por Fabiana Tock, José Geraldo Setter Filho, Lígia Vasconcellos e Sérgio Lazzarini

 

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Territórios subdesenvolvidos com múltiplas vulnerabilidades sociais povoam grandes cidades há décadas. Uma área periférica pode carecer de infraestrutura habitacional, de saneamento básico e de segurança e, ao mesmo tempo, ter altos índices de doenças, de desemprego e de evasão escolar. Melhorar esse cenário, que afeta a vida de milhões de pessoas, requer intervenções urbanas combinadas e complementares em diferentes áreas e a organização de múltiplos agentes.

No entanto, como fazer isso na prática? Quais são os diferentes fatores que limitam o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis? Como organizar esforços e ações de diversas organizações e pessoas para alcançar conjuntamente múltiplos resultados que melhorem a vida das populações que residem em territórios urbanos subdesenvolvidos?

Quais são os diferentes fatores que limitam o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis?

Em 2020, o Insper Metricis (centro de estudos de gestão e medição de impactos) firmou parceria com duas das principais organizações sem fins lucrativos brasileiras, a Fundação Tide Setubal e o Itaú Social, para estudar o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis na cidade de São Paulo.

Embora o objetivo final do projeto fosse elaborar um painel de indicadores de desenvolvimento, ficou claro desde o início que uma parte fundamental do processo exigia uma compreensão profunda dos variados problemas enfrentados por essas áreas. Compreender essas questões e avaliar as maneiras pelas quais as organizações públicas e privadas poderiam colaborar também exigiu um processo estruturado e lógico para definir as ações potenciais e seus resultados de interseção. O problema exigia o desenvolvimento de uma grande e unificada teoria da mudança.

O problema exigia o desenvolvimento de uma grande e unificada teoria da mudança

Problemas urgentes em áreas urbanas vulneráveis

Antes de delinear a teoria da mudança, a equipe do projeto começou com uma análise aprofundada dos problemas enfrentados pelas áreas vulneráveis. Para entendê-los melhor, a equipe entrou em contato e engajou ativamente um grupo diversificado de partes interessadas direta e indiretamente. A governança do projeto contou com um comitê gestor e um comitê consultivo, com membros de diversas organizações públicas e privadas, além da participação ativa de moradores de áreas vulneráveis.

Após interações com esses atores e uma profunda revisão da literatura, a equipe chegou a oito temas inter-relacionados que se mostraram relevantes para territórios urbanos vulneráveis, sendo eles: trabalho e renda; segurança; infraestrutura básica (decomposta em saneamento, energia, lazer e cultura); educação; saúde; mobilidade urbana; habitação; e capital social (por exemplo, a participação dos moradores em grupos e em associações comunitárias).

A equipe também estudou casos conhecidos de desenvolvimento urbano, como o de Medellín, na Colômbia, que envolveu um conjunto de ações abordando vários desses temas de maneira integrada.

A equipe também estudou casos conhecidos de desenvolvimento urbano, como o de Medellín, na Colômbia, que envolveu um conjunto de ações abordando vários desses temas de maneira integrada.

Propondo teorias temáticas de mudança

A partir dos oito temas definidos, vários especialistas foram consultados para a elaboração de um conjunto de ações para abordar e melhorar os territórios. Foi proposta uma teoria temática da mudança para cada um dos temas, a fim de tratar de problemas e de oportunidades de desenvolvimento (Figura 1).

Como se sabe, a teoria da mudança engloba etapas lógicas para materializar as transformações desejadas: insumos disponíveis (recursos humanos, físicos e financeiros); atividades (ações e programas); saídas (produtos e serviços resultantes das atividades); resultados das atividades focais (transformações diretas e tangíveis para a população-alvo); e resultados mais amplos para a sociedade, que foram explicitamente vinculados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) Por exemplo, atividades que têm como foco fomentar o empreendedorismo local devem aumentar a renda familiar (um resultado baseado em atividades) e, consequentemente, promover “trabalho decente e crescimento econômico” (ODS 8).

Gráfico dos temas-chave para o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis e a teoria temática da mudança correspondente.

Construindo uma teoria da mudança sistêmica

O próximo passo foi integrar essas teorias temáticas de mudança a uma teoria geral e unificada, refletindo resultados múltiplos e cruzados. A teoria da mudança decorrente é muito complexa para ser descrita neste artigo, mas a ideia geral está representada na Figura 2. Os oito temas geraram teorias temáticas de mudança que foram posteriormente integradas por meio da identificação de atividades e de produtos de interseção, o que levou a um total de 37 resultados esperados.

Gráfico  da construção de uma teoria da mudança sistêmica a partir de temas múltiplos e cruzados que afetam o desenvolvimento dos territórios urbanos.

Por exemplo, uma intervenção de mobilidade urbana, como melhorias substanciais no transporte público, pode afetar positivamente o trabalho e o emprego, pois os indivíduos chegariam supostamente de maneira mais fácil às áreas comerciais com oportunidades de trabalho ou de transações. Da mesma forma, reparos em casas vulneráveis têm o potencial de contribuir para a melhora da saúde da população local, reduzindo doenças respiratórias e infecciosas; enquanto as intervenções de lazer e de cultura tendem a complementar as atividades escolares e ajudar a evitar a ação de grupos criminosos que tentam influenciar os jovens.

Tais ações e efeitos tornam-se tão emaranhados que, na teoria final de mudança, os limites dos temas originais se mostraram confusos e sobrepostos. Relacionados à cultura, destacam-se resultados como o acesso a espaços públicos e a atividades de lazer, de cultura, de esporte e de convivência, assim como o empoderamento e o engajamento da população.

A teoria da mudança sistêmica acabou cobrindo praticamente todos os ODS – exceto, por razões óbvias, “vida na água” (ODS 14).

A teoria da mudança como uma rede

A teoria da mudança é essencialmente uma rede de relações causais: entradas levam a atividades, que por sua vez afetam saídas e resultados. Da mesma forma, os insumos são fornecidos por múltiplas organizações, públicas e privadas, que executam diversas atividades em territórios urbanos. A equipe do projeto, portanto, foi pioneira na ideia de vincular essas organizações à teoria da mudança, por meio de suas atividades existentes, e então observar os resultados esperados.

A teoria da mudança é essencialmente uma rede de relações causais: entradas levam a atividades, que por sua vez afetam saídas e resultados.

Esse exercício foi feito no contexto do Jardim Lapenna, território urbano de baixa renda com mais de 12 mil habitantes, localizado no bairro de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. Uma análise aprofundada do local constatou que a maioria de seus moradores está em situação de alta vulnerabilidade socioeconômica, vivendo em condições precárias de habitação e saneamento, e às margens de um rio (Tietê) com constante risco de enchentes. Após uma série de entrevistas, a equipe do projeto também mapeou as ações de nove organizações que já atuavam no território.

Ao conectar essas organizações com atividades especificadas na teoria da mudança, foi possível identificar quais tinham resultados em comum. A Figura 3 retrata uma rede dessas organizações, sendo que o vínculo entre elas indica que as suas atividades compartilham pelo menos um resultado comum associado à teoria da mudança.

Observe que esses laços mapeiam as interações potenciais entre as organizações – uma vez que buscam resultados comuns –, mas não indicam necessariamente que estão explorando de maneira efetiva essas conexões.

Há casos de organizações com alinhamentos na teoria da mudança (vê-se um empate na Figura 3) e que já estão executando projetos conjuntos no território. Por exemplo, a Fundação Tide Setubal e a Moradigna, empresa social dedicada à recuperação de moradias, se uniram para financiar e executar reformas de banheiros para famílias de baixa renda. Além disso, a fundação firmou parceria com o Comitê de Planejamento do Desenvolvimento Local do território para implementar diversos projetos, incluindo, por exemplo, a melhoria da infraestrutura viária para facilitar a mobilidade dos moradores. O comitê é um grupo permanente de planejamento formado por moradores e representantes de diversas organizações locais, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da comunidade.

Segundo o mapeamento realizado, sete das nove organizações contribuem para o resultado relacionado ao empoderamento e ao engajamento da comunidade via atividades de lazer e de cultura; e cinco contribuem mais diretamente para o acesso aos espaços culturais.

No entanto, existem vários casos de organizações que compartilham ações comuns e não estão em colaboração. Elas estão agindo de forma mais ou menos independente, embora seus projetos possam gerar sinergias substanciais. Ao identificar suas interações potenciais, a teoria da mudança sistêmica permite que essas organizações sejam reconhecidas como parceiras, aumentando a probabilidade de compartilharem recursos e esforços para transformar o território. É possível, assim, que entendam melhor seus objetivos comuns e que elaborem iniciativas complementares para maximizar os resultados esperados.

Gráfico das redes de organizações que atuam no território do Jardim Lapenna, na cidade de São Paulo. O vínculo entre essas organizações indica que compartilham pelo menos um resultado comum, conforme indicado pela teoria da mudança sistêmica.

As próximas etapas do projeto incluem o desenvolvimento de um aplicativo que permitirá que organizações de outros territórios listem suas contribuições e atividades e identifiquem os efeitos esperados da teoria da mudança sistêmica. Esse esforço também poderá ajudar a mapear múltiplas intervenções e a identificar outras oportunidades para colaborações interorganizacionais. Longe de ser um exercício abstrato, uma teoria da mudança sistêmica é uma ferramenta prática e acionável para abordar de forma interconectada problemas prementes em áreas urbanas vulneráveis e negligenciadas. 

 

Como citar 

TOCK, Fabiana et al. Desenvolvendo territórios urbanos vulneráveis: uma abordagem da teoria da mudança. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. Doi:https://www.doi.org/10.53343/100521.33-12

Fabiana Tock é mestra em administração pública e governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pós-graduada em sociologia e pesquisa social pela University College Dublin, na Irlanda, e em gestão pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Coordena o programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setubal.

José Geraldo Setter Filho é mestre em administração pelo Insper, com MBA executivo pela mesma instituição e especialização em finanças pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV). É doutorando em administração na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA/USP), professor assistente do Insper e diretor do Insper Metricis.

Lígia Vasconcellos é doutora em economia pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Atua como consultora de avaliação de impacto social e pesquisadora associada do Insper Metricis.

Sérgio Lazzarini é ph.D. em administração pela John M. Olin School of Business, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Foi professor visitante na Universidade Harvard em 2010 e em 2012, atualmente lecionando na Cátedra Chafi Haddad do Insper, em São Paulo. É fundador do Insper Metricis.