por Amanda Rigamonti

 

German Lorca já nos trazia a saudade: com suas imagens, tantas emblemáticas, nos levava a revisitar uma São Paulo há muito extinta, com bondes, girafa no meio de avenida e construções que permitiam ver o horizonte. Ele agora se transforma também em saudade – neste sábado, 8 de maio de 2021, o grande fotógrafo de São Paulo faleceu, aos 98 anos.

Suas fotografias são o mais literal que se pode ser quando falamos em poesia visual. As composições cuidadosas, seu posicionamento meticuloso no cálculo de cada registro, o olhar apurado para as formas, luzes e sombras. Lorca soube dominar a técnica e transformá-la em encantamento. E o fez por mais de 70 anos.

Autorretrato, 1969 | impressão de 2018 pigmento acervo pessoal (imagem: German Lorca)

“Eu me emociono ao ver uma cor bonita, uma criança fazendo isto ou aquilo, um rosto de mulher, uma luz recortada, uma sombra acentuada. Tudo isso me dá a sensação de uma nova existência”*

German Lorca

“Lamentamos a morte de German Lorca. Além de uma trajetória que se mescla à história da fotografia brasileira, ele era uma grande e acolhedora personalidade”, observa Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. “Há três anos, o Itaú Cultural fez uma exposição dedicada aos 70 anos de carreira dele. German ia quase todos os dias à mostra e fazia questão de falar com todo mundo”, recorda.

Segundo mencionado na Enciclopédia Itaú Cultural, a estudiosa de fotografia Helouise Costa aponta que Lorca discute em suas obras o conceito de fotografia associado ao registro fiel da realidade, demonstrando que esse real necessariamente passa por uma codificação para se tornar imagem.

Autorretrato 1, 1952 | impressão de 2018 pigmento acervo pessoal (imagem: German Lorca)

German Lorca atuou em diferentes campos da fotografia, sempre com êxito, e durante essa trajetória acompanhou e registrou a modernização da cidade de São Paulo. Nascido em 28 de maio de 1922, o artista foi tema de uma retrospectiva que aconteceu no Itaú Cultural, citada acima por Saron: a mostra German Lorca: Mosaico do Tempo, 70 Anos de Fotografia, que teve curadoria de Rubens Fernandes Junior. Na época, o artista acompanhou de perto os preparativos, participando de reuniões com a equipe da instituição, e encantando a todos com seu carisma e suas histórias. Ele contou que continuava em atividade e se mostrou preocupado em acompanhar as evoluções tecnológicas – embora conservasse sua primeira câmera, uma Kodak Bullet 127 adquirida na década de 1930, também usava smartphone para fotografar.

“Um artista que perseguiu seus sonhos e imprimiu sua marca definitivamente na fotografia brasileira”*

Rubens Fernandes Jr.

Desses encontros com Lorca foram produzidos cartões postais que podiam ser retirados pelo público da exposição. Nestes postais, algumas imagens selecionadas pelo fotógrafo eram acompanhadas das histórias por trás das fotos, narradas pelo próprio autor. Estas histórias ficaram até agora guardadas com quem teve acesso aos cartões, e para marcar essa homenagem e despedida o Itaú Cultural compartilha aqui esses materiais, a fim de que a narrativa poética de Lorca possa alcançar e encantar ainda mais pessoas.

Uma girafa sobre um furgão vermelho no meio de uma rua com muitas pessoas em volta
Girafa (1962) (imagem: German Lorca)

Campanha que realizei para a Jeep Willys-Overland. Nela, era preciso mostrar a estabilidade e o quanto era robusta a caminhonete, por isso, fui até um circo e aluguei uma girafa diretamente com o dono, um espanhol. A primeira tentativa deu-se na Rua Quirino de Andrade, no centro da cidade. Numa fração de segundo, a girafa escapou e correu em disparada em direção ao Vale do Anhangabaú. Desesperado, o espanhol corria atrás dela e gritava para mim: “Se acontecer alguma coisa, você me paga um milhão de cruzeiros”. Na segunda tentativa, peguei emprestado da CMTC um caminhão com plataforma elevatória que era utilizado para manutenção na fiação da rede de trólebus. Mas tinha um problema: como fazer a girafa olhar para a câmera? O treinador da girafa então me pediu para comprar pão francês e passou a dica: “Vou dar o pão e ela vai ficar com o pescoço ereto para engolir. É só fotografar”.

Homem da cintura para cima, nu, encostado em janela, olhando para a direita, com um dos braços na testa e o outro abraçando a janela
Le diable au corps (1949) (imagem: German Lorca)

Esta fotografia foi inspirada no filme francês Le Diable au Corps (no Brasil, Adúltera), projetado em abril de 1949 na cidade de São Paulo. O filme, em preto e branco, de bela fotografia e baseado no livro de Raymond Radiguet, fez muito sucesso entre os jovens paulistanos. Narra o romance entre um adolescente e uma senhora casada. Jovem na época, fiquei impressionado com o clima e a fotografia noir do filme. Convidei, então, um jovem, Ubirajara Marien, filho de um amigo, para ser dirigido e retratado. Foi a primeira experiência bem-sucedida, em meu laboratório no Brás, com a fotografia solarizada que aprendi com o amigo e vizinho Geraldo de Barros.

Fotografia em preto e branco de uma calçada de paralelepípedos com uma peça e algumas pernas aparecendo
Malandragem (1949) (imagem: German Lorca)

No cruzamento das ruas Bresser e Almirante Barroso tinha um bar. Em alguns finais de noite, o cantor Nelson Gonçalves aparecia por lá para tomar uma cerveja e ver os amigos. Depois de passar algumas horas no laboratório, eu também aparecia por lá. Uma noite, depois da chuva, resolvi construir a cena – dois homens posicionados frente a frente. Na imagem, que na verdade é um pseudoflagrante, os planos estão bem marcados, há um pequeno desequilíbrio acentuado pela inclinação dos corpos presentes e um ponto de luz brilhante refletido na poça d’água. Uma imagem construída como no cinema; uma das minhas grandes inspirações nesse início de carreira.

Fotografia colorida de dois homens de terno lendo jornal
À procura de emprego (1948) (imagem: German Lorca)

Sempre que passava pela Praça Antonio Prado, na esquina com a Rua João Brícola, nas imediações do jornal Diário Popular, via esta cena e a fotografava mentalmente: homens lendo o jornal à procura de emprego num momento econômico difícil para o país, afinal, a guerra tinha acabado havia pouco tempo e exigiu sacrifícios em todo o mundo. Os homens se dirigiam para o local a fim de buscar a esperança nos classificados do jornal. Percebi então que a fotografia já estava pronta, e escolhi a luz da tarde, que ajudou muito na composição. Na época estava iniciando minhas atividades no Foto Cine Clube Bandeirante e a fotografia já tinha invadido meu universo imagético. Foram poucos cliques para chegar a essa imagem, uma das mais emblemáticas do período.

Fotografia em preto e branco de pernas de cadeiras mescladas com duas pernas de mulher, com salto alto preto
Pernas (1966) (imagem: German Lorca)

Nesta campanha para as meias Pégaso, precisava resolver uma questão: como propagar um produto de difícil visualização? A partir do briefing – “as meias deixam suas pernas inconfundíveis” –, idealizei esta imagem. Diferentes pernas de mesas com um design inconfundível, que justapostas foram uma surpresa para todos, inclusive para mim. Fiz várias tomadas, com algumas variações, e esta que aqui apresento tornou-se uma espécie de marca registrada de meu trabalho por ser uma imagem muito singular.

Fotografia em preto e branco da copa de uma araucária. Como na hora de fotografar o autor girou a câmera, a imagem está em movimento
Bailarina (1965) (imagem: German Lorca)

Estava em Campos do Jordão (SP) registrando um loteamento para a campanha de vendas da Lopes Imóveis. Após uma manhã de trabalho, fiz uma pausa para descanso à sombra de uma araucária. Com minha Rolleiflex na mão, comecei a observar a cena ao redor e senti que seria possível fazer uma fotografia. Nesse momento, decidi fazer algo diferente: posicionei a câmera direcionando a objetiva para a copa da araucária. Escolhi um longo tempo de exposição, fazendo um movimento circular com a câmera. Praticamente explorei a cena às cegas, clicando algumas vezes, pois só veria o resultado na revelação do filme. Este, para mim, foi surpreendente.

A mostra também foi acompanhada de uma publicação com textos de Rubens Fernandes Jr. e José de Souza Martins, além de depoimentos resgatados sobre o fotógrafo de personalidades, que reforçam a importância de Lorca na história da fotografia moderna de São Paulo, como Boris Kossoy, Thomas Farkas e Geraldo de Barros. Uma cronologia da trajetória do fotógrafo destaca momentos marcantes de sua vida e essenciais para sua formação. Ainda, uma seleção de registros do artista. Confira a publicação:

Atualmente, algumas de suas obras podem ser vistas na exposição virtual Fotografia Modernista Brasileira, disponível no Google Arts & Culture, que reúne um recorte da coleção de fotografias modernistas do acervo do Itaú Cultural. Também, foi inaugurada hoje no Museum of Modern Art (MoMA), em Nova York, a exposição coletiva Fotoclubismo: Brazilian Modernist Photography, 1946-1964, que exibe sete fotografias suas que integram o acervo do museu. Algumas das obras que integram o acervo Itaú – são 124 no total – estão presentes no catálogo da mostra.

Para encerrar essa homenagem, veja o depoimento dado por Lorca em 2014 como parte das ações da exposição Moderna para Sempre – Fotografia Modernista Brasileira na Coleção Itaú. Nele, relembra sua trajetória na fotografia. Realmente, Lorca foi um grande contador de histórias – tanto pelas palavras, quanto pelas imagens.

*Aspas retiradas da publicação German Lorca: Mosaico do Tempo, 70 Anos de Fotografia  

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Inventário: Vazio

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