A produção cultural evangélica vem se desenvolvendo no Brasil desde a década de 1950, tendo se consolidado no final dos anos 1990. A pesquisadora Olívia Bandeira, doutora em antropologia cultural pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), conversou com o Observatório Itaú Cultural sobre o tema e traçou um panorama dessa produção, que perpassa todas as linguagens artísticas.

Olívia é também mestre em comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e graduada em comunicação social pela mesma instituição. Compõe a coordenação-executiva do Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social e o Grupo de Pesquisa Gênero, Religião e Política (Grepo), da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e do Laboratório de Antropologia da Religião (LAR), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

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Como você percebe o avanço da produção cultural evangélica? Quais são seus impactos?

Principalmente nas áreas da música e da literatura, já havia uma produção evangélica desenvolvida pelo menos desde a década de 1950. No entanto, ela se intensificou, se profissionalizou, se diversificou e ganhou maior visibilidade no final do século XX e início do XXI.

Um dos grandes marcos dessa produção é a música gospel, hoje um dos gêneros mais consumidos pelos brasileiros, atrás apenas do sertanejo, como mostram os dados de uma pesquisa realizada pelo Sesc e pela Fundação Perseu Abramo em 2013. O gospel se configurou no Brasil no final dos anos 1990, a princípio ligado a gravadoras comandadas por evangélicos leigos, mas logo passou a fazer parte dos negócios de comunicação e das estratégias de proselitismo religioso de uma série de igrejas, como a Renascer em Cristo (Gospel Records), a Igreja Universal do Reino de Deus (Line Records), a Igreja Internacional da Graça de Deus (Graça Music) e a Assembleia de Deus Vitória em Cristo (Central Gospel Music).

No final da década de 2000, a produção musical agrupada sob o termo música gospel extrapolou o circuito religioso e passou a fazer parte também do repertório das maiores gravadoras em atuação no país, como Sony Music, Universal Music e Som Livre, e assim a circular nas maiores rádios e televisões do país. É importante destacar que o que se convencionou chamar por esse nome não é um conjunto homogêneo de canções em termos melódicos e líricos, mas engloba subgêneros diversos, como louvor e adoração, pentecostal, rock gospel, rap gospel, sertanejo universitário gospel etc., que possuem diferenças inclusive em relação ao tipo de abordagem religiosa.

Além disso, a produção cultural evangélica se diversificou e hoje está presente no cinema, nas ficções televisivas, no teatro e em áreas que também fazem parte do consumo cultural se o entendermos de forma mais ampla, como a moda e o turismo.

No teatro, começam a despontar produções profissionais com o objetivo de alcançar grande audiência, como os trabalhos da Companhia Jeová Nissi. No cinema, o filme Metanoia, de 2015, é talvez o primeiro exemplar nacional evangélico de uma produção cinematográfica feita para entrar no circuito comercial de exibição. Em 2017 foi lançado o filme Nada a Perder, cinebiografia do pastor Edir Macedo, líder da Igreja Universal do Reino de Deus e dono do grupo de mídia Record. O circuito comercial também apresenta produções norte-americanas, como os longas-metragens Deus Não Está Morto (2014), Você Acredita? (2015) e Eu Só Posso Imaginar (2018). Ainda em relação ao audiovisual, o mercado de videoclipes está em expansão e as produções são exibidas na televisão, em canais de internet, em shows e durante cultos nas igrejas. Eu poderia citar as telenovelas e minisséries. A Rede Record de Televisão tem investido nessa área, com destaque para a novela Os Dez Mandamentos, exibida pela emissora em horário nobre em 2015.

Da mesma forma que a produção musical, o mercado de livros evangélicos é consolidado no Brasil há muitos anos, mas essa produção se concentrou sobretudo em obras teológicas, doutrinárias e de autoajuda. A literatura de ficção é algo mais recente e começa a ocupa lugar nas feiras de negócios de produtos religiosos.

Ainda mais, apesar da iconoclastia que caracteriza o protestantismo, mesmo as artes plásticas têm se desenvolvido, envolvendo as pinturas que podem ser encontradas em feiras de produtos cristãos e os grafites com mensagens e iconografias religiosas que se proliferam pelas cidades. Símbolos cristãos – como a cruz, o peixe, a árvore da vida e mesmo a face de Cristo – também têm adornado a indústria da moda religiosa, das camisetas vendidas a preços baixos nas lojas da Rua Conde de Sarzedas – reduto de produtos evangélicos do centro de São Paulo – às grifes dos grandes artistas da música gospel, passando pela decoração de pranchas de skate.

Um dos impactos do aumento dessa produção e de sua inserção na indústria cultural é a visibilidade, pois os produtos culturais evangélicos passaram a circular de forma mais ampla em jornais, programas de rádio, redes nacionais de TV, não apenas entre o público de evangélicos frequentadores das igrejas e nas mídias de nicho. Essa produção facilita um fenômeno que já vinha acontecendo no campo religioso brasileiro, que é a vivência de diferentes formas de religiosidade para além dos templos. Ou seja, proliferam formas de religiosidade que passam não somente pelos espaços institucionalizados de culto, mas se valem de produtos da mídia e da indústria cultural.

Hoje se nota a grande criação de produtos culturais para os evangélicos. Como você vê esse mercado nas áreas da literatura, do audiovisual, da música?

A relação entre consumo e religião não pode ser vista apenas como a subordinação da religião ao mercado. Ela produz novas formas de práticas religiosas e também novas formas de consumo. Os bens culturais produzidos nas diversas áreas que citei na resposta anterior – música, literatura, cinema, teatro, moda, turismo – apresentam novas formas de vivência da religiosidade, que podem estar inseridas nos espaços formais de culto ou não. As músicas do subgênero louvor e adoração, por exemplo, passaram a ser parte da liturgia de muitas igrejas, ao passo que subgêneros musicais como o rap gospel e o funk gospel são consumidos principalmente nas rádios, em shows ou em festas voltadas para a juventude, dificilmente incorporados como parte da liturgia formal.

O consumo de produtos religiosos é também uma forma de unificação e de classificação. Por meio da escuta da música gospel; da presença em sessões de filmes religiosos ou em eventos em que a música é central, como a Marcha para Jesus; de viagens a Jerusalém – um dos principais destinos turísticos dos evangélicos ao exterior; e do uso de roupas com símbolos e frases cristãs, entre outras atividades culturais, as pessoas se sentem fazendo parte de uma comunidade de sentido. Pelo consumo, portanto, a pessoa transmite que é cristã, que faz parte de uma comunidade de cristãos que cresce no Brasil, mas também está espalhada por todo o mundo. E transmite que a religiosidade está no centro da sua vida. Por outro lado, o consumo diferencia e, portanto, classifica. Ao escolher determinados produtos, as pessoas dizem não apenas que são evangélicas, mas evangélicas de um tipo. O consumo do rap gospel, pelo uso de roupas e pela ida a eventos do gênero, aproxima os consumidores dessa comunidade imaginada de cristãos e daqueles que consomem rap de maneira geral, pois o rap tem suas próprias características, valores e temáticas – como as questões raciais – que também fazem parte do rap gospel. [o conceito comunidade imaginada foi desenvolvido pelo historiador Benedict Anderson; saiba mais.]

Em seu artigo “As racionalidades do mercado religioso: considerações sobre produção e consumo de música gospel”, você faz uma breve análise sobre as narrativas da indústria da música. Gostaria que comentasse quais são as especificidades do mercado da música gospel.

Diversas pesquisas mostram que não existe um mercado unificado de música, existe uma série de mercados de música com racionalidades próprias. O desenvolvimento da música gospel brasileira foi marcado tanto por características do desenvolvimento do mercado de música de forma geral como por fatores próprios a esse segmento. O momento de consolidação do gênero no mercado de música no Brasil, nos anos 1990, coincide com o apogeu da indústria fonográfica no mundo, com as grandes gravadoras, as chamadas majors, atingindo lucros recordes com a venda de CDs. Nos anos 2000, essa indústria sofreu uma reorganização, com os lucros advindos da venda de CDs caindo cada vez mais, até que ela se reorganizasse novamente em torno de outras formas de monetização, como a venda de fonogramas desmaterializados (sem o CD), o acesso aos fonogramas por plataformas de streaming, a realização de eventos, a publicidade e a intensificação da exploração de direitos autorais.

Enquanto isso, a indústria da música gospel continuou crescendo com a venda de CDs, por uma série de fatores internos a esse mercado. Em primeiro lugar, essa indústria manteve em grande parte o controle das atividades relacionadas à produção, à distribuição e ao marketing dos produtos, em vez de terceirizar algumas das etapas; associado a isso, ela foi beneficiada pela existência de uma mídia religiosa – jornais, sites, emissoras de rádio e TV – que permitiu a divulgação em massa dessa produção. Outro fator é a existência de uma forma de distribuição mais ramificada, contando com uma intensa circulação dos artistas em shows, festivais, feiras e cultos ou eventos nas próprias igrejas; além disso, há venda de CDs nas próprias igrejas, milhares por todo o país, o que faz com que essa música não dependa tanto das cada vez mais escassas lojas físicas. Importante destacar também que o público que consome o gospel, embora também esteja migrando para as plataformas digitais, valoriza o CD como produto e que, nesse mercado, além da versão padrão do CD, existe sua versão playback, em que as faixas vêm sem a voz da cantora/do cantor, para que sirva de base para o acompanhamento vocal ao vivo, tipo de produto que não existe em muitos outros campos.

Além disso, essa música, como já mencionei, não é homogênea, mas é formada por uma série de subgêneros capazes de alcançar uma variada gama de evangélicos – e mesmo consumidores que não se definem como tal –, que se identificam com diferentes formas culturais. E, claro, é preciso lembrar que o crescimento dos produtos cristãos se fez em um momento de crescimento do número de evangélicos no país. Segundo dados do IBGE, de 9% da população em 1991, os evangélicos passaram a 28,5% em 2010 – mais de 42 milhões de brasileiros. [segundo a Folha, os evangélicos devem compor no Brasil, em 2032, 39,8% da população, superando os católicos.]

É possível afirmar que no Brasil há uma indústria cultural evangélica consolidada? Quais são suas principais características?

Existe uma indústria cultural consolidada no Brasil desde a década de 1970 e desde o final dos anos 1990 a produção evangélica faz parte dessa indústria. Alguns segmentos desse setor inserido na indústria cultural brasileira estão mais desenvolvidos, como a música gospel, a editoração e a mídia. Outros ainda estão em início de desenvolvimento e profissionalização, como o cinema e o teatro. Essa produção oferece não apenas bens culturais regidos pela lógica da indústria cultural, mas aquilo que podemos chamar de bens de salvação, ou seja, produtos que fazem parte da experiência religiosa contemporânea, da mediação das pessoas com aquilo que elas consideram sagrado.

Já existem dados sobre o mercado gospel e esse novo fenômeno das lives? Como esse mercado está se comportando?

Uma parte significativa de igrejas e lideranças evangélicas e também os artistas da música gospel já utilizavam de forma intensa as redes sociais e as mídias em geral. Com a pandemia do novo coronavírus e o fechamento parcial ou total de templos em grande parte do país, muitas das igrejas intensificaram suas atividades na internet, realizando cultos on-line, reuniões bíblicas e de oração, entre outras atividades. Como nos outros segmentos culturais, os artistas e as gravadoras da música gospel também estão realizando lives com bastante frequência, algumas contando com uma produção maior, principalmente as transmitidas pelo YouTube, e outras mais caseiras, transmitidas pelo Instagram. Por simularem de certa forma a ideia de presença e de encontro, as lives acabam atraindo muita gente. Além disso, muitas permanecem à disposição nas plataformas. A da Gabriela Rocha, transmitida pelo seu canal de YouTube em 18 de abril, já teve mais de 4,8 milhões de visualizações, a da Aline Barros, em 14 de abril, já conta com quase 3 milhões e a do André Valadão, transmitida ao longo de seis horas no dia 1° de maio, mais de 1 milhão de visualizações.

Da mesma forma que em outros gêneros musicais, algumas das lives do gospel contam com patrocínio, como a já citada de Aline Barros e a de Régis Danese, no dia 23 de maio. Igualmente, a maior parte delas teve objetivo de arrecadar doações. Interessante observar que algumas arrecadaram doações para projetos de instituições seculares (as de Aline Barros e do grupo Preto no Branco tiveram parceria com o projeto Sesc Mesa Brasil e a de Priscila Alcântara com o Unicef) e outras destinaram recursos a projetos de assistência realizados pelos próprios evangélicos. No segundo caso, os artistas da música gospel acabam fortalecendo o discurso que tem sido disseminado por várias igrejas e que se tornou uma das controvérsias públicas envolvendo religião nestes meses de pandemia: a defesa da essencialidade da religião não apenas pelo viés da assistência espiritual, mas também pelo da assistência social, argumento que foi utilizado por muitas lideranças que pressionaram e pressionam as autoridades para a manutenção dos templos abertos.

Outro ponto que gostaria de destacar é que artistas e gravadoras seguem realizando novos lançamentos neste período, muitos deles, assim como as lives, atrelados ao calendário de comemorações, como a Semana Santa, o Dia das Mães e o Dia dos Namorados. Houve também lançamentos que tematizaram a própria quarentena e clipes gravados no período, como “Palavra é lâmpada quando eu te escuto”, do rapper Biorki (Universal Music), “A dor”, da Banda Resgate, e o single “Está tudo bem”, de Fabio Bass (Sony Music), que contou com a participação de nove artistas da gravadora, cujas imagens foram gravadas por telas de celular.

A pandemia fortalece um movimento que no gospel foi tardio: a migração da venda de discos físicos para o digital. Até 2017, a venda da música gospel acontecia sobretudo a partir do álbum físico, mas no final daquele ano gravadoras e plataformas de streaming como Deezer e Spotify lançaram a campanha #Vemprostreaming. Na campanha, os artistas aliavam a ideia de facilidade e menor preço propiciado pela tecnologia a um apelo moral: “Streaming não é pirataria”. Ao mesmo tempo, as plataformas criaram playlists e canais específicos para atrair o público consumidor da música gospel. Como resultado, em 2019, segundo o Spotify, a música gospel foi o segundo gênero musical que mais cresceu no aplicativo, atrás da música sertaneja.

Por fim, gostaria de destacar que as principais gravadoras – ao menos as seculares – aderiram em suas redes sociais às campanhas #blackouttuesday e #vidasnegrasimportam, na semana em que mobilizações tomaram conta do mundo e do Brasil após o assassinato de George Floyd, nos Estados Unidos, e do adolescente João Pedro, no Brasil. A Universal Music Christian Group foi além das manifestações nas redes e realizou uma live no Instagram com seus artistas para falar sobre racismo. O selo abriga vários artistas da música gospel negra, por exemplo nos gêneros do rap gospel e da black music gospel, que, diferentemente da maior parte da produção da música gospel, já tematizavam o racismo em sua produção.

Mas a participação política dos artistas da música gospel não se resume a esse período. É importante destacar a atuação de artistas tanto evangélicos quanto católicos na videoconferência promovida pelo presidente Jair Bolsonaro com lideranças evangélicas e católicas, além de um rabino, no domingo de Páscoa. Transmitida pelas redes sociais e pela TV Brasil, a videoconferência buscou consolidar a imagem do Brasil como nação cristã e reforçar o caráter religioso nas determinações do presidente, elevando-o a “novo messias” prestes a salvar o Brasil. Essas duas formas de participação política dos artistas gospel mostram que esse campo precisa ser observado como um campo não homogêneo e cheio de tensões.

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