por Gilberto F. Martins

Não é sem motivo que, tendo vivido apenas 24 anos, o escritor baiano Antônio Frederico de Castro Alves figura como protagonista de ao menos duas importantes peças do teatro nacional e dois filmes (um deles, com produção luso-brasileira). Além de sua vida e obra terem atraído a atenção de diferentes biógrafos e críticos, serviram de tema para sambas-enredo de escolas do Carnaval carioca e como matéria de um romance de sucesso, de livros paradidáticos de ficção juvenil, histórias em quadrinhos e diversos folhetos de cordel[i]. Afinal, para além das singulares características temáticas e estilísticas de sua produção literária, ele se envolveu em contendas políticas em prol da abolição e da república, fez campanha nacionalista durante a guerra contra o Paraguai, viveu paixões arrebatadoras com mulheres anônimas ou famosas, destacou-se como orador carismático, angariou reconhecimento público e documentado de personalidades ilustres – como José de Alencar e Machado de Assis –, padeceu de graves problemas de saúde no final da vida – sobretudo depois da amputação de um pé, consequência de acidente auto infligido com arma de fogo –, até morrer em casa, tuberculoso, na tarde do dia 6 de julho de 1871, na Bahia.

Imagem do poeta e escritor Castro Alves. A imagem é antiga, está em preto e branco, e mostra um homem branco de rosto magro com bigode, cabelo penteado para trás e expressão séria no rosto.
Castro Alves (imagem: Biblioteca Municipal Castro Alves)

Escrita e encenada em 1971 para celebrar o centenário da morte do poeta, Castro Alves pede passagem, de Gianfrancesco Guarnieri, estreou em Salvador e depois em São Paulo, tendo no elenco Zanoni Ferrite (no papel principal), Antônio Fagundes (como José Antônio, irmão do poeta) e Martha Overbeck (vivendo a atriz portuguesa Eugênia Câmara), entre outros. Ambientada em um estúdio de TV, durante a gravação de um programa de auditório em homenagem ao autor, a peça adota tratamento não-realista e anti-ilusionista do tempo histórico ao trazer anacronicamente à cena Castro Alves, em pessoa, para participar do quadro “Esta é a sua vida”. Dentre os entrevistadores, um cantor jovem, um teleator e um jornalista. Este, ao questionar se o convidado se reconhecia mais como escritor lírico ou engajado, ouve a resposta: “Considero-me um poeta. Integrado no meu tempo. Cantei a natureza, a mulher, o amor e vivi a causa do meu século: entreguei-me inteiro à causa dos escravos!”. Momentos depois, em réplica à inquirição do ator de televisão, completa o autorretrato, sintetizando em primeira pessoa o perfil estético-ideológico que dele o dramaturgo paulista pretendeu fixar:

“Batalhei pela abolição total da escravidão, quando os setores mais avançados do pensamento liberal se contentavam com a liberdade do ventre. Defendi os direitos do homem, a liberdade de palavra, de reunião e de imprensa. Condenei a guerra e a tirania; abominei o terror e a violência como armas políticas, fui o cantor dos heróis populares brasileiros, advoguei o voto feminino... Considerava a nossa América a terra da liberdade, onde os vícios da sociedade europeia não deveriam medrar. Fui um homem do povo, das causas populares, vinculado à sua história e aos importantes movimentos políticos do País”.

Rebelde e desafiador, seu irmão – que se suicidou em 1864, tomando veneno, aos dezenove anos – tem na trama a função de dialetizar o andamento encomiástico do roteiro, a fim de que o programa (e a peça) não se aproxime(m) da mitificação e do culto glorificador: “Me recuso a continuar com esta farsa! (...) Não sirvo de pasto pra vosso sensacionalismo barato! (...) vamos lá, irmão, conta a verdade. Sai da fábula... Você é grande nos teus termos grandes! Não nos deles... (...) Já te devoraram. Já fizeram de tua imagem coisa morta e acabada! Lembra a velha chama!... Desperta e canta!...”. E assim, ao mesmo tempo, José Antônio envenena severamente o discurso patrocinado dos veículos de comunicação de massa e problematiza criticamente sua programação alienante, voltada tão-somente para o entretenimento.

A matéria histórica representada permite a Guarnieri mobilizar expedientes do teatro épico, com os quais atua para interromper a linearidade cronológica do drama burguês e impedir um ponto de vista único, oficial e dominante: alternam-se cenas que mostram ações no presente e outras que narram o passado; os diálogos combinam falas em verso e prosa; inserem-se citações de outros textos e autores; canções são entoadas coletivamente (uma delas nascida de parceria com Toquinho); um coro comenta e ilustra passagens; ocorrem momentos de evidente meta-teatralidade, por exemplo quando a rubrica solicita aos atores que apareçam em cena já sem encarnar os personagens. Ao fim, Castro Alves subverte o esquema apelativo do programa e passa a ser o narrador de suas próprias experiências, conclamando à revolução os demais artistas (“poetas em outras formas”): “Abaixo o bom comportamento! (...) Mantenedores da ordem! Mantenham-na! Façam explodir as senzalas! Viva a República! Abaixo a academia e seus fósseis togados! Viva Victor Hugo!”; “Não calqueis o povo rei!”; “Levantai um templo novo / Porém que não esmague o povo, / Mas lhe seja o pedestal”.

Liberdade só posso esperar

Trinta anos antes, na vigência do Estado Novo, Jorge Amado publicara o romance-louvação ABC de Castro Alves, livro logo apreendido e tornado proibido pelo regime de Getúlio Vargas. Em 1944, atendendo a uma encomenda da atriz Bibi Ferreira, escrevia a peça teatral O amor de Castro Alves, à época não levada à cena. Depois, no centésimo aniversário de nascimento de seu conterrâneo e colega de ofício, em 1947, o texto foi publicado em livro, com o título definitivo O amor do soldado. Apresentando dispositivos dramatúrgicos e proposições cênicas pouco comuns no teatro brasileiro da época, a obra começa com um prólogo que nega de pronto a convenção da quarta parede, já que o personagem-autor irrompe o espaço espetacular atravessando a plateia para anunciar que sua companhia contará a vida de Castro Alves, um autêntico “construtor de democracia”, figura essencial “nestes tempos dramáticos em que homens de todas as raças lutam pelo direito à liberdade”.

Para tanto, Jorge Amado mobiliza o recurso da peça dentro da peça e rompe as unidades de ação, tempo e espaço do drama absoluto, fazendo se cruzarem temporalidades distintas. Na cena inicial, solicita a colaboração do público para que simulem ser sujeitos de meados do século XIX, como os que circulavam em teatros e praças de Recife, Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo. Argumenta a figura no palco, antes de se abrirem as cortinas:  

“Não é fácil prender nos limites de um palco a vida de Castro Alves que se processou sempre na praça pública, à frente da multidão. Ele não agiu como a maioria dos poetas que se tranca nos gabinetes de trabalho à espera da inspiração. Não foi apenas um poeta da liberdade, foi também um militante da liberdade. Seu lugar era à frente do povo. Sua arte, ele a colocou a serviço da Pátria e da humanidade”.

Como uma espécie de mestre de cerimônia distanciado, o personagem-autor conta em outros momentos alguns episódios da biografia de Castro Alves, com falas que antecipam, relatam e alinhavam os fatos encenados em quadros relativamente autônomos. Alternadamente, seu grupo está no palco como se fosse a companhia de Furtado Coelho, a representar a peça Os Jesuítas, de José de Alencar. Como deixa entrever o título da obra do prosador baiano, ganha destaque no enredo a conturbada relação amorosa do poeta com a atriz portuguesa Eugênia Câmara. Várias personagens históricas sobem à cena, como a atriz Adelaide Amaral e os escritores Rui Barbosa, Tobias Barreto e Fagundes Varela. Atores infiltrados na plateia simulam interromper a ação para aproximar os fatos representados daqueles vivenciados na atualidade, a saber, na primeira metade do século XX, durante e logo após a participação dos soldados brasileiros na II Guerra Mundial.

Os dilemas entre vida pública e privada, compromisso coletivo e liberdade individual, afetividade e profissão fazem aflorar contradições dos valores, discursos e comportamentos dos protagonistas; e com eles, vêm à tona os impasses da Nova República, os quais é preciso superar para não reincidir nos erros estruturais herdados da “comédia da democracia do Império brasileiro”.

Jovem, bonito, talentoso e combativo, o celebrado autor dos poemas coligidos nos volumes Espumas flutuantes (1870), Os Escravos e A cachoeira de Paulo Afonso (estes dois de publicação póstuma) também traduziu textos literários de seus coetâneos, como Heine e Hugo; produziu artigos de opinião e crítica para jornais e dedicou-se à dramaturgia, tendo visto encenada e bem recebida sua peça sobre os poetas inconfidentes mineiros, Gonzaga ou A revolução de Minas (1866-67), na qual defende princípios republicanos e abolicionistas.

Decorridos 150 anos da morte precoce de Castro Alves, vale revisitar a atualidade e o valor documental e estético de muitas de suas criações, onde no mínimo é possível reconhecer sua participação empenhada em causas históricas progressistas e a potência inflamada de seus textos militantes, os quais declamava para contestar a trágica condição dos oprimidos na sociedade brasileira. Para isso, é mais do que justo lhe dedicar alguns de seus versos mais conhecidos:

“Oh! Bendito o que semeia
Livros... livros à mão cheia...
E manda o povo pensar!
O livro caindo n’alma
É germe – que faz a palma,
É chuva – que faz o mar.
(...)
Bravo! a quem salva o futuro
Fecundando a multidão!...”

      

Referências

ALVES, Castro. Obra completa. Org. de Eugênio Gomes. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1960.
AMADO, Jorge. O amor do soldado. Rio de Janeiro: Record, 2003.
GUARNIERI, Gianfrancesco. Castro Alves pede passagem. São Paulo: Palco + Platéia, 1971.

 

Gilberto Figueiredo Martins é graduado em Letras pela FFLCH da USP, onde também concluiu seu mestrado e doutorado em literatura brasileira, ambos com trabalhos sobre Clarice Lispector, de que resultou o livro Estátuas invisíveis – Experiências do espaço público na ficção de Clarice Lispector (Nankin/EDUSP, 2010). Desde 2006, é professor do curso de Letras da UNESP de Assis.


[i] O cineasta carioca Sílvio Tendler lançou em 1998 o filme Castro Alves – Retrato falado do poeta, com Bruno Garcia no papel principal. Quase cinquenta anos antes, o português José Leitão de Barros realizara Vendaval maravilhoso (1949), a partir de roteiro do dramaturgo brasileiro Joracy Camargo; a célebre cantora Amália Rodrigues vive a atriz Eugênia Câmara, amante do poeta, representado por Paulo Rodrigues. Salvo engano, a biografia mais recente é o perfil do escritor traçado por Alberto da Costa e Silva, livro lançado pela Companhia das Letras, em 2006; antes dele, porém, já haviam encarado a empreitada de contar sua história (com maior ou menor empenho): Múcio Teixeira, Xavier Marques, Afrânio Peixoto, Pedro Calmon, Lopes Rodrigues, Heitor Ferreira Lima e Moacyr Scliar, entre outros. A trajetória de Castro Alves foi tema do enredo (vencedor) da escola de samba Império Serrano, em 1948; do Salgueiro, em 1957; e da Vila Isabel, em 1960. Na poesia de cordel, há inúmeras homenagens, merecendo destaque as obras de Rodolfo Coelho Cavalcante, Patativa do Assaré e, surpreendentemente, do erudito e classicizante poeta Jorge de Lima.

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