Revista Observatório 33 | Construção participativa de um referencial de avaliação de desenvolvimento integral, por Esmeralda Correa Macana, Jade Blanda Fonseca Saraiva, Luan Pires Paciencia e Rayssa Deps Bolelli
12/09/2022 - 10:07
por Esmeralda Correa Macana, Jade Blanda Fonseca Saraiva, Luan Pires Paciencia e Rayssa Deps Bolelli
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Resumo: Este artigo discute o processo de construção e de aprendizado de um referencial de avaliação participativa do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Esse referencial surge da necessidade de avaliações com uma perspectiva mais ampliada e que valorizem o trabalho das organizações da sociedade civil (OSC) na promoção de oportunidades de aprendizagem e na redução de desigualdades. São destacados aspectos teóricos do desenvolvimento integral e de abordagens de avaliações participativas para analisar as distintas etapas seguidas e os diferentes níveis de participação das OSC nesse processo.
Introdução [1]
Após dois anos de pandemia de covid-19, não há dúvida de que o Brasil enfrenta um grande desafio na garantia de direitos de crianças, jovens e adolescentes. A pandemia aprofundou desigualdades já existentes, que reduzem as oportunidades de desenvolvimento integral (DI) especialmente de grupos historicamente excluídos, como crianças negras e indígenas, com deficiência, das áreas rurais ou de baixo nível socioeconômico. Transformar esse cenário passa por romper com uma visão estreita das concepções de desenvolvimento humano e de educação.
empobrecemos a perspectiva de DI quando não reconhecemos outros espaços de aprendizagem para além da escola, essenciais para a redução das desigualdades sociais.
Empobrecemos a visão da educação quando priorizamos só certas dimensões – como a cognitiva – e esquecemos de outras igualmente importantes, como a cultural, a social e a física. Também empobrecemos a perspectiva de DI quando não reconhecemos outros espaços de aprendizagem para além da escola, essenciais para a redução das desigualdades sociais.
O estudo “Cada hora importa”,[2] realizado pelo Itaú Social e pelo Plano CDE em 2021, demonstra que, ao completarem 15 anos, crianças de famílias mais ricas recebem em média 7 mil horas de aprendizado a mais que crianças de famílias mais pobres. É um abismo equivalente a quase 8 anos de carga horária em uma escola regular. São contabilizadas nesse cálculo as horas de oportunidades de aprendizagem da educação formal desde a primeira infância, assim como dos aprendizados no ambiente da família e das atividades extracurriculares, como cursos de idiomas e de artes e atividades culturais, como cinema e teatro. Nesse sentido, o trabalho realizado pelas organizações da sociedade civil (OSC) pode ser um divisor de águas, especialmente por sua atuação em territórios em situação de extrema vulnerabilidade.
Mas como avaliar estratégias voltadas para o DI de modo a gerar aprendizados que aprimorem políticas e programas? Referenciais de avaliação do DI têm sido construídos por distintas organizações ou núcleos de pesquisa, mas nem sempre com uma perspectiva participativa. O que acontece, então, quando se escolhe valorizar as comunidades locais e os saberes de atores de fora da escola – como fazem as OSC – em todo o processo de uma avaliação?
organizações da sociedade civil (OSC) pode ser um divisor de águas, especialmente por sua atuação em territórios em situação de extrema vulnerabilidade.
O presente artigo tem como objetivo discutir estratégias e aprendizados do Itaú Social na construção de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral (ADI) com a participação ativa de organizações sociais de base comunitária. Com esse referencial, nosso propósito é: i) gerar consciência sobre distintas dimensões que compõem o DI; ii) fomentar a reflexão sobre experiências essenciais para a promoção dessas dimensões; iii) apoiar processos formativos de educadores e aprimorar ações; e iv) identificar progressos e dar visibilidade ao trabalho das OSC.
A palavra-chave é aprendizado. Por isso, em vez de fazer rankings de desempenho que possam estereotipar crianças e organizações, o modelo de construção e implementação da ADI se concentra nos aspectos formativos que podem ser gerados em todo esse processo e nos seus resultados. Nesse sentido, a construção participativa do próprio referencial e dos seus instrumentos se torna um elemento fundamental. Este artigo compartilha a experiência dessa jornada em cinco seções. Esta introdução é seguida de uma discussão sobre a visão de DI e sobre o papel das OSC na sua promoção. Depois, descrevem-se o referencial teórico de avaliações participativas e a estrutura de construção da avaliação participativa de DI. Por último, são apresentadas as considerações finais, os aprendizados e os desafios para a construção do referencial.
O que significa DI?
O desenvolvimento integral de crianças, jovens e adolescentes é a combinação de diferentes processos que confluem para o florescimento do ser humano no seu sentido mais amplo e pleno, de modo que ele possa ser e realizar o que valoriza e o que busca perseguir na sua vida e inspirar na sociedade. Implica considerar toda a multidimensionalidade do sujeito, que articula desde funcionamentos elementares e essenciais para a vida, como o adequado desenvolvimento físico-motor, até habilidades e competências mais complexas, como o exercício da autonomia (SEN, 2000; ALKIRE, 2002).[3]
Alinha-se a essa perspectiva o conceito de educação integral, que reconhece a centralidade do sujeito e a importância de promover experiências não só para o seu desenvolvimento intelectual, mas também para o seu desenvolvimento físico, social, emocional e cultural. Assim, promover o DI é dar importância a todas essas distintas dimensões sem hierarquia. Todas são igualmente importantes para se alcançar o pleno potencial humano.
promover o DI é dar importância a todas essas distintas dimensões sem hierarquia. Todas são igualmente importantes para se alcançar o pleno potencial humano.
A educação integral considera os espaços, os tempos e os conteúdos necessários para o desenvolvimento humano (LOMONACO e DA SILVA, 2013). Os espaços são os diferentes ambientes em que se constroem experiências múltiplas de aprendizado, e com a participação de distintos agentes. Não se referem só à escola, mas também à família e à comunidade. Conforme a Figura 1, existem condições e processos que influenciam o resultado do DI, e deve-se reconhecer o papel das OSC nesses aspectos.
O papel das organizações sociais na promoção do DI
Garantir os direitos das crianças e dos adolescentes com absoluta prioridade é uma responsabilidade compartilhada entre o Estado e toda a sociedade, como determina a “Constituição federal de 1988”. Apesar disso, de acordo com um levantamento realizado pela organização Todos pela Educação, em 2021 existiam no Brasil mais de 650 mil crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos fora da escola, tendo seu direito básico à educação negado. Somam-se a essa situação outras violações de direito presentes na nossa sociedade e que representam barreiras para o desenvolvimento pleno de crianças, adolescentes e jovens, tais como: insegurança alimentar, trabalho infantil, violências de múltiplas naturezas e exclusão.
De acordo com o Mapa das Organizações da Sociedade Civil produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2022, existem mais de 500 mil OSC que atuam nas áreas de defesa de direitos; cultura e recreação; assistência social; e educação e pesquisa. Essas organizações estão em atividade no país contribuindo diretamente para o DI de crianças, adolescentes e jovens, na medida em que ampliam o acesso à cultura, à educação, às práticas esportivas e ao lazer.
Apesar desse trabalho fundamental, as OSC ainda estão longe de receber o devido reconhecimento e o apoio amplo da sociedade. A quarta edição da “Brasil giving report” – pesquisa promovida pela britânica Charities Aid Foundation e pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) –, de 2020, mostrou que somente um terço da população adulta brasileira confia nas OSC do país.
Um obstáculo para a superação dessa desconfiança é a dificuldade que as OSC têm em mensurar e comunicar para a sociedade seus resultados e impactos. Para aquelas que atuam em prol do DI de crianças, adolescentes e jovens, o desafio é ainda maior, uma vez que o DI é entendido como um conceito ou resultado amplo demais, pouco tangível, que pode demorar um longo tempo até ser observado, e que depende extremamente de fatores externos à atuação das organizações.
Dessa forma, entende-se que, ao propor uma metodologia factível e instrumentalizar as OSC para avaliarem o alcance dos resultados pretendidos, mais especificamente o desenvolvimento pleno de meninas e meninos, a ADI contribuirá para o fortalecimento dessas organizações não só na perspectiva da reflexão estratégica e da qualificação contínua de suas atividades, mas também para conquistarem maior credibilidade perante a sociedade.
A importância de avaliações participativas
Pesquisas e avaliações participativas envolvem ativamente tomadores de decisão ou comunidades em distintas fases do processo (BRANDON, 1998). Existem abordagens específicas, como a avaliação colaborativa (collaborative evaluation), que busca engajar sistematicamente os tomadores de decisão no planejamento e na implementação de um programa para tornar as avaliações mais potentes desde o desenho e a coleta de dados até a análise de resultados e seus usos (O'SULLIVAN, 2012). Outra abordagem, a avaliação de empoderamento (empowerment evaluation), fundamentada por Fetterman (2010), diferencia-se da anterior por considerar, além do envolvimento dos participantes, a sua maior autonomia para conduzir seu próprio processo de avaliação e para usar os resultados como forma de advocacy para fortalecer suas próprias causas (PATTON, 1997). Com base no trabalho de Vaughn e Jacquez (2020), na Figura 2, pode-se ilustrar as diferenças de abordagens pelo grau de participação dos interessados em um processo avaliativo.
Patton (1997) menciona que as avaliações participativas têm o propósito de "construir capacidades" nas comunidades ou nos atores. A construção de capacidades se fortalece na medida em que há uma aprendizagem no processo e no uso de resultados que reforça a participação e a capacidade de melhorar as intervenções. Creswell e Clark (2018) também mencionam que as avaliações participativas buscam incluir a voz de pessoas que são afetadas pelas problemáticas, assim como procuram ser sensíveis à realidade cultural e contextual das comunidades.
há uma aprendizagem no processo e no uso de resultados que reforça a participação e a capacidade de melhorar as intervenções.
Essas avaliações não têm uma metodologia única, são mais bem descritas pelo conjunto de princípios escolhidos e pelo engajamento dos atores no processo (BURKE, 1998). Para este estudo, destacaram-se os princípios descritos por Burke (1998), por abrangerem qualquer abordagem participativa dentro de programas sociais:
i. a avaliação deve envolver e ser útil para os fins do programa e para as partes interessadas;
ii. a avaliação deve ser responsiva em relação ao contexto cultural;
iii. a metodologia de avaliação deve respeitar e usar os conhecimentos e as experiências das partes interessadas;
iv. a avaliação deve construir capacidades tanto no processo quanto nos resultados para as partes envolvidas;
v. a avaliação deve favorecer métodos coletivos de geração de conhecimento;
vi. os avaliadores ou facilitadores do processo devem compartilhar de um balanço de poder com as partes interessadas do programa;
vii. os atores que participam da avaliação devem continuamente fazer uma reflexão e uma autocrítica de suas atitudes, suas ideias e seus comportamentos. Dessa forma, gera-se o aprendizado dos próprios erros e acertos dos processos avaliativos.
Estrutura e processo de construção da avaliação participativa
A estrutura de avaliação seguiu as etapas elencadas na Figura 3 e o processo de participação das OSC foi acordado em conjunto. Esse processo de construção participativa será descrito a seguir.
Definição e validação das dimensões de DI
O primeiro passo para garantir a construção da avaliação participativa foi a constituição, no início de 2020, de um grupo consultivo de dez OSC selecionadas com base nos seguintes critérios: i) receber apoio do Itaú Social e trabalhar com crianças, adolescentes e jovens na perspectiva do DI; ii) ter diversidade regional; iii) atuar em diferentes áreas; e iv) ter equipes com experiência em monitoramento e avaliação. Dessa forma, o grupo contribuiria de maneira coletiva, a partir do compartilhamento de experiências, críticas e sugestões ao longo de todo o projeto. Essas organizações apresentavam distintas estruturas e especialidades, e estavam distribuídas pelas cinco regiões do país. São exemplos a WimBelemDon, no Rio Grande do Sul, que trabalha com a inclusão e o desenvolvimento das crianças por meio da prática esportiva; e a AMFMT, do Mato Grosso, que tem como foco as manifestações folclóricas e culturais da região.
A partir do referencial teórico de avaliações participativas, garantimos que as OSC se engajassem de diferentes formas e intensidades no processo. Nas primeiras conversas, procuramos identificar como enxergavam a contribuição desse processo de avaliação para o desenvolvimento de suas atividades. Nesse exercício, que colaborou para uma visão compartilhada, educadores de distintas OSC mencionaram, por exemplo, que a ADI iria “mostrar as ações/os resultados já existentes, mas que não são registrados nem apresentados para a sociedade, pois estão ‘invisíveis’”; assim como “provocar uma autoanálise organizacional”; e que poderia “levar acesso e oportunidades no meio urbano e rural a partir do conhecimento das realidades”.
Um segundo momento foi a definição das dimensões de DI. Esse processo teve como ponto de referência o repertório do trabalho do Itaú Social na promoção da educação integral iniciado em 1995 com o Prêmio Itaú-Unicef, uma parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Essa experiência, em diálogo com as OSC, definiu as cinco dimensões do referencial da ADI explicitadas na Figura 5.
A dimensão física relaciona-se à compreensão das questões do corpo, do autocuidado, da atenção à saúde, da potência e da prática física e motora. A dimensão emocional refere-se às questões do autoconhecimento, da autoconfiança, da determinação, do sentimento de pertencimento, da autoestima, do equilíbrio emocional e da resiliência. A dimensão social é relativa à consciência social e ambiental, ao exercício da cidadania, à valorização das diversidades, à convivência, ao diálogo e à colaboração. A dimensão intelectual está associada à apropriação de linguagens, códigos e tecnologias, ao exercício da lógica e da análise crítica, ao planejamento de vida, à autonomia, à capacidade de expressão, à criatividade e à atenção. Por último, a dimensão cultural diz respeito à apreciação e fruição das diversas culturas, às questões identitárias, à produção cultural em suas diferentes linguagens e ao respeito de diferentes perspectivas, práticas e costumes sociais.
Construção das subdimensões
As dimensões foram trabalhadas em conjunto com especialistas e com as OSC para especificar seu significado no contexto de trabalho dessas organizações, desenvolvendo-se a partir daí as subdimensões, que eram até então uma lacuna. Em uma série de encontros mediados, as OSC avaliaram – com uma escala de muito relevante, relevante e pouco relevante – uma lista de subdimensões e descritivos gerados a partir das dimensões de DI do Centro de Referências em Educação Integral e do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular.[4] Esse trabalho foi registrado coletivamente em um documento que também foi compartilhado com educadores e com o corpo técnico das OSC para contribuições colaborativas. A partir dessa análise conjunta, as subdimensões foram construídas, excluindo-se aspectos menos relevantes e adicionando-se subdimensões que estavam relacionadas ao trabalho das OSC mas não eram contempladas por esses referenciais. Na Figura 6, elencam-se as subdimensões definidas.
Para realizar a ponte entre as subdimensões e o instrumento de coleta, no primeiro semestre de 2021, desenvolvemos descritores com seus respectivos itens ou perguntas para medir cada subdimensão. Nesta etapa, os descritores foram propostos por especialistas em cada uma das dimensões e, com o apoio das OSC, posteriormente adaptados às suas realidades de trabalho.
Escolhas metodológicas
Para fundamentar as escolhas metodológicas, foi feita uma comparação dos principais referenciais e metodologias de avaliação do desenvolvimento infantojuvenil,[5] destacando-se aspectos como: i) os tipos de escalas (de 3 ou 5 pontos); ii) os prós e os contras dos métodos de aplicação (autodeclaração, observação ou aplicação com educadores ou familiares); e iii) a idade sugerida para a autodeclaração. Sobre o primeiro aspecto que se relaciona à construção da escala, buscava-se garantir uma maior facilidade de interpretação por parte de crianças e adolescentes, assim como permitir maior sensibilidade para captar mudanças do indicador ao longo do tempo. De acordo com a análise e as devolutivas de crianças e jovens, foi escolhida a escala de cinco pontos, vista na Figura 7.
Sobre as metodologias de aplicação, analisamos seus prós e seus contras e as evidências apontaram que os questionários autodeclarados, aqueles respondidos conforme a autopercepção das crianças, foram os que se mostraram mais viáveis em termos de facilidade de aplicação e de uso autônomo pelas OSC. Esses questionários também apresentaram maiores evidências sobre testes e validações das dimensões estudadas, além de serem os menos custosos. Os instrumentos de observação que podem ser aplicados por educadores tendem a ser mais custosos, pois implicam observar o comportamento da criança em uma atividade específica e por um espaço de tempo. Esses tipos de metodologia requerem maior treinamento e são mais demoradas.
Por fim, as referências apontaram que os questionários autodeclarados têm maior aderência entre crianças a partir dos 10 anos.[6] A idade é um ponto crucial, considerando-se os aspectos da linguagem ou a alfabetização. A partir disso, optou-se pelo desenvolvimento de dois questionários, um com itens para crianças de 10 e 11 anos e outro para adolescentes de 12 a 18, com diferentes graus de complexidade, conectados a essas faixas etárias.
Desenvolvimento de instrumentos de coleta
O maior desafio enfrentado nesta etapa, considerando-se as premissas da avaliação participativa, foi manter o engajamento das OSC do grupo consultivo na revisão de bibliografia, nas definições metodológicas e na criação do questionário, já que envolviam muitos aspectos técnicos. Nesse sentido, foi realizado um pré-teste para colher sugestões dos educadores, das crianças e dos jovens participantes.
O pré-teste foi realizado em três OSC do grupo consultivo – Bairro da Juventude (SC), Casa do Rio (AM) e AMFMT (MT) –, escolhidas de modo a abarcar diferentes contextos regionais e de desenvolvimento institucional. Além da aplicação do questionário, foram feitas rodas de conversa para que as crianças e os jovens apontassem palavras não compreendidas, itens não aderentes e percepções sobre como se sentiram respondendo a um instrumento como aquele. Os educadores, por sua vez, avaliaram cada um dos itens do questionário apontando sua relevância, sua aderência e sua compreensão, e também participaram de uma roda de conversa. Tanto o questionário quanto as reflexões sobre os temas abordados foram muito bem recebidos, conforme ilustram os depoimentos de uma criança e de um jovem:
Nunca havia parado para pensar sobre como eu me sentia quando eu me olhava no espelho (Comentário de uma criança sobre um item da subdimensão autoestima).
Acho muito importante essa discussão sobre acesso à cultura. Às vezes a gente tem o local, tem o cinema, tem a biblioteca, mas não tem o acesso, não consegue ir porque é longe, porque é caro ou porque nem sabe que tem (Comentário de um jovem sobre um item da subdimensão fruição cultural).
Eles também apontaram que o bate-papo foi um momento importante para que pudessem expressar suas opiniões, tirar dúvidas, dar sugestões e conversar sobre o que responderam. Essa participação teve uma contribuição importante na ampliação do escopo do referencial de avaliação, ao mostrar um valor intrínseco da autopercepção dessas crianças e desses jovens do seu próprio desenvolvimento. Eles acharam valor na escuta e mostraram que a avaliação pode ser uma ponte para o diálogo sobre os temas de DI e a sua mediação.
O caráter formativo da avaliação também foi bastante destacado pelos educadores. Eles se surpreenderam positivamente ao identificar temas apontados que necessitavam de um maior trabalho por parte das OSC. Segundo o depoimento de um dos educadores: “As crianças e os jovens querem participar, querem se sentir parte dos processos. Dando uma abertura, eles mostram que querem melhorar, que querem nos ajudar a melhorar”.
Tendo em vista as devolutivas, foram feitos aprimoramentos no instrumento e definidos alguns pontos da metodologia que estavam em aberto. A partir das conversas e da análise dos resultados, a escala escolhida foi a de cinco pontos, também indicada pela literatura por permitir uma maior sensibilidade e a variação ao longo do tempo. Um dos adolescentes que participaram do pré-teste chegou a apontar: “Eu preferi a de cinco pontos pois me deu mais opções de responder às questões”.
A roda de conversa foi um momento marcante. As crianças e os jovens se sentiram acolhidos e escutados, e os educadores identificaram espaços formativos e de aproximação em relação aos seus educandos. Por causa do seu resultado positivo, esse processo de escuta entre crianças, jovens e educadores foi incorporado de modo definitivo à versão final da metodologia de aplicação. Com base nessas devolutivas do pré-teste, a aplicação da avaliação foi aprimorada para seguirmos à etapa do piloto com todas as OSC participantes do grupo consultivo, de forma a colher amostras suficientes para validar a metodologia e o questionário. Essa etapa está sendo implementada no momento da escrita deste artigo, podendo-se sistematizar seus aprendizados posteriormente.
A roda de conversa foi um momento marcante. As crianças e os jovens se sentiram acolhidos e escutados, e os educadores identificaram espaços formativos e de aproximação em relação aos seus educandos. Por causa do seu resultado positivo, esse processo de escuta entre crianças, jovens e educadores foi incorporado de modo definitivo à versão final da metodologia de aplicação.
Considerações finais
Nesse processo de construção participativa, aprendemos que avaliar o DI é um assunto muito complexo e desafiador. Qualquer questionário ou índice que possa ser utilizado em uma avaliação com esse sentido possui limitações, já que são simplificações da realidade. Isso não faz com que esses questionários e índices deixem de ser importantes para o fortalecimento das OSC, já que estabelecem parâmetros que lançam luz sobre os aspectos mais avançados de seu trabalho, assim como sobre os pontos que necessitam de mais apoio e melhoria.
Mais do que índices e medidas, o valor dessa construção participativa encontra-se no processo formativo. Cada etapa trouxe aprendizados de como garantir uma participação genuína e aderente aos princípios de avaliações participativas. Foi importante, no processo, a construção conjunta das etapas e das formas de participação entre avaliadores, mediadores, especialistas e OSC. Com essa diversidade de olhares, nem sempre é fácil garantir o balanço de poder e o acolhimento das contribuições. Abertura e flexibilidade foram necessárias, respeitando-se o processo de idas e vindas. O desafio se converteu em riqueza pelas oportunidades de interação, de revisão de escolhas, de discussão de ideologias, de alteração de rotas e de ampliação de perspectivas de DI.
Nesse processo de construção participativa, aprendemos que avaliar o DI é um assunto muito complexo e desafiador. Qualquer questionário ou índice que possa ser utilizado em uma avaliação com esse sentido possui limitações, já que são simplificações da realidade. Isso não faz com que esses questionários e índices deixem de ser importantes para o fortalecimento das OSC, já que estabelecem parâmetros que lançam luz sobre os aspectos mais avançados de seu trabalho, assim como sobre os pontos que necessitam de mais apoio e melhoria.
Reconhecer a complexidade natural do tema e do processo sem se desmobilizar diante dos desafios nos permitiu dar passos importantes com o que era possível em cada momento, sem aguardar metodologias perfeitas. As trocas com participantes contribuíram muito mais para elucidar questões e desatar nós do que o esforço isolado de fazer revisões bibliográficas ou modelos estatísticos sofisticados. É assim, valorizando essa multiplicidade de saberes e de experiências de OSC, educadores, crianças, adolescentes e jovens em todo o processo, que enriquecemos a perspectiva de DI – e os usos de sua avaliação.
Como citar
MACANA, Esmeralda C. et al. Construção participativa de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022.Doi:https://www.doi.org/10.53343/100521.33-5
Esmeralda Correa Macana é mestra e doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou como consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e na equipe técnica do “Relatório nacional de desenvolvimento humano” do Brasil (2010) e do Panamá (2014). Lecionou economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Desde 2017, é especialista em monitoramento e avaliação no Itaú Social.
Jade Blanda Fonseca Saraiva é bacharela em ciências e humanidades pela Universidade Federal do ABC (Ufabc) e graduanda em políticas públicas na mesma instituição, com experiência em projetos de organizações da sociedade civil (OSC). Atualmente, trabalha com monitoramento e avaliação no Itaú Social.
Luan Pires Paciencia é mestre em economia pela Universidade de São Paulo (USP), com experiência em avaliação de impacto de programas de educação. Desde 2017, trabalha com monitoramento e avaliação de projetos sociais desenvolvidos por organizações da sociedade civil (OSC) no Itaú Social.
Rayssa Deps Bolelli é graduada em economia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestra em desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi trainee em gestão pública pelo programa da Vetor Brasil, tendo atuado no monitoramento de políticas públicas na Secretaria de Economia e Planejamento (SEP) do Espírito Santo. Atualmente, trabalha com monitoramento e avaliação de projetos no Itaú Social.
Referências bibliográficas
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[1] Os autores agradecem a revisão e as contribuições de Patrícia Mota Guedes, assim como o apoio de Jade Blanda Fonseca Saraiva.
[2] Este estudo, baseado no trabalho da organização não governamental (ONG) americana ExpandED Schools (2013), estima em horas as brechas de oportunidades de aprendizado das crianças e dos jovens brasileiros.
[3] Essa definição é baseada na abordagem de desenvolvimento humano de Amartya Sen e de outros pensadores que o seguem, como Sabina Alkire (2002).
[4] A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e das modalidades da Educação Básica.
[5] Alguns dos critérios definidos para escolher as metodologias de avaliação do desenvolvimento que seriam objeto de análise foram: avaliações abordando múltiplas dimensões com pesos equivalentes; avaliações com acesso público e/ou validadas em espanhol ou em português; e avaliações enfocando a faixa etária dos 6 aos 18 anos, excluindo-se instrumentos para a primeira infância e para os adultos. Entre as abordagens selecionadas, encontram-se aquelas de organizações como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE); a Unicef Oriente Médio e Norte da África; a Casel Framework; a Fundação Corona, da Colômbia; e a 21st Century Learning International.
[6]As evidências indicam que os autorrelatos sobre personalidade e sobre habilidades sociais e emocionais podem ser usados com crianças a partir dos 10 anos de idade (SOTO et al., 2011). Essa capacidade depende de uma série de fatores críticos, que incluem a proficiência em linguagem e o desenvolvimento cognitivo e social (JOHN; DE FRUYT, 2015). As crianças precisam já ter adquirido certo vocabulário e um nível básico de leitura para poder realizar a avaliação.