio de ponto. No intervalo do primeiro para o segundo ato, saio apressado do estúdio querendo urinar. Quando estou no corredor que havia ali ao lado, eu me encontro com o diretor artístico do programa, o Walter George Durst, que, saído da sala de direção, o switcher, abraça-me carinhosa e efusivamente, dizendo: “Grande, grande, Davizinho! Está ótimo, ótimo! Você é o nosso Liminha, o nosso Liminha!”. Que coisa boa, meu Deus! Eu comparado a ele, ao grande ator Lima Duarte, que eu admirava tanto, comparação feita pelo Durst, o principal diretor de teleteatro da televisão! Foi isso que me passou pela cabeça. Esvaziei a bexiga em seguida e mal tive tempo de saborear a satisfação que senti naquele momento. O segundo ato estava prestes a começar e os “bifes” que eu ainda tinha de dizer eram também enormes e me preocupavam. Mas foi uma sensação tão forte que me envaidece até hoje, reproduzindo-se agora, neste momento em que escrevo. Realmente, que orgulho sinto de ter sido um dia comparado a ele, como ator!
Durante toda a década de 1950 e início dos anos 1960, à semelhança do que ocorreu nessa mesma época nos Estados Unidos, os teleteatros e teledramas foram programas de grande sucesso e prestígio artístico na televisão brasileira. Esse foi o período que antecedeu o aparecimento do videotape no Brasil e o surgimento das telenovelas em capítulos diários, as quais, impulsionadas por interesses comerciais, logo se tornaram o principal produto teledramatúrgico da nossa televisão. De fato, antes da telenovela diária era intensa a produção de teleteatros, teledramas, séries e seriados dramáticos. Nos anos de 1958, 1959 e 1960, por exemplo, a TV Tupi-Difusora, já dispondo de um terceiro estúdio construído em 1956, colocava no ar semanalmente cerca de dez produções dramáticas, todas elas ao vivo. Além dos programas teleteatrais com cerca de duas horas de duração, apresentados aos domingos e às segundas-feiras à noite (TV de Vanguarda, TV de Comédia e Grande Teatro Tupi), havia também as séries TV-Teatro (logo substituída pela série Contos Brasileiros) e O Contador de Histórias (a mais antiga de todas, iniciada em 1955), que apresentavam semanalmente, às quintas e sextas-feiras à noite, histórias inéditas de 50 minutos. Acrescentem-se a essas produções os seriados de romance, geralmente baseados em renomados textos literários adaptados para a televisão. Cada história permanecia cerca de dois meses em cartaz e era levada ao ar em capítulos semanais ou bissemanais com menos de uma hora de duração. Foram assim as apresentações dos seriados Kim (1955), de R. Kipling, de que participei no papel título, Oliver Twist (1956), de C. Dickens, Os Miseráveis (1957), de Victor Hugo, Os Três Mosqueteiros (1957), de A. Dumas etc. Por fim, havia ainda os programas teleteatrais infanto-juvenis produzidos por Júlio Gouveia e Tatiana Belinky, como a série O Sítio do Pica-pau Amarelo, às quartas-feiras, 19h, com capítulos de meia hora; os seriados Pollyana, Nicholas, Angelika etc, também com capítulos de meia hora, às terças e quintas, 19h20, e o Teatro da Juventude, pequena peça de dois atos com mais de uma hora de duração, adaptada da literatura infantojuvenil mundial, que inicialmente ia ao ar nas manhãs de domingo e, depois, se fixou no horário do início das tardes de domingo.
Nesse tempo, Lima Duarte trabalhava sem parar, era visto pelos telespectadores todas as semanas e, algumas vezes, aparecia em mais de um espetáculo dramático. É preciso dizer que era alucinante o ritmo de produção dos teleteatros, teledramas, séries e seriados. Dispunha-se de somente cinco dias para a memorização do texto e marcação das cenas de um teleteatro como o TV de Vanguarda e de apenas dois dias para os ensaios de um teledrama de 50 minutos como O Contador de Histórias. Quando faltavam atores para completar o elenco de um programa, Cassiano Gabus Mendes, o diretor artístico da televisão, dizia aos produtores: “Dá o papel para o Lima que ele faz”. E ele realmente fazia, interpretava qualquer personagem que lhe fosse indicado. “Pode mandar para mim que eu traço!”, dizia ele em tom de brincadeira, reforçando o sotaque mineiro. E com todas as suas mineirices, com aquela sua “voz de sovaco”, como costumava definir seu modo de falar parecido com a fala do matuto mineiro, deu vida a inúmeros personagens, sempre com grande propriedade e brio, esbanjando talento e inteligência. Na TV Tupi-Difusora, representou personagens de autores como Dostoiéviski, Gorki, Dumas, Balzac, O’Neill, Tennessee Williams, Bernard Shaw, Ibsen, Gogol, Tchecov etc. e desempenhou importantes papéis como Fausto, de Goethe, e Iago, Hamlet e Macduff, de Shakespeare. Representou inúmeros personagens brasileiros, com predileção pelos sertanejos, jagunços e coronéis nordestinos e, principalmente, pelos homens do interior das Minas Gerais saídos dos contos de João Guimarães Rosa, que ele tanto ama. Inesquecível sua atuação como Augusto Matraga, em 1958, ao lado de Dionísio Azevedo, que fazia o papel de Joãzinho Bem-Bem. Representou também diversos personagens de escritores, novelistas e roteiristas norte-americanos, cujas histórias Durst costumava adaptar para o TV de Vanguarda. Aliás, algumas delas já haviam sido apresentadas na Rádio Difusora, no famoso Cinema em Casa, programa produzido pelo Durst, que, antes mesmo do nascimento da televisão, já radiofonizava filmes e roteiros dos melhores diretores do cinema norte-americano. Cassiano Gabus Mendes, Dionísio Azevedo e Lima Duarte participavam desse programa no rádio, ao lado do Durst. Lima atuava algumas vezes como radioator, mas sua tarefa principal era pesquisar as trilhas sonoras dos filmes e cuidar da sonoplastia. Começou aí, com Cassiano, Durst e Dionísio, seu interesse pela música e pelo cinema norte-americanos, por escritores, novelistas e roteiristas de cinema, entre os quais se destacavam Ben Hecht, Paddy Chayefsky e Delbert Mann, e pelos compositores de trilhas musicais para o cinema, como Alex North, que compôs em 1951 a trilha original do filme Um Bonde Chamado Desejo, dirigido por Elia Kazan. Aliás, o tema de abertura do teleteatro TV de Vanguarda foi tirado de uma das músicas dessa trilha sonora.
Muitos dos nomes de roteiristas, músicos e diretores de cinema daquela época vêm hoje à minha mente trazidos pelas lembranças que ficaram da minha adolescência e da convivência que tive com o Lima e seus amigos Durst, Cassiano e Dionísio. Lembro-me que durante certo tempo, talvez em 1956 ou 1957, eu devia ter uns 15 anos, ia seguidas vezes no início da tarde à sala de sonoplastia da Rádio Difusora, onde ficavam os toca-discos, para assistir ao Lima fazer seu programa Lima Duarte Show, em que apresentava e comentava músicas de Nat King Cole e Frank Sinatra e arranjos musicais de grandes maestros, entre eles Gordon Jenkins e Nelson Riddle. Por ter começado sua carreira no rádio como técnico de som e sonoplasta, ele mesmo operava os equipamentos. Enquanto falava ao microfone contando aos ouvintes histórias de música e cinema, colocava um disco no prato giratório, ajustava a ponta da agulha na faixa escolhida, mantinha o disco parado com a pressão de um dedo para que não girasse juntamente com o prato, mexia num botão para obter um efeito de fade in, fade out e, rapidamente, tirava a mão do disco, soltando a música.
No cinema, estamos juntos no filme O Sobrado, realizado em 1955, com direção de Walter George Durst e Cassiano Gabus Mendes. Aparecemos também no filme Contos Eróticos, de 1977, ele no episódio “Arremate”, de Eduardo Escorel, eu no episódio “Arroz e Feijão”, de Roberto Santos. No Teatro de Arena de São Paulo, ele atuou durante dez anos, de 1961 a 1971, participando de várias montagens, com destaque para Os Fuzis da Senhora Carrar, de Bertolt Brecht, e para as peças O Tartufo, de Molière, e Arena Conta Zumbi, de Gianfranceso Guarnieri e Augusto Boal. Foi ele quem me levou para lá, em 1964, indicando-me ao Boal e ao Guarnieri para que eu participasse da montagem de O Tartufo. Nessa peça, ele fez o papel de Orgonte e eu o de Damis, seu filho. O elenco era formado por excelentes pessoas e por atores brilhantes, como ele próprio, Miriam Muniz, Guarnieri e Paulo José. Em seguida, participamos da primeira montagem do espetáculo Arena Conta Zumbi, em 1965, que ficou mais de um ano em cartaz.
Autodidata e dotado de privilegiada inteligência, Lima nunca deixou de estar atento, de se interessar por tudo o que dissesse respeito à literatura, à poesia, à música, ao teatro e ao cinema. Sobretudo, nunca foi alheio aos sentimentos e valores do homem comum, aos seus espantos, aos seus temores, às suas esperanças, aos seus sofrimentos, às suas paixões. Intuitivamente, foi percebendo ao longo da vida que todo trabalho artístico e, em seu caso particular, a arte de representar, está diretamente ligado a questões éticas. Com simplicidade e liberdade, isto é, sem pejo ou temor de julgamentos depreciativos, viveu sinceramente à busca de toda a sorte de conhecimentos para exercer seu ofício da melhor maneira possível, visando sempre expressar alguma verdade humana através de seus personagens. Fez isso até mesmo nas telenovelas em que atuou mais recentemente na Rede Globo, criando alguns personagens inesquecíveis, como Zeca Diabo, Sinhozinho Malta e Sassá Mutema. Realmente, na vida, Lima “não pulou por boniteza, pulou por precisão”. Não pulou por vaidade, para se exibir, ser admirado e cortejado. Pulou porque foi preciso para que pudesse existir e se construir a cada dia, justamente como faz para compor os personagens que representa. Pulou e continua pulando, continua observando os homens, estudando, lendo, vigiando, tomando daqui e dali o que de melhor encontra para sua autoconstrução, pois, como autor de si próprio, sabe que nunca estará pronto, formado, acabado. Culto e humilde na sua erudição, continua se construindo todos os dias. Só que, cada vez mais, é sábio na seleção do material humano e da substância ética que utiliza para se formar. Cada vez mais, torna-se essa bela composição de ser humano que ele é, a mais bela de todas que conheci.
São Paulo, julho de 2009
David José Lessa Mattos é professor aposentado do Instituto de Artes da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Na infância e adolescência, em São Paulo, atuou como ator na TV Tupi e, na década de 1960, no Teatro de Arena. É mestre em sociologia da cultura pela Universidade de Paris Nanterre e doutor em história pela Universidade de São Paulo (USP), onde formou-se em ciências sociais.