Ruas agitadas, cores, música alta, bicicletas, efervescência de ritmos, risos e beleza são algumas referências que trazemos quando pensamos em muitas favelas. E não seria diferente com o Complexo da Maré. Para conhecer mais sobre a produção teatral no local, conversamos com Gabriel Horsth e Paulo Victor Lino, diretores do Grupo Pantera. Os dois estreiam no início de maio Questão de Gosto, primeiro espetáculo do grupo.

Apresentação da peça "Questão de Gosto" (imagem: Matheus Affonso)

Gabriel é graduando em atuação cênica pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) e, atualmente, integra a equipe do Centro de Teatro do Oprimido. Atua no Grupo de Teatro do Oprimido (GTO) Cor do Brasil e no Grupo Atiro. Paulo é graduando em história pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), além de ator e produtor do Grupo Atiro.

Como surgiu a ideia de criar o coletivo e quais são as principais atividades que vocês desenvolvem?

Gabriel Horsth (GH): A ideia surgiu da necessidade que senti, no final de 2016, de pensar iniciativas culturais LGBT no Complexo da Maré. Em parceria com o Grupo Conexão G de Cidadania LGBT de Favelas e com o Centro de Teatro do Oprimido, desenvolvi oficinas de teatro na favela Nova Holanda, no complexo, para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais.

A partir disso, em janeiro de 2017 nasceu o Laboratório LGBT de Teatro do Oprimido, que tinha como objetivo a construção de um coletivo que produzisse novas narrativas teatrais protagonizadas por pessoas LGBT moradoras de favelas, utilizando o Teatro do Oprimido, método criado pelo teatrólogo brasileiro Augusto Boal, para a superação de opressões ligadas a gênero e sexualidade. Em maio do mesmo ano, na semana de combate à homofobia, promovemos a 1a Mostra de Cultura e Cidadania LGBT de Favelas, que contou com o lançamento do 1o Prêmio de Cultura e Cidadania LGBT Gilmara Cunha.

Gabriel Horsth (imagem: Hugo Lima)

Após a mostra, fortalecemos a ideia da criação de um grupo de teatro LGBT. Foi assim que se consolidou o Grupo Pantera. O nome é uma homenagem a uma das travestis mais antigas do Complexo da Maré. Pantera fez parte de um grupo de travestis que iniciaram uma série de apresentações artísticas no local, especificamente na favela Nova Holanda, denominado Show das Travestis. O nome dela foi escolhido como um símbolo para representar todxs xs artistas LGBT da Maré. Hoje ela é um dos nomes LGBT mais conhecidos entre os 140 mil habitantes do conjunto de favelas da Maré.

Quais foram os principais desafios artísticos na criação do espetáculo Questão de Gosto?

GH: A criação do primeiro espetáculo do grupo foi um processo de luta e de conquista diária. A Maré é um território marcado pela intervenção brutal e violenta de cinco grandiosas facções criminosas extremamente LGBTfóbicas: CV, TCP, ADA, milícia e o Estado. Vale ressaltar a inclusão do Estado, pois ele atua nesse território sob uma perspectiva desumana, racista e classista, deliberando e fortalecendo um contínuo processo de desigualdade extrema. Esse panorama marca uma linha de ação que marginaliza processos artísticos LGBT na Maré.

Atualmente, o coletivo não consegue avançar sua pesquisa cênica, pois é cerceado o direito dos atores e das atrizes de ir e vir na comunidade. A pesquisa cênica do coletivo nasce do Teatro do Oprimido e se propõe a debater os desafios na construção de relações afetivas no âmbito familiar por jovens LGBT. O Teatro do Oprimido, nessa caminhada, vem sendo fundamental para o processo de democratização do fazer teatral.

Augusto Boal afirma que “cidadão não é aquele que vive em sociedade: é aquele que a transforma”, e acreditamos que atores e atrizes somos todxs nós. Assim, abre-se o leque de possibilidades para o empoderamento de jovens LGBT favelados.

Paulo Victor Lino (PVL): A gente desenvolveu a peça Questão de Gosto através de um convite feito pelo Sesc de Madureira (RJ) para uma circulação escolar com a proposta de discutir o cyberbullying nas escolas. Nosso primeiro embate foi o de como construir um espetáculo para a comunidade escolar (lugar em que debates sobre gênero e sexualidade ainda são tabu), tendo o cyberbullying como fio condutor da narrativa e de nossas identidades e histórias. O grupo se debruçou sobre uma pesquisa para saber o que era cyberbullying sob uma perspectiva LGBT, o que nos levou ao mundo dos aplicativos de relacionamento e a quanto essa rede alimenta a hipersexualização e a solidão do corpo negro. Através das técnicas do Teatro Jornal, criado também por Augusto Boal, elaboramos uma estrutura em que o texto da peça é feito das conversas dos atores e das atrizes nos aplicativos. O universo do espetáculo acontece em um jogo de videogame, brincando com o mundo virtual e o real.

Paulo Victor (imagem: Matheus Affonso)

No final do ano passado, realizamos a circulação por nove colégios públicos da Zona Oeste do Rio de Janeiro. O retorno do público LGBT das escolas foi superpositivo, pois havia um reconhecimento nas situações que a cena trazia.

A realização da peça foi possível primeiro graças ao apoio do Centro de Teatro do Oprimido, que chegou somando forças, da Petrobras, que financia o projeto Circuito Teatro do Oprimido, e do próprio Sesc de Madureira, que fez esse convite.

O Grupo Pantera utiliza o espaço da ONG Conexão G de Cidadania LGBT para Moradores de Favelas, localizado na Maré. Como é estar nesse local com mais de 140 mil habitantes e como vocês dialogam com a comunidade?

GH: Estar na favela é resistir a todo momento. Mas estar na favela com o Grupo Conexão G é ter a esperança trazida concretamente a nós. Sorrir ao fim do dia é necessário para continuar vivo, e ter pessoas como a Gilmara Cunha como referência para o coletivo é fazer brotar sorrisos todos os dias. É dar a possibilidade de construir utopias e de fazer delas nossas ações concretas do presente.

Inicialmente, dialogar com a comunidade não foi um processo fácil para o grupo. Por muitas vezes, como curinga [termo utilizado no Teatro do Oprimido para designar o papel do “diretor” e “facilitador”], deparei-me com o silêncio do elenco quando perguntei sobre alguma ação e proposta do processo artístico. Ao fim de cada encontro, temos a prática de fazer um resgate sobre o processo do dia e de apresentar os nossos achismos e interesses, quais foram as novas descobertas e como nos sentimos sobre determinado exercício ou jogo. O que tínhamos, no primeiro momento, era o silêncio. Após alguns estímulos, respostas como “Eu gostei”, “Foi muito interessante”, “É divertido” ou o clássico “Foi legal” vinham à tona.

No Teatro do Oprimido trabalhamos bastante as resoluções estéticas através de três distintos canais: palavra, som e imagem. Quando era solicitado algo ligado à escrita, como uma poesia, colocava-se de imediato uma rejeição ligada a uma autocrítica violenta: “Eu não sei escrever bem” ou “Eu não sei escrever bonito”. Percebo que esse retorno é comum quando a prática artística de luta se propõe a trabalhar com grupos de oprimidos e oprimidas.

O direito à fala, de fazer arte e de desenvolver escritas é negado a nós, pois falar, escrever e produzir arte é um ato de afirmação de identidade, é um ato de luta e apropriação de ferramentas de poder que, historicamente, fomentam o desequilíbrio social, racial, sexual, religioso, cultural e de gênero e que reproduzem posicionamentos injustos em diversas sociedades.

Assim, fazer teatro favelado e LGBT é estimular a si e ao (à) outro(a). Estimular que o (a) outro(a) ocupe o lugar de fala, de escrita, de desenvolvimento, de conhecimento e de novos saberes artísticos. A relação com o território se dá sob esta perspectiva: de estímulo e quebra de padrões, de tolerância, de fomento de uma arte LGBT periférica e de parcerias com outros coletivos, grupos e instituições que pensam de forma mais inclusiva.

Em entrevista ao Observatório, o professor Jorge Bassani, da Universidade de São Paulo (USP), falou sobre como os coletivos artísticos que atuam em ambientes periféricos se territorializam e trabalham a partir de matéria-prima do próprio território, e alcançam resultados que muitas vezes determinam pautas e a criação de políticas públicas. Como vocês percebem e constroem as questões que surgem do território no fazer artístico do grupo?

GH: O Teatro do Oprimido é um método que coloca a reapropriação dos modos de produzir arte pelos oprimidos e pelas oprimidas. A partir disso, propomos que os jovens que não têm formação artística criem seu próprio espetáculo a partir de acontecimentos reais de opressão vivenciados por eles(as). Levamos ao palco as opressões às quais estamos expostos cotidianamente e queremos respostas da sociedade. Conviver com a realidade podre de ser o país campeão em mortes de LGBT no mundo não pode ser comum. E estamos ocupando os palcos para gritar que não é.

Nossas histórias vão ser contadas, e a voz a contá-las serão as nossas. Ecoaremos o som da injustiça nas paredes desse mar de favelas na Zona Norte do Rio de Janeiro. Nossas imagens atravessaram as memórias de um povo que naturaliza nosso sangue no chão dessa cidade, e nossa palavra será direta para todo o país: queremos viver! E vamos!

PVL: As pautas LGBT na Maré são urgentes, como em qualquer favela carioca. Há uma série de violações aos corpos LGBT, sejam elas por parte do narcotráfico, por parte da polícia, por parte das famílias, das igrejas, da saúde pública e da educação que vai ruindo nossa saúde física e mental. O Grupo Pantera surge dessa necessidade de nós, artistas, traduzirmos cenicamente as nossas histórias, subjetividades e violações para refletir, solucionar e tornar o teatro um espaço de representatividade.

Levando em conta o tamanho do território da Maré, quais são as demandas mais determinantes para a construção de políticas culturais que contemplem a diversidade cultural dos moradores?

PVL: Acredito que entre as principais demandas para a democratização da cultura no Rio de Janeiro podemos destacar a descentralização da difusão artística na cidade, o reconhecimento e a valorização da diversidade cultural, a promoção do acesso de moradores de regiões populares aos equipamentos culturais e o investimento na consolidação e na autonomia de trabalhos artísticos provenientes dessas regiões. É crucial que sejam criados espaços e pesquisas que sirvam de canal de diálogo para que os moradores construam caminhos de protagonismo que interfiram diretamente em seus cotidianos.

Como são pensadas a gestão e a sustentabilidade do grupo, além de suas produções artísticas?

PVL: Ter o apoio do Centro de Teatro do Oprimido e do Grupo Conexão G ajuda muito na gestão do grupo, possibilitando acesso aos recursos públicos destinados à cultura, além de abrir oportunidades infinitas de aprendizado. Promover a autogestão no contexto social em que vivemos é ter de buscar novas redes para conseguir os aparatos básicos para uma produção cênica, pois os recursos para o financiamento de um grupo favelado são quase nulos. 

 

Ensaio na Redes da Maré. (imagem: Matheus Affonso)

GH: Pensar em autogestão na favela é pensar que se autogerir é um processo coletivo. É aí que entram as parcerias e nascem as relações artísticas comunitárias. O Grupo Pantera é um coletivo recente, ao mesmo tempo histórico, principalmente na rede internacional de Teatro do Oprimido. Somos o primeiro grupo de Teatro do Oprimido LGBT atuando numa favela no Brasil. Não existe registro na história do Teatro do Oprimido no Brasil, e também no mundo, de ações concretas e afirmativas de algum coletivo LGBT em espaços periféricos. O teatro é uma arte negada à favela, então gerir ações para comunicação, teatralização e geração de recursos para manutenção e retorno financeiro aos praticantes é a nossa principal utopia.

PVL: Estabelecer relações com outros grupos é essencial. O Pantera realizou, nesse período, trocas artísticas com o Grupo Atiro, grupo teatral de extensão da Cia. Marginal, e o Grupo Maré 12, grupo de Teatro do Oprimido de jovens mulheres da Maré. Essas experiências se deram sob a perspectiva de troca de saberes e fazeres artísticos.

Quais são os próximos passos do coletivo?

PVL: Acreditamos que consolidar a peça e desenvolver uma temporada grandiosa, tanto na Maré quanto em outros equipamentos culturais do Rio de Janeiro, é o nosso próximo passo. Acho que o trabalho que temos construído no grupo é rico por se tratar de uma vivência pouco mostrada no cenário teatral. E a circulação do trabalho potencializa o grupo e as narrativas periféricas.

GH: Para o futuro queremos mais protagonismo juvenil e LGBT nos equipamentos artísticos da Maré e do Rio de Janeiro. O Grupo Pantera, ao lado do Grupo Conexão G, do Centro de Teatro do Oprimido, do GTO Maré 12, do Grupo Atiro, da Cia. Marginal, do GTO MaréMoTO, da Maré sobre Saltos, da Cia. Lia Rodrigues, do Coletivo Verniz e de outros movimentos artísticos mareenses, deseja ser engrenagem nessa revolução pelo direito de ocupar a cidade com narrativas culturais periféricas.

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