por Leonardo Rodrigues

Tira de Rê Tinta de Estevão Ribeiro. Imagem colorida que mostra uma tira dividida em seis quadros, protagonizado por uma menina negra.
Tira de Rê Tinta de Estevão Ribeiro (imagem: Estevão RIbeiro)

Há anos que o mercado de quadrinhos no Brasil já não é sinônimo apenas de títulos estrangeiros, publicados pelas editoras nacionais, ou da Turma da Mônica. Com o surgimento de novas ferramentas para autopublicação, os quadrinhistas independentes – aqueles que não têm vínculo fixo com uma editora – possuem mais opções para divulgar e distribuir o próprio trabalho. Plataformas de financiamento coletivo, eventos de quadrinhos e de publicações independentes, programas de incentivo à cultura e o uso de redes sociais são algumas das dinâmicas que têm fortalecido as possibilidades do quadrinho brasileiro.

Neste 30 de janeiro, quando é comemorado o Dia do Quadrinho Nacional, vamos refletir sobre a seguinte questão: qual é o espaço que os artistas negros ocupam em frente à produção de quadrinhos no Brasil?

O sujeito negro foi comumente retratado por pintores brancos, como um ser dependente e objetificado, existindo somente como submisso e violentado. Ser negro passa a constituir um imaginário resumido unicamente como condição de dor e sofrimento. Imaginário este difundido por meio da mídia e da própria historiografia. Mas, para além dessa condição, os negros são vozes ativas e ouvidas por intermédio das artes.

Para além dos estereótipos

Na superação de estereótipos, sobre como ou o que um artista negro deveria produzir em termos artísticos, no universo dos quadrinhos estes artistas apresentam variados temas, traços e pontos de vista tão ricos e complexos quanto suas próprias existências.

Imagem da tira de Afroboy, do quadrinhista Daiandreson Victor. A tira é dividida em quatro quadros, coloridos, que mostra o diálogo de duas pessoas negras.
Tira de Afroboy, do quadrinhista Daiandreson Victor (imagem: Daiandreson Victor)

Um dos pioneiros e mais importantes nomes entre os quadrinhistas negros no Brasil é Maurício Pestana. Quadrinhista, ilustrador, jornalista e ex-secretário de Promoção da Igualdade Racial da Cidade de São Paulo (2013-2016), na década de 1980 Pestana já usava suas charges e tiras como ferramentas de crítica social contra as violências sofridas pelas populações negras e pobres do país. Também produziu quadrinhos sobre acontecimentos importantes da história negra brasileira, como os títulos Revolução Constitucionalista de 1932 em Quadrinhos (2009) e A Revolta da Chibata (2010).

Na cena contemporânea de quadrinhistas negros, trago alguns nomes: Marília Marz (SP) trata da construção da identidade e do resgate da ancestralidade; PJ Kaiowá (RJ) produz histórias diversas, inclusive de terror, e já participou de projetos de quadrinhos para diversos países; Johnatan Marques (SP) escreve histórias que mesclam contos urbanos com fantasia e traz protagonismo LGBTQI+; Bennê Oliveira (PE) reflete sobre cotidiano, política e saúde mental em suas tirinhas; Alessandro Flores (RS) desenha um herói, cujos poderes despertam após os pais serem assassinados por supremacistas brancos; Jefferson Costa (SP) e Rafael Calça (SP) falam sobre a complexidade e a importância do círculo familiar; Marcelo D’Salete (SP) narra histórias do ponto de vista de pessoas marginalizadas, e não dos colonizadores.

Imagem colorida de Filhos da África, do artista Bennê Oliveira, dividida em quatro quadros que mostram personagens em diferentes situações.
Filhos da África, da artista Bennê Oliveira (imagem: divulgação/Bennê Oliveira)

Ana Cardoso (BH) fala sobre as relações entre humanos e animais de estimação; Douglas Lopes (SP) ajuda a contar a história da cena de rap e hip-hop em São Paulo na década de 1990; Daiandreson Victor (PE) mescla inspirações dos mangás japoneses e outras referências para refletir, com humor e acidez, sobre o cotidiano e a conjuntura nacional; Junião (SP) produz tiras que dialogam  com o contexto social e político vigente; Estevão Ribeiro (ES) dá voz para a garota Rê Tinta, que reflete sobre identidade e autoestima; Robson Moura (SP) questiona os discursos racistas e a herança escravocrata no Brasil.

Além de Flávia Borges, Dika Araújo, Janaína Esmeraldo, João Miranda, Diox (Diocir Júnior), Triscila Oliveira, Paulo Bruno, Alex Mir, Yorhán Araújo, Rogi Silva Anderson Awvas. Esses são apenas alguns dos muitos artistas pretos que utilizam os quadrinhos como ferramenta para dividir ideias com o mundo. Se alguém ainda acredita que um artista negro falará unicamente sobre racismo, recomendo que leia mais quadrinhos.

Capa de Quando Você Foi Embora, quadrinho de Ana Cardoso. Imagem mostra um cachorro no colo de uma menina. O título do quadrinho está escrito na cor rosa, no topo da imagem.
Quando Você Foi Embora, quadrinho de Ana Cardoso (imagem: divulgação/Ana Cardoso/Balão Editorial)

Resistência e memória

Existem dois elementos presentes em muitos trabalhos desses autores: resistência e memória.

Também observada em outras manifestações de artes negras, como na música, na dança e no teatro, a ideia de resistência vai além da noção de sobreviver a algo, ela dá um novo sentido à própria existência e ao coletivo – é o processo de entender-se como sujeito negro no Brasil e construir seu orgulho, utilizando a memória como alicerce, como instrumento para perpetuar as tradições e histórias; ter o passado como um guia de como o futuro pode ou não ser, permitindo assim a construção de novas perspectivas. Resistência e memória caminham lado a lado na história da população negra no Brasil e também podem ser observadas em alguns quadrinhos de tais artistas, elaborados de várias formas.

A busca pela reconstrução das próprias origens, daqueles que vieram antes, da ancestralidade, é destrinchada pela paulistana Marília Marz em seu quadrinho Indivisível, no qual mescla suas investigações pessoais com a história do bairro da Liberdade, no centro da cidade de São Paulo – região famosa como reduto oriental, mas que possui grande importância na história dos negros no Brasil. Com Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, Jefferson Costa entrelaça histórias de sua família ao longo do século XX, família predominantemente negra no interior da Bahia. O texto é oralizado, e o artista tenta reproduzir, com fidelidade, o modo como a língua era falada, construindo um mosaico de vivências de uma realidade comum à grande parte da população brasileira.

Imagem do quadrinho Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, de Jefferson Costa. Imagem colorida, divida em dois quadros grandes, que mostra uma família negra reunida em volta de uma mesa.
Roseira, Medalha, Engenho e Outras Histórias, quadrinho de Jefferson Costa (imagem: divulgação/Jefferson Costa/Pipoca & Nanquim)

Para a pesquisadora Alecsandra Matias de Oliveira, cada vez mais trabalhos artísticos, produzidos por artistas negros têm assumido um caráter autorreferencial e biográfico, como pode ser visto na produção de arte afro-brasileira. No artigo Memória da Pele: o Devir da Arte Contemporânea Afro-Brasileira. Arte e Cultura da América Latina (2012), a autora escreve: “A memória, o corpo e, em alguns casos, a história e a localidade são impressas nos objetos estáticos como forma de especificidade”.

A construção de um imaginário positivo, em torno da negritude, é destacada em grande parte da produção de quadrinhistas negros contemporâneos no Brasil. Ainda que abordem o racismo, os artistas criam um discurso em que desvinculam do negro a culpa pela violência que sofre, destacando que tais agressões não definem sua identidade. Isso é observado em Jeremias: Pele e Jeremias: Alma, de Rafael Calça e Jefferson Costa, e também nas tiras da personagem Dona Isaura, do artista Junião, nas quais a protagonista vive situações cotidianas, assume uma postura de enfrentamento ao racismo e a outras opressões, e sempre demonstra orgulho de ser uma mulher negra – e esse orgulho é passado aos netos.

Manifestações artísticas e culturais negras foram e são sistematicamente reprimidas no Brasil. Desde o candomblé e a umbanda, passando pelo samba e pelo rap, até chegarmos ao funk. Nas artes plásticas, somente no Modernismo, algumas das manifestações negras foram vistas com algum respeito – mas não necessariamente eram os negros que as produziam. Ao trazer narrativas do ponto de vista de sujeitos negros escravizados em Cumbe e Angola Janga, o artista vencedor do Prêmio Eisner Marcelo D’Salete busca reconstruir a humanidade que lhes foi tomada no processo de dominação, permitindo aos leitores serem conduzidos por suas perspectivas ao longo dos quadrinhos.

Imagem da página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete, dividida em vários quadros. Arte em preto e branco.
Página de Angola Janga, de Marcelo D'Salete (imagem: divulgação/Marcelo D'Salete)

Protagonistas de suas próprias narrativas

O protagonismo de quadrinhistas negros contribui para além do campo das histórias em quadrinhos, fortalecendo uma disputa de discursos e narrativas na sociedade brasileira. Os negros não são mais temas, e sim vozes potentes que se fazem ouvidas. E, a partir disso, reverberam mais e mais por meio das artes, como um prisma.

O processo de utilizar as próprias experiências, como indivíduos negros numa sociedade como a nossa, confere a essas produções um caráter político. Por meio de suas obras, esses artistas também se recolocam no mundo como vozes ativas e protagonistas de suas narrativas. Narrativas estas existentes nos quadrinhos, mas também pessoais. São dinâmicas que permitem a construção de novas práticas de representação e reconhecimento na esfera das artes criadas por artistas negros, e não se limitam aos quadrinhos. Exemplo recente é o documentário AmarElo – É Tudo pra Ontem, de Emicida, no qual o artista costura sua história pessoal com a das artes negras no Brasil, reverencia àqueles que vieram antes dele e celebra quem segue junto.

Imagem de Indivisível, quadrinho de Marília Marz. Imagem preto e branco, dividida em vários quadros.
Trecho de Indivisível, de Marília Marz (imagem: Marília Marz)

Alguns desses quadrinhos chegaram também ao contexto escolar. Em 2018, os títulos Cumbe e Angola Janga, de Marcelo D’Salete, foram aprovados para integrar o Plano Nacional do Livro Didático Literário (PNLD Literário) e ficaram disponíveis em bibliotecas de escolas públicas do Brasil. Jeremias: Pele, de Rafael Calça e Jefferson Costa, teve grande repercussão entre crianças, tendo estimulado em diversas escolas atividades relacionadas ao quadrinho – os próprios autores foram convidados para assistir a encenações da história. Se, por muito tempo, as imagens de pessoas negras, expostas em materiais didáticos, refletiam somente dor e submissão, talvez agora a imagem comece a mudar aos poucos.

Também é preciso celebrar cada jovem preto que se sente menos inibido ao pegar um lápis e fazer sua voz ser ouvida, em (re)criar uma realidade com tinta e papel, pixel e vetor, ou com quaisquer outras ferramentas que possua. Celebrar cada jovem preto que encontra mais referenciais positivos e descobre possibilidades e potencialidades para muito além daquelas que lhe foram impostas. Que sejam construídas e multiplicadas experiências para que mais e mais negras e negros possam tornar-se protagonistas de suas próprias histórias – inclusive nos quadrinhos.

Imagem da tira de Dona Isaura. Imagem colorida dividida em dois quadros que mostra o diálogo de duas pessoas negras, um menino e uma mulher idosa.
Tira de Dona Isaura, por Junião (imagem: divulgação/Junião)

Leonardo Rodrigues é ilustrador, radialista e pesquisador de quadrinhos, formado em design gráfico. Autor da pesquisa Protagonismo nos quadrinhos do Brasil: Quadrinhistas negros (re)desenhando a história.

Veja também
A imagem sobrepõe duas imagens de mulheres negras, uma delas, no centro, é Marcela. A outra tem o rosto caído par ao lado, saindo um pouco da foto, no lado direito.

Fotografia preta

No Dia Nacional da Consciência Negra, fotógrafos negros e brasileiros falam da imagem como retorno, aprendizado, ressignificação e identidade