por André Bernardo

Pelé e Garrincha (1933-1983) disputaram 40 jogos pela Seleção Brasileira. Juntos, nunca sofreram uma derrota sequer: foram 36 vitórias e quatro empates. O “rei do futebol” marcou 44 gols e o “anjo das pernas tortas” 11. Das vezes em que entraram em campo lado a lado, literatura e futebol também nunca fizeram feio. Deram show de bola em contos, romances e poemas. Mas em nenhum outro gênero marcaram tantos golaços quanto na crônica. E, nesse gênero, o mais habilidoso dos “craques” é o pernambucano Nelson Rodrigues (1912-1980). “Ninguém escreveu tantas crônicas, e por tanto tempo, como Nelson Rodrigues”, afirma José Carlos Marques, doutor em ciências da comunicação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor de O futebol em Nelson Rodrigues: o óbvio ululante, o Sobrenatural de Almeida e outros temas (2000). “Se o Nelson não for o nosso maior cronista de futebol, é, certamente, o mais original, o mais formidável e o mais regular entre todos os outros.” 

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Autor das antologias À sombra das chuteiras imortais – crônicas de futebol (1992) e A pátria em chuteiras – novas crônicas de futebol (1994), Nelson Rodrigues é presença mais do que garantida em toda e qualquer seleção de escritores. Em 2001, ele foi escalado como quarto zagueiro na “seleção dos sonhos” do escritor José Roberto Torero. Mas, como ninguém ganha jogo sozinho, no 4-3-3 montado pelo treinador, Nelson deu show de bola ao lado de Carlos Drummond de Andrade no gol; Manuel Bandeira, Érico Veríssimo e Padre Antônio Vieira na defesa; Gregório de Matos, Mário de Andrade e Machado de Assis no meio-campo; e Guimarães Rosa, Oswald de Andrade e Graciliano Ramos no ataque. “Bem, se tivesse que jogar no meu time, eu, obviamente, ficaria no banco”, admite, bem-humorado, o autor de Os cabeças de bagre também merecem o paraíso (2001). 

Em 2014, às vésperas da Copa do Mundo do Brasil, o então executivo da Saraiva, Daniel Louzada, também deu uma de técnico e convocou 11 craques para torcedor nenhum botar defeito. A seleção montada em Um time de primeira – grandes escritores brasileiros falam de futebol (2014) entrou em campo com João Cabral de Melo Neto no gol; Mário Filho, João do Rio, Antônio de Alcântara Machado e Rubem Fonseca na defesa; Coelho Neto, Luis Fernando Verissimo e Lima Barreto no meio-campo; e Nelson Rodrigues, Vinicius de Moraes e Mário de Andrade no ataque. “Se tivesse que dar a camisa 10 para algum jogador, daria para o Nelson. Para ele, o futebol sempre transcendeu as quatro linhas do campo”, explica Louzada, hoje à frente da Livraria Leonardo da Vinci, no Rio de Janeiro. 

Nelson Rodrigues pode ter sido o maior craque que a literatura brasileira já teve. Mas não foi o primeiro. Muito antes de ele arriscar os primeiros chutes a gol, outros escritores, como Coelho Neto (1864-1934), Olavo Bilac (1865-1918) e João do Rio (1881-1921), já trocavam passes na pequena área. Os três são do tempo em que se escrevia “team”, em vez de “time”, e “football” no lugar de “futebol”. “Nelson Rodrigues não foi nosso primeiro nome da literatura a se dedicar à crônica de futebol, mas foi o primeiro a fazer dela um ganha-pão”, afirma Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes, doutora em sociologia pela USP e autora de “Com brasileiro, não há quem possa!”: futebol e identidade nacional em José Lins do Rego, Mário Filho e Nelson Rodrigues (2004). 

Da velha guarda, o paraibano José Lins do Rego (1901-1957) é um dos mais, digamos, fervorosos. Mais do que cronista, era torcedor. Autor de clássicos da literatura nacional como Menino de engenho (1932), Riacho doce (1939) e Fogo morto (1943), nunca se preocupou em disfarçar seu fanatismo pelo Clube de Regatas do Flamengo, seu time do coração. “Há no Flamengo uma predestinação para ser, em certos momentos, uma válvula de escape para as nossas tristezas”, escreveu na edição de 5 de fevereiro de 1955 do jornal O globo. “Ele não nos enche a barriga, mas nos inunda a alma de um vigor de prodígio.” Desde 7 de março de 1945, quando estreou a coluna Esporte e Vida no Jornal dos sports, até 20 de julho de 1957, dois meses antes de sua morte, José Lins do Rego publicou 1.571 crônicas. Dessas, 111 foram reunidas em Flamengo é puro amor (2008). “José Lins do Rego talvez tenha sido, ao lado de Nelson Rodrigues, o grande nome da nossa literatura a escrever sobre futebol. No entanto, seus textos não resistiram bem ao tempo. Parecem hoje muito reféns da paixão que ele nutria pelo Flamengo”, observa José Carlos Marques. 

Em futebol, o pior cego é o que só vê a bola

No único país pentacampeão do mundo em futebol, pelo menos dois craques, o carioca Lima Barreto (1881-1922) e o alagoano Graciliano Ramos (1892-1953), desafinaram o coro dos contentes. O autor de Triste fim de Policarpo Quaresma (1911) criticava a truculência do esporte dentro e fora dos gramados – chegou a chamá-lo de “estúpido”, “violento” e “selvagem” – e repudiava a discriminação social promovida pelos clubes. O velho Graça não ficava atrás. Em artigo publicado no jornal O índio em 1921, o autor de São Bernardo (1934), Vidas secas (1938) e Memórias do cárcere (1953) escreveu que o futebol não passava de “fogo de palha”. E mais: citava a rasteira como o “esporte nacional por excelência”. 

Críticas à parte, o esporte bretão vingou no Brasil. E a crônica esportiva também. Os mineiros Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) e Paulo Mendes Campos (1922-1991) e o acreano Armando Nogueira (1927-2010) se dedicaram com afinco ao gênero. E lançaram antologias inesquecíveis, como Quando é dia de futebol (2014), O gol é necessário (2002) e A ginga e o jogo (2003), respectivamente. “Nelson Rodrigues foi responsável pela consolidação da crônica de futebol como um espaço de criação literária na página ou no caderno esportivo dos jornais”, afirma Fátima Martin Rodrigues Ferreira Antunes. “Ao escrever sobre o efêmero, como um lance polêmico no último Fla-Flu ou, então, o jogador revelação do Bangu, criou textos atemporais e que se tornaram clássicos da literatura brasileira.”

Em O anjo pornográfico – a vida de Nelson Rodrigues (1992), o jornalista, escritor e biógrafo Ruy Castro lista três curiosidades futebolísticas sobre o autor: primeiro, o pequeno Nelson era craque de bola. Não no sentido figurado da palavra, mas no literal mesmo. “Segundo os relatos de seus irmãos, era valente, veloz e bom driblador”, descreve no livro. Depois, antes de torcer pelo Fluminense Football Club, torceu pelo Andarahy Athletico Club, time do futebol carioca que nem existe mais. “Nelson e Mário Filho tornaram-se tricolores quase de ouvido, pelos relatos de Milton (o irmão mais velho) sobre a campanha do tri de 1917, 1918 e 1919”, observa. Por último, quando ia ao Maracanã, já adulto, quase não enxergava o que acontecia em campo. Via apenas vultos, sequela da tuberculose, e ouvia os gritos da torcida. Para piorar, ele se recusava a usar óculos. Certa vez, levou uma bronca da mulher, Elza, por estar torcendo contra o tricolor das Laranjeiras num jogo com o Bangu. “Bebeu, Nelson? Torcendo contra o Fluminense?”, ralhou. Depois disso, sempre que possível, pedia a algum amigo para “narrar” a partida. Em outra ocasião, ao sair do maior estádio do mundo, perguntou ao amigo Armando Nogueira: “Meu querido, o que é que nós achamos do jogo?”. 

Qualquer paralelepípedo sabe que nenhum futebol se compara ao nosso

Apesar de seu problema de visão, Nelson não dava o braço a torcer. No comecinho dos anos 1960, teimou que o juiz Airton Vieira de Moraes não marcara um pênalti do Flamengo contra o Fluminense. À noite, no programa Grande Resenha Facit, primeira mesa-redonda da TV brasileira, o apresentador Luiz Mendes (1924-2011), para evitar polêmicas, mandou rodar o VT. Depois de assistirem ao lance, todos concordaram que foi pênalti. Todos, menos Nelson. “Se o videoteipe diz que foi pênalti, pior para o videoteipe. O videoteipe é burro!”, vociferou o escritor, entre o irreverente e o raivoso.

Segundo o livro O profeta tricolor – cem anos de Fluminense (2002), antologia que reúne textos do autor sobre o time das Laranjeiras, Nelson começou a escrever sobre futebol na crônica O casamento, publicada no jornal A crítica de 11 de janeiro de 1929. Na época, tinha apenas 17 anos. A partir de 1951, porém, passou a escrever diária e semanalmente, dependendo da publicação, sobre um de seus temas favoritos: o futebol. De 1955 a 1966, escreveu no Jornal dos sports e, de 1962 a 1980, no jornal O globo. Não satisfeito, ainda colaborou, de 1955 a 1959, com a revista Manchete esportiva. Ao todo, foram 25 anos, praticamente ininterruptos, de crônica esportiva. “A crônica é um gênero híbrido entre a literatura e o jornalismo”, explica Marcelino Rodrigues da Silva, doutor em estudos literários pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor da dissertação de mestrado Mundo do futebol nas crônicas de Nelson Rodrigues (1997). “O cronista pode criar, inventar, ficcionalizar. Não por acaso, Nelson chamava os jornalistas de ‘idiotas da objetividade’. Além disso, criou personagens inesquecíveis, como o Sobrenatural de Almeida e a Grã-Fina das Narinas de Cadáveres”, acrescenta. 

A mais sórdida pelada é de uma complexidade shakespeariana

Das incontáveis crônicas que Nelson escreveu sobre futebol, uma das mais famosas é A realeza de Pelé, publicada em 8 de março de 1958 na revista Manchete esportiva, que deu a Edson Arantes do Nascimento, o camisa 10 do Santos, o título de “rei do futebol”. No dia 26 de fevereiro daquele ano, Santos e América (RJ) haviam se enfrentado pela primeira rodada do Torneio Rio-São Paulo. O clube santista venceu o time carioca por 5 a 3. Dos cinco gols do Santos, quatro foram de Pelé, então com 17 anos. “Sozinho, liquidou a partida, monopolizou o placar”, escreveu Nelson. “Pelé leva sobre os demais jogadores uma vantagem considerável – a de se sentir rei, da cabeça aos pés. Quando ele apanha a bola e dribla um adversário, é como quem escorraça um plebeu ignaro e piolhento.” 

Dos quatro gols que Pelé meteu no goleiro Pompeia, um deles chamou a atenção do cronista. Aquele em que o craque, antes de encaçapar a bola nas redes, dribla o primeiro, entorta o segundo e corta o terceiro zagueiro. “Até que chegou um momento em que não havia mais ninguém para driblar. Não existia uma defesa. Ou por outra: a defesa estava indefesa”, faz graça. Pelé, aliás, não foi o único jogador a ganhar apelido de Nelson Rodrigues. Didi (1928-2001) era chamado de “príncipe Etíope” e Amarildo de “Possesso”. “A crônica do Nelson não envelheceu porque ganhou roupagem literária: ora lírica, ora dramática", analisa Angela Sivalli Ignatti, doutora em letras pela USP e autora do artigo O futebol e a literatura em Nelson Rodrigues e Carlos Drummond de Andrade (2020). “Elevou a crônica futebolística a lugar de destaque ao conferir lirismo e dramaticidade ao gênero. Ainda trouxe a força de seus textos teatrais para dentro das quatro linhas do campo.”   

Da nova geração de cronistas, dois são apontados como “herdeiros” do estilo de Nelson Rodrigues: o gaúcho Luis Fernando Verissimo e o santista José Roberto Torero. “Seus textos são inteligentes e saborosos. Pena que não escrevam sobre futebol com maior frequência. Em geral, só o fazem em época de Copa do Mundo”, pontua Domingos Antônio D’Ângelo, coautor de Bibliofut: a literatura do futebol brasileiro (2019) em parceria com Ademir Takara, e um dos maiores colecionadores brasileiros de livros sobre futebol – seu acervo conta com mais de 1.800 títulos. “De certa forma, Veríisimo e Torero preenchem a lacuna deixada pelas mortes de Mário Filho, Armando Nogueira e João Saldanha, mas estão muito longe do Nelson.” O homem que detestava unanimidades – a ponto de dizer que “toda unanimidade é burra” – acabou se tornando uma delas. 

O escritor Nelson Rodrigues veste uma camisa, olha para o lado. Sua expressão facial carrega um leve sorriso.
Nelson Rodrigues (imagem: Divulgação)
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Na fotografia em preto e branco, Nelson Rodrigues está sentado em uma poltrona. O cronista, um homem branco, usa óculos de grau, camisa, calça e suspensório. Nas laterais dele, há um telefone e um abajur.

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