Durante a Copa do Mundo do Catar 2022, o Itaú Cultural publica uma série de textos em que artistas compartilham suas relações e memórias com o futebol e o torneio.
por Salma Jô*
Como é bom ser patriota de novo. E estou mesmo me lixando para a importância e a veracidade do termo “patriota” no Brasil hoje. Como é bom se lixar e apenas torcer. Já no primeiro jogo da seleção, em menos de cinco minutos, lá estava eu gritando e pulando, fingindo ver algum carisma no Neymar e prometendo que se o Brasil ganhar essa Copa vou homenagear o Richarlison e deixar o meu cabelo como o dele, curtinho e descolorido.
Que saudade eu estava desse sentimento instantâneo e fulminante de comunhão e irmandade, de ter esse carinho gratuito por atletas e torcedores que nem conheço. Que alegria é ser analfabeta em futebol, mas gritar como uma especialista. Que tesão é torcer apaixonadamente como se eu precisasse mesmo da vitória. Não sou supersticiosa, mas cruzei os dedos o tempo inteiro. Não sou religiosa e, por isso, uso e abuso do nome de Deus em vão, juntamente com todos os palavrões que aprendi até hoje.
Veja também:
>> Kadu Xukuru – Uma lembrança originária da Copa
Estou em família. Com minha mãe, que viveu a Copa de 70; com meu marido (o Mac), que como eu tem a Copa de 94 como a nossa primeira vitoriosa experiência de Brasil; e com meu sobrinho, que tem 16 anos e nunca viu o Brasil ser campeão. E não verá. Mesmo que ganhemos essa Copa, sabemos que nunca mais viveremos a emoção do título de campeão que vivemos no passado, porque isso não é mais possível, porque a dimensão do mundo, das nações, do Brasil, dos títulos, das vitórias e das derrotas, nada mais é como era. Os acontecimentos dos últimos anos trataram de dissolver a importância das coisas e agora parece que temos apenas o recurso da performance. Por isso, de novo, estou torcendo apaixonadamente, mas também estou me lixando.
Tinha consciência desse meu fingimento enquanto seguia a partida contra a Sérvia: é um show, um palco, é a emulação do espetáculo e dos torcedores do passado, é performance, é uma farsa, mas com a fé de que ainda assim é uma farsa que vale a pena, porque é uma das farsas mais bonitas. Não acredito que vamos ganhar, não espero que essa Copa signifique algo para o nosso povo (nosso povo?), não tenho mais ilusões de que esse evento possa fortalecer a nossa união, ou engrandecer nossa brasilidade. Pelo contrário, minha expectativa é a de que (como avisa a tattoo no pescoço no Neymar) tudo passa, e passa rapidamente.
Que as alegrias de hoje duram o prazo de um dia, de uma tarde, dos 90 minutos mais os acréscimos, duram enquanto a criatividade dos memes permitir. Mas ainda creio que esses instantes podem de repente ser gloriosos.
No segundo gol de Richarlison, maravilhados pela tremenda beleza daquela bicicleta, meu sobrinho saltou do sofá para me abraçar, e eu percebi imediatamente que vou guardar a memória desse abraço para sempre, que ela será ainda mais poderosa que a lembrança que guardei da minha tia radiante de alegria, chamando o Taffarel de lindo enquanto o Baggio baixava a cabeça e lamentava o pênalti perdido, em 1994. Ali naquele abraço se concentrou toda a emoção do passado e a esperança do futuro, desse legado que nós dois compartilhamos, como família e como brasileiros. E experimentei de novo e de verdade todos esses sentidos que eu julgava perdidos. E senti, de novo, por um breve e glorioso instante, a alegria de sermos campeões.
*Salma Jô, 35 anos, é cantora e compositora, fundadora e produtora da banda Carne Doce e do duo Salma e Mac. Mora em Goiânia, Goiás, Brasil.