Quadrinhistas negros no Brasil: resistência e memória pelo multiplicar de histórias
30/01/2021 - 09:00
por Leonardo Rodrigues
Há anos que o mercado de quadrinhos no Brasil já não é sinônimo apenas de títulos estrangeiros, publicados pelas editoras nacionais, ou da Turma da Mônica. Com o surgimento de novas ferramentas para autopublicação, os quadrinhistas independentes – aqueles que não têm vínculo fixo com uma editora – possuem mais opções para divulgar e distribuir o próprio trabalho. Plataformas de financiamento coletivo, eventos de quadrinhos e de publicações independentes, programas de incentivo à cultura e o uso de redes sociais são algumas das dinâmicas que têm fortalecido as possibilidades do quadrinho brasileiro.
Neste 30 de janeiro, quando é comemorado o Dia do Quadrinho Nacional, vamos refletir sobre a seguinte questão: qual é o espaço que os artistas negros ocupam em frente à produção de quadrinhos no Brasil?
O sujeito negro foi comumente retratado por pintores brancos, como um ser dependente e objetificado, existindo somente como submisso e violentado. Ser negro passa a constituir um imaginário resumido unicamente como condição de dor e sofrimento. Imaginário este difundido por meio da mídia e da própria historiografia. Mas, para além dessa condição, os negros são vozes ativas e ouvidas por intermédio das artes.
Para além dos estereótipos
Na superação de estereótipos, sobre como ou o que um artista negro deveria produzir em termos artísticos, no universo dos quadrinhos estes artistas apresentam variados temas, traços e pontos de vista tão ricos e complexos quanto suas próprias existências.
Um dos pioneiros e mais importantes nomes entre os quadrinhistas negros no Brasil é Maurício Pestana. Quadrinhista, ilustrador, jornalista e ex-secretário de Promoção da Igualdade Racial da Cidade de São Paulo (2013-2016), na década de 1980 Pestana já usava suas charges e tiras como ferramentas de crítica social contra as violências sofridas pelas populações negras e pobres do país. Também produziu quadrinhos sobre acontecimentos importantes da história negra brasileira, como os títulos Revolução Constitucionalista de 1932 em Quadrinhos (2009) e A Revolta da Chibata (2010).
Na cena contemporânea de quadrinhistas negros, trago alguns nomes: Marília Marz (SP) trata da construção da identidade e do resgate da ancestralidade; PJ Kaiowá (RJ) produz histórias diversas, inclusive de terror, e já participou de projetos de quadrinhos para diversos países; Johnatan Marques (SP) escreve histórias que mesclam contos urbanos com fantasia e traz protagonismo LGBTQI+; Bennê Oliveira (PE) reflete sobre cotidiano, política e saúde mental em suas tirinhas; Alessandro Flores (RS) desenha um herói, cujos poderes despertam após os pais serem assassinados por supremacistas brancos; Jefferson Costa (SP) e Rafael Calça (SP) falam sobre a complexidade e a importância do círculo familiar; Marcelo D’Salete (SP) narra histórias do ponto de vista de pessoas marginalizadas, e não dos colonizadores.
Ana Cardoso (BH) fala sobre as relações entre humanos e animais de estimação; Douglas Lopes (SP) ajuda a contar a história da cena de rap e hip-hop em São Paulo na década de 1990; Daiandreson Victor (PE) mescla inspirações dos mangás japoneses e outras referências para refletir, com humor e acidez, sobre o cotidiano e a conjuntura nacional; Junião (SP) produz tiras que dialogam com o contexto social e político vigente; Estevão Ribeiro (ES) dá voz para a garota Rê Tinta, que reflete sobre identidade e autoestima; Robson Moura (SP) questiona os discursos racistas e a herança escravocrata no Brasil.
Além de Flávia Borges, Dika Araújo, Janaína Esmeraldo, João Miranda, Diox (Diocir Júnior), Triscila Oliveira, Paulo Bruno, Alex Mir, Yorhán Araújo, Rogi Silva e Anderson Awvas. Esses são apenas alguns dos muitos artistas pretos que utilizam os quadrinhos como ferramenta para dividir ideias com o mundo. Se alguém ainda acredita que um artista negro falará unicamente sobre racismo, recomendo que leia mais quadrinhos.
Resistência e memória
Existem dois elementos presentes em muitos trabalhos desses autores: resistência e memória.
Também observada em outras manifestações de artes negras, como na música, na dança e no teatro, a ideia de resistência vai além da noção de sobreviver a algo, ela dá um novo sentido à própria existência e ao coletivo – é o processo de entender-se como sujeito negro no Brasil e construir seu orgulho, utilizando a memória como alicerce, como instrumento para perpetuar as tradições e histórias; ter o passado como um guia de como o futuro pode ou não ser, permitindo assim a construção de novas perspectivas. Resistência e memória caminham lado a lado na história da população negra no Brasil e também podem ser observadas em alguns quadrinhos de tais artistas, elaborados de várias formas.
A busca pela reconstrução das próprias origens, daqueles que vieram antes, da ancestralidade, é destrinchada pela paulistana Marília Marz em seu quadrinho Indivisível, no qual mescla suas investigações pessoais com a história do bairro da Liberdade, no centro da cidade de São Paulo – região famosa como reduto oriental, mas que possui grande importância na história dos negros no Brasil. Com Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, Jefferson Costa entrelaça histórias de sua família ao longo do século XX, família predominantemente negra no interior da Bahia. O texto é oralizado, e o artista tenta reproduzir, com fidelidade, o modo como a língua era falada, construindo um mosaico de vivências de uma realidade comum à grande parte da população brasileira.
Para a pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira, cada vez mais trabalhos artísticos, produzidos por artistas negros têm assumido um caráter autorreferencial e biográfico, como pode ser visto na produção de arte afro-brasileira. No artigo Memória da Pele: o Devir da Arte Contemporânea Afro-Brasileira. Arte e Cultura da América Latina (2012), a autora escreve: “A memória, o corpo e, em alguns casos, a história e a localidade são impressas nos objetos estáticos como forma de especificidade”.
A construção de um imaginário positivo, em torno da negritude, é destacada em grande parte da produção de quadrinhistas negros contemporâneos no Brasil. Ainda que abordem o racismo, os artistas criam um discurso em que desvinculam do negro a culpa pela violência que sofre, destacando que tais agressões não definem sua identidade. Isso é observado em Jeremias: Pele e Jeremias: Alma, de Rafael Calça e Jefferson Costa, e também nas tiras da personagem Dona Isaura, do artista Junião, nas quais a protagonista vive situações cotidianas, assume uma postura de enfrentamento ao racismo e a outras opressões, e sempre demonstra orgulho de ser uma mulher negra – e esse orgulho é passado aos netos.
Manifestações artísticas e culturais negras foram e são sistematicamente reprimidas no Brasil. Desde o candomblé e a umbanda, passando pelo samba e pelo rap, até chegarmos ao funk. Nas artes plásticas, somente no Modernismo, algumas das manifestações negras foram vistas com algum respeito – mas não necessariamente eram os negros que as produziam. Ao trazer narrativas do ponto de vista de sujeitos negros escravizados em Cumbe e Angola Janga, o artista vencedor do Prêmio Eisner Marcelo D’Salete busca reconstruir a humanidade que lhes foi tomada no processo de dominação, permitindo aos leitores serem conduzidos por suas perspectivas ao longo dos quadrinhos.
Protagonistas de suas próprias narrativas
O protagonismo de quadrinhistas negros contribui para além do campo das histórias em quadrinhos, fortalecendo uma disputa de discursos e narrativas na sociedade brasileira. Os negros não são mais temas, e sim vozes potentes que se fazem ouvidas. E, a partir disso, reverberam mais e mais por meio das artes, como um prisma.
O processo de utilizar as próprias experiências, como indivíduos negros numa sociedade como a nossa, confere a essas produções um caráter político. Por meio de suas obras, esses artistas também se recolocam no mundo como vozes ativas e protagonistas de suas narrativas. Narrativas estas existentes nos quadrinhos, mas também pessoais. São dinâmicas que permitem a construção de novas práticas de representação e reconhecimento na esfera das artes criadas por artistas negros, e não se limitam aos quadrinhos. Exemplo recente é o documentário AmarElo – É Tudo pra Ontem, de Emicida, no qual o artista costura sua história pessoal com a das artes negras no Brasil, reverencia àqueles que vieram antes dele e celebra quem segue junto.
Alguns desses quadrinhos chegaram também ao contexto escolar. Em 2018, os títulos Cumbe e Angola Janga, de Marcelo D’Salete, foram aprovados para integrar o Plano Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário) e ficaram disponíveis em bibliotecas de escolas públicas do Brasil. Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa, teve grande repercussão entre crianças, tendo estimulado em diversas escolas atividades relacionadas ao quadrinho – os próprios autores foram convidados para assistir a encenações da história. Se, por muito tempo, as imagens de pessoas negras, expostas em materiais didáticos, refletiam somente dor e submissão, talvez agora a imagem comece a mudar aos poucos.
Também é preciso celebrar cada jovem preto que se sente menos inibido ao pegar um lápis e fazer sua voz ser ouvida, em (re)criar uma realidade com tinta e papel, pixel e vetor, ou com quaisquer outras ferramentas que possua. Celebrar cada jovem preto que encontra mais referenciais positivos e descobre possibilidades e potencialidades para muito além daquelas que lhe foram impostas. Que sejam construídas e multiplicadas experiências para que mais e mais negras e negros possam tornar-se protagonistas de suas próprias histórias – inclusive nos quadrinhos.
Leonardo Rodrigues é ilustrador, radialista e pesquisador de quadrinhos, formado em design gráfico. Autor da pesquisa Protagonismo nos quadrinhos do Brasil: Quadrinhistas negros (re)desenhando a história.