por Kil Abreu

“O riso libera o aldeão do medo do diabo, porque na festa dos tolos também o diabo aparece pobre e tolo, portanto controlável. Mas este livro poderia ensinar que se libertar do medo do diabo é sabedoria” [Umberto Eco em O nome da rosa (1980 – tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade)]

>>Também sobre o Cena agora humor, acesse os textos de Fernando Pivotto em Tudo, menos uma crítica

Há uma questão tomada, salvo engano, como algo essencial nesta edição do projeto Cena agora, promovido pelo Itaú Cultural (IC). Essencial porque parece importante para os artistas convidados, para os organizadores e, certamente, para parte da plateia que está acompanhando a exibição dos vídeos em apresentações remotas. Dedicado ao humor e à sua relação com as questões sociais, ao humor como “antídoto”, o projeto apresenta, em duas semanas, uma leva de cenas em que a comédia dá o tom do encontro com o público. A proposta está em fazer rir sem deixar de olhar o entorno – que, como sabemos, não é nada risível. Pelo contrário, é um momento gravíssimo na vida do país, em que a experiência da morte domina a sociabilidade, orienta a política, cria a cisma em um debate amplo e já extremamente polarizado. Não à toa, depois da apresentação da cena convidada para a abertura (esta transmitida ao vivo), o ator e coordenador do Núcleo de Artes Cênicas do IC, Carlos Gomes, provocou o elenco (Bete Dorgam, Dagoberto Feliz e Esio Magalhães) com estas perguntas: por que e como fazer rir agora?

De fato, são coisas nada acidentais. Para os artistas, tentar responder a isso é também tentar dar conta tanto da dimensão ética da comicidade quanto dos seus desdobramentos estéticos. Se, em geral, essa já é ou deveria ser uma preocupação para as criadoras e os criadores, neste momento em particular a orientação de pensamento reverbera imediatamente sobre a forma artística. É inescapável. E, já ali, o trio de veteranos da palhaçaria nos ofereceu a chave, de dente duplo. Como disse Shakespeare sobre Hamlet, pela boca de Polônio, “há razão na loucura”. Ou na aparente loucura. E, como disse Bete Dorgam, em uma boa síntese, através da conferencista Elisabete de Queen, “o riso é transposição poética da realidade. Para convivermos com ela neste momento”. Mas não só. Ela prosseguiu: “Para ajudar a abrir os olhos”. É isso.

E assim foi. No primeiro fim de semana, assistimos a cenas bastante curtas, já produzidas para o ambiente virtual, em que as difíceis e delicadas pontes entre o humor e a dor foram testadas por jovens artistas, uma parte vinda já de espaços próprios nas redes sociais. Entre as recorrências de temas e formas para apresentá-los, algumas chamam atenção. Primeiro, a metalinguagem. Além dessa abertura com “A arte da representação ou como ser verdadeiro mentindo e vice-versa”, que toma o universo de teorias, autores e gêneros do próprio teatro para fazer graça e crítica do real no mundo da pós-verdade, quase todos os trabalhos, em algum momento, espelham-se no próprio fazer como assunto. Por exemplo, a “fracassada atriz” (Letícia Rodrigues) mostra as diversas competências esperadas da artista de teatro à prova em um teste sádico que caricaturiza os perrengues da sobrevivência no mundo da mercadoria. E a mercadoria é o próprio sujeito.

A caricatura, lembremos, não é um falseamento; é uma ampliação intencionadamente ridícula da realidade. Na mesma linha que se dedica a fazer ironia com os meios ocupados está, ainda que a abordagem seja diferente, o “consultório virtual” de Marcos Oli, que ironiza – ou autoironiza –, a partir do tema do isolamento na pandemia, os influenciadores digitais e a psicologia de uma vida em busca de likes. Em Por favor, não ria, é a forma do documentário que conduz a breve história distópica sobre uma época em que será proibido rir. Nesse imaginado, terrível futuro do humor, em um tempo de cólera a subversão suprema será feita por sociedades secretas que gargalham com produtos da indústria cultural de um passado distante. A proposição de Isabela Mariotto e sua equipe assusta – no entanto, é pela proximidade com o presente. E, então, entendemos o segundo título da cena: A true story.

Também olhando para a frente, mas em um percurso que vai da distopia à utopia, a narrativa mais frontalmente engajada entre as apresentadas até aqui é a da atriz e cineasta pernambucana Galba Gogóia. Em Travestis no comando da nação, ela pensou o discurso de posse de uma presidenta travesti no Brasil do futuro. Com sarcasmo e posição de gênero bem definida, traz uma fala que vira pelo avesso algumas das peças-tabu do pensamento conservador. Do Estado laico à chamada ao comportamento livre, a “transrevolução” não vai admitir “meninos de azul e meninas de rosa”, não haverá acordos imorais com o centrão, as igrejas pagarão impostos e as filhas de militares perderão suas vantajosas pensões. É um bonito exercício de imaginação política. Que também pode ser entendido, dadas as circunstâncias do agora, como um gesto de legítima defesa.  

A síntese entre o país da doença e o mundo sonhado vem na videoperformance de Erika Ribeiro. Em Eu tô bem. Eu tô bem?, o pêndulo do bem-estar que se transforma em mal-estar (ou vice-versa) é apresentado de maneira dinâmica, através de personagens que debocham da crise existencial coletiva em que fomos afundados e afundadas. A sanidade salva-se mais uma vez no próprio exercício da representação. Como diz uma dessas personagens, a “especialista” Amora Kila, em diálogo com Fernando Pessoa, “fingir, hoje, tem caráter emergencial”. O teatro cura.

Thamirys Borsan | foto: Rogerio Jorge

Tratamentos quase tão diretos quanto esse em torno da crise vêm nas intervenções de Thamirys Borsan e Adalberto Neto. Na primeira, Inquérito 2022, o tema da culpa pela desgraça coletiva encontra um acusado, o próprio vírus, que divide com completa razão as causas da miséria comum que assola os dias. A cena não precisa de muitos recursos. Bem concentrada no close, nos dá de presente a ótima atuação de Thamirys. Já em A influência do mal, Adalberto Neto também cria tipos a partir da situação do isolamento; no entanto, vem mais na linha de um teatro dos costumes levado ao vídeo. Entre outras questões tratadas na história da malévola sobrinha que visita a tia durante a pandemia estão novamente a cultura das redes sociais e o racismo.

Por fim, dois artistas e seus grupos de colaboradores fazem humor por meio da narrativa didática. Em A história de Glauber Rocha na versão do Cêro, o baiano Ivan Mesquita segue no caminho que o notabilizou nos meios digitais. Conta-nos de maneira única, só dele, sobre personagens e fatos históricos. No caso, sobre a vida de Glauber Rocha, sintetizada em alguns minutos. A compressão radical também faz parte do projeto Quarentena Filmes, de Walmick de Holanda e equipe. Na ótima animação de Macbeth, de Shakespeare (na verdade, mais do grupo do que de Shakespeare), bonecos de coleção fazem as vezes das personagens, e a trama do bardo inglês abre passagem, em um piscar de olhos, para referências, na paralela, com a conjuntura brasileira e seus vícios. Em ambos os trabalhos, se por um lado o narrado não apresenta tempos de respiro, por outro parece que a proposta é essa mesma. Mais que a reflexão detida, são os aspectos mais angulares do que é contado o que, de fato, interessa.

Macbeth, de William Shakespeare, é o décimo segundo curta-metragem do projeto Quarentena Filmes | foto: Walmick de Holanda

Para as pessoas habituadas ao ambiente da sala de teatro, as cenas apresentadas nesta primeira semana trazem de volta questões vividas por nós desde o início da pandemia. Desde uma sociologia do espectador e da fruição teatral, agora partida ao meio com plateias remotas, não presenciais, até outras mais ligadas às linguagens possíveis e às relações entre a representação e seus meios. Descontada a melancolia que quase sempre está presente em uma apresentação gravada ou a distância, sobram, para este universo específico do humor, algumas inquietações. O humor no vídeo não é novidade. Os velhos e incorretos programas humorísticos da TV, com risadas fakes ao fundo, ainda que mais raros, continuam aí. E uma parte dos artistas que estão hoje produzindo para as redes e tentando avançar por caminhos estéticos e políticos mais interessantes a partir dos novos meios também.

De um modo ou de outro, uma plateia habituada ao encontro presencial ainda há de estranhar as mediações às vezes violentas que a transmissão demanda. Mais que em outros gêneros do teatro, a presença viva é água e alimento para os cômicos e seu público. Mesmo artistas experimentados no tablado ou nas salas virtuais, como vimos aqui, ressentem-se em meio a essa “presença ausente”. E ela recai sobre a representação e a fruição, porque a presença do intérprete intensifica-se nos tempos de reação da plateia, assim como o calor da plateia também é acionado nesse mútuo compartilhamento. No entanto, por isso mesmo, independentemente dos resultados videocênicos específicos, há de comemorar como uma forma de vitória não só a existência desses trabalhos, como também a aventura artística que eles empreendem no contexto.

Fora isso, sobram as imagens de fundo, que também nos mobilizam. Para dialogar com filósofos, historiadores e, sobretudo, conosco mesmo, com os nossos e as nossas, é preciso assumir as contradições. Não adianta nem idealizar que elas não existem nem tomá-las como intransponíveis. Dar o salto para fora da queixa, como se diz na psicanálise, significa, antes de tudo, ir fundo nela. E talvez seja isso, por meios próprios, o que os artistas do humor, da comédia, estão fazendo. Em um texto famoso de 1949, o filósofo Theodor Adorno dizia que a poesia era uma impossibilidade após a barbárie de Auschwitz. Já Umberto Eco, no trecho aqui citado como epígrafe, defende que é nos tempos de fechamento e de censura da poesia, do riso, que a razão cômica precisa existir. Como uma arma civilizatória. Tendemos a concordar com ele. Sem jogar a toalha, sem entregar os pontos, sigamos na labuta desses artistas que insistem no riso diante de um Brasil marcado neste momento por formas tristes, rebaixadas, de representação do real. Pensando naquilo e naqueles que têm que ser combatidos, sigamos com o que disse a historiadora Deborah Lipstadt: “Mesmo enquanto lutamos não devemos imbuir nossos oponentes de uma importância primordial. Jamais devemos atribuir a nossa existência a seus ataques contra nós ou deixar nossa batalha contra eles se transformar em nossa razão de ser. E, enquanto os combatemos, devemos vesti-los com – ou forçá-los a vestirem sozinhos – uma fantasia de bobos da corte”.

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