Artistas negros | Autorretrato de um Brasil opressivo: o tigre de Sidney Amaral
14/05/2021 - 16:28
Artistas negros destaca produções de artistas presentes na coleção de obras de arte do Itaú Cultural (IC). A cada edição da série, uma conversa sobre trabalhos com temáticas e estilos variados, buscando ampliar horizontes. Siga aqui pelo site ou no nosso perfil no Instagram.
Sidney Amaral
O trono do rei ou a história do sanitarismo no Brasil (estudo), 2014
aquarela e lápis sobre papel
38 x 28 cm
Acervo Banco Itaú
Imagem: Iara Venanzi/Itaú Cultural
por Duanne Ribeiro
Eram chamados de tigres – ou tigrados, tigreiros. Isso porque, segundo uma das versões, a pele negra, afetada pela ureia e pela amônia derramadas de barris repletos da urina e das fezes dos cidadãos do Brasil colonial, era descolorida, ganhando manchas similares às listras do maior dos felinos. Esses homens e mulheres escravizados – para seu proprietário ou sob aluguel – iam de casa em casa, retiravam os dejetos acumulados, levavam-nos pelas ruas, enojando a multidão, e os despejavam longe da fonte, em terreno mais ou menos isolado, no rio ou no mar.
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Outras narrativas preferem dizer que o nome tigre vem da coragem de cumprir essa função ou do fato de que era preciso evitá-los; também se nota que o mesmo nome era dado ao recipiente que carregavam – um barril que emulava a forma de um vaso grego antigo. Seja como for, essa prática persistiu no país até as vésperas da abolição da escravatura – no Rio de Janeiro acabou na década de 1860, mas no Recife só em 1882. Em meio a acusações de ineficiência, questões de regulamentação e conflitos entre os moradores, assim se lidava com os detritos urbanos.
“À tarde”, narrou Jacobus Boelen, um viajante europeu na capital do Império, “após o pôr-do-sol e até alta noite, veem-se por todas as ruas negros saírem das casas, carregando à cabeça barris contendo matérias fecais que vão despejar na praia”; Boelen aconselha “evitar absolutamente o encontro àquela hora com tais carregadores”. Essa imagem foi também capturada pelos artistas visuais da época: Jean-Baptiste Debret (1768-1848), em “Máscara de ferro que se faz os negros usarem”, parece tê-los representado; e Henrique Fleiuss (1823-1882) o fez em “Tigreiros”.
Essa história e essa iconografia sofrem uma releitura na pintura que destacamos acima: O trono do rei ou a história do sanitarismo no Brasil, segundo seu autor, Sidney Amaral, que reforça, aliás, o entendimento da pele esbranquiçada pelo detrito. Sidney retrata a si, homem negro, de bermuda preta, sem camisa, segurando um vaso sanitário na cabeça. Se não sabemos a história por trás, podemos ser atingidos pelo absurdo: o que é que ele está fazendo? Pensar nesse nível pode ser produtivo; em outros trabalhos, o artista buscou, com a recriação de objetos cotidianos, gerar estranheza. Mas é ao lembrar do capítulo da escravidão que O trono... se efetiva.
Nesse sentido, o primeiro elemento a destacar dessa obra é a forma usada, o autorretrato. Sidney, comenta em uma palestra o curador Claudinei Roberto da Silva, “apresenta a sua própria figura pretendendo discutir uma situação que não é exatamente particular – é particular, também, mas transcende o âmbito doméstico”. Essa análise é partilhada pelo também curador Tadeu Chiarelli, o qual, após constatar que a produção do artista forma “o conjunto mais alentado de autorretratos produzidos por um artista negro até o presente, no Brasil”, afirma que, por meio dessas obras,
é possível se aproximar de determinadas e complexas contradições da sociedade brasileira, marcada pela instituição da escravidão que, abolida em 1888, ainda marca o cotidiano de exclusão de grande parte da população negra do país. Os autorretratos de Sidney Amaral, ao mesmo tempo que podem ser vistos como documentos/monumentos desta situação, também devem ser inquiridos como pistas para a continuidade dos esforços para reverter esse status-quo.
Sidney, então, artista tigre. Devemos evitar absolutamente encontrá-lo? Ao se apresentar em uma situação que remete a dos carregadores, ele sugere uma analogia forte: todo o peso do acontecimento histórico – o desprezo e a degradação ligados a essa condição, o vínculo da figura do negro à pestilência, ao perigo, à sujeira – é invocado pelos seus desdobramentos no presente. Portanto, assim como não se trata mais do barril de madeira (que apodrecia fácil e estourava no caminho) ou de barro, precisamos visualizar em que medida são ainda os negros submetidos ao desprezo e à degradação; e como sua imagem é ainda construída segundo vieses negativos.
Noutros autorretratos de Sidney, críticas com a mesma potência são desdobradas. Por exemplo, em Castigo ele se senta em um banquinho; no chão, há um chicote de autoflagelo e, como se fossem as feridas do instrumento, se veem em suas costas vários logotipos de empresas. Já Banzo ou anatomia de um homem só o mostra com os órgãos internos patentes no peito aberto, descreve ele, “como se eu fosse um corpo dissecado”, para falar de amor e melancolia; Claudiney aponta como isso “desmistifica um estereótipo racista” que inventa o homem negro como “desprovido de sensibilidade”, “figura bruta, hipersexualizada”. São obras que desestabilizam ideologias.
E, talvez, por outro lado, que demandam posicionamentos nossos. Como estabelece Claudinei, “a obra nos impõe uma pergunta. E a gente vai prospectar, buscar dentro de nós elementos para responder a essa pergunta”. Sidney, dessa forma, nos interroga. Quais são as suas respostas?
Sidney Amaral (1973-2017) foi artista visual e professor da rede pública de ensino. Formado na Fundação Armando Alvares Penteado (Faap), em educação artística, estudou também no Liceu de Artes e Ofícios de São Paulo, na Escola Panamericana de Artes e na Ecos Escola de Fotografia. Foi aluno de Ana Maria Tavares no Museu Brasileiro de Escultura (Mube). Leia sobre os temas deste texto no artigo “Memória e escravatura nas poéticas de Sidney Amaral”, de Célia Maria Antonacci. Saiba mais na Enciclopédia Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileira.