por William Nunes de Santana

 

O cinema de Geraldo Sarno é daqueles – assim como os feitos por Glauber Rocha, Eduardo Coutinho e tantos outros – que possuem uma linha de pensamento muito clara: a de criar diálogos com o seu tempo-espaço – e para além deles. Nesses casos, o próprio fazer do cinema é um modo de pensamento. São registros que ajudam a compreender a profundidade e a complexidade dos tantos brasis existentes.

Nascido em Poções (BA) em 6 de março de 1938, o cineasta, roteirista e produtor faleceu, aos 83 anos, neste 22 de fevereiro de 2022 no Rio de Janeiro (RJ). Importante nome do audiovisual nacional, seus filmes retrataram temáticas sociais, em especial a migração nordestina, a cultura popular e as religiões.

Fez sua estreia na década de 1960 e realizou, ao todo, mais de 30 obras, entre documentários, curtas e longas-metragens e séries. Entre eles, seu filme de estreia, Viramundo (1964), se mantém até hoje como sua principal obra, responsável por trazer uma nova imagem da classe operária brasileira, a do camponês de origem nordestina corrido da seca e da fome, e do surgimento de um sistema religioso neopentecostal, hoje hegemônico no Brasil.

Sobre Viramundo, o jornalista e cineasta Vladimir Herzog – homenageado pelo programa Ocupação Itaú Cultural em 2019 – escreveu certa vez (o texto abaixo respeita a grafia original do seu autor):

“[...] é ‘Viramundo’ não só pela natureza do problema que aborda, mas também pelo método utilizado em sua realização (pesquisas prévias exaustivas, seleção valorativa dos dados colocados em função de uma demonstração dialética) fato sem precedentes na história do documentário social brasileiro. Pode ser (e acredito que assim seja) que o resultado final não correspondeu às expectativas, que o filme acabou resultando não muito claro (principalmente para as plateias estrangeiras) mas quando se tem em mente que êste tipo de cinema (ou de arte) é um cinema participante de um processo de transformação social percebe-se que mesmo as falhas (inevitáveis) tornam-se virtudes desde que, naturalmente, o autor ou autores tenham consciencia do caráter ‘científico’ do seu instrumento de expressão e não queiram fazer obras ‘belas’ ou ‘acabadas’ em si mesmas. É o caso de Geraldo Sarno (diretor de ‘Viramundo’). Daí que eu confio nele, e em sua fita, fita que abre caminhos, provoca raciocínio e discussão. Enfim, é fértil, porque contribue para o conhecimento objetivo de uma realidade ou um elemento dela” (trecho de carta enviada ao amigo Tamás Szmrecsányi em 7 de janeiro de 1966).

Em 2008, Sarno experimentou a linguagem metalinguística em Tudo isto me parece um sonho, sobre a história do general pernambucano Ignácio Abre e Lima. Sua última obra foi Sertânia (2019), longa-metragem que recupera e atualiza a imagem mítica do sertão no cinema brasileiro. O site Linguagem do Cinema, com curadoria do próprio cineasta em parceria com o governo do estado da Bahia, disponibiliza seu acervo audiovisual. Clique aqui para acessar a página.

A artista, designer e cineasta Rayssa Coelho trabalhou com Geraldo na produção-executiva e pesquisa de seu acervo entre 2018 e 2021. Para ela, a obra do cineasta baiano é um importante retrato da vida social, política e cultural da região, refletindo historicamente saberes e fazeres do povo. “Mas a sua longa e prolífera produção não se limita. Em Viramundo, por exemplo, Geraldo fala da classe operária nordestina em São Paulo, além da ascensão neopentecostal, embrionária naquele momento; em Deus é um fogo, apresenta a cosmogonia de povos indígenas latino-americanos; em A Terra queima documenta a luta dos índios Pankararé pelo direito à demarcação de suas terras; em O último romance de Balzac reflete sobre a questão da autenticidade e utiliza as potências do falso para questionar a noção de verdade”, comenta. “Numa produção extensa, não apenas documental, apresenta a mística, arte, economia, poética, imaginário, luta, pensamento crítico e muitas outras questões que nos aproximam de diferentes realidades.”

Fotografia preto e branco do cineasta Geraldo Sarno, em 1967. Ele era jovem, está agachado, com os braços apoiados nas pernas.
Geraldo Sarno, em 1967, em Viña del Mar, no Chile (imagem: acervo pessoal Geraldo Sarno)

Travessia

Geraldo trabalhava atualmente no projeto Travessia, selecionado pelo Rumos Itaú Cultural 2019-2020 e no qual organizava seu acervo de mais de 50 anos de atuação ininterrupta para a produção de um livro.

No campo da literatura, também publicou, ao longo de sua carreira, os livros Glauber Rocha e o cinema latino-americano (1994) e Cadernos do sertão (2006), além de ser coautor de Coronel Delmiro Gouveia (1979), com Orlando Senna.

Capa do livro Cadernos do sertão, de autoria de Geraldo Sarno. A imagem mostra alguns textos e imagens espalhados. No centro, o nome do livro e do autor.
Capa do livro Cadernos do sertão (imagem: Laerte Fernandes)

Lembranças

O cineasta baiano Henrique Dantas, diretor do filme Filhos de João, o admirável mundo novo baiano, que conheceu Geraldo em 2009, lembra da maneira corajosa que o amigo tinha de ver o cinema: “Ele pensava muito no que fazia. Quando estava fazendo Sertânia, me contou das referências que tinha de outros filmes e de quadros. Geraldo pensava muito a questão simbólica do cinema”, comenta. “Ele também era muito generoso com a nova geração de cineastas da Bahia, da qual faço parte. Nós tínhamos um diálogo muito legal; ele via coisas que eu fazia que ainda não estava preparado para ver. Ele era um professor, um mestre que ensinava a enxergar. Não é só dar o peixe nem dar somente a vara, é ensinar que horas o peixe aparece. Uma pessoa memorável.”

A relação do jornalista, escritor, pesquisador e crítico de cinema Carlos Alberto Mattos (cocurador da Ocupação Eduardo Coutinho) com Geraldo, por sua vez, é de crítico e admirador. Ele lembra que compartilhou com Sarno, José Carlos Avellar e Ivana Bentes o conselho editorial da revista-livro Cinemais, entre 1996 e 2003. “Compreendi, então, o valor de Sarno como pensador do cinema, longe ou perto das câmeras”, diz Mattos.

Para ele, Geraldo Sarno foi um dos mestres do documentário no Brasil, admirado por diversas gerações. “Reconheço a imensa importância de seus curtas e médias realizados sobre a cultura nordestina e os imigrantes nos anos 1960 e 1970, quando a chamada Caravana Farkas fez uma espécie de segunda descoberta do Nordeste e impôs uma valorização sem precedentes do documentário brasileiro”, afirma. “Sarno sempre esteve atento à cultura e à religiosidade populares, nisso guardando fidelidade a suas origens baianas. Mas seu arco de interesses era mais amplo. Dono de vasta cultura cinematográfica, literária e filosófica, ele estudou com paixão as relações entre o Neorrealismo italiano, o cinema latino-americano e o Cinema Novo brasileiro. Seu último filme, a ficção Sertânia, é uma obra-prima e uma prova de vitalidade e juventude que ele deu, já na quadra dos 80 anos.”

Rayssa comenta sobre sua gratidão por poder imergir nessa travessia de Geraldo, a qual se iniciou em 1964, mas está longe de acabar. “Quando o conheci, nos primeiros minutos da sua fala, contava sobre a sua ida para Salvador na juventude, em razão dos estudos, e de lá, no litoral, entender a sua conexão com o sertão e o pertencimento ao interior como orientação da percepção do mundo. Na verdade, o sertão é um mundo, como sempre dizia, e minha relação com a filmografia de Geraldo, iniciada antes desse primeiro encontro, se aprofundou a partir de 2013, quando me senti conduzida pela sua fala. Seu retorno para a Bahia e a vontade de trabalhar com equipes locais foram importantes movimentos para a produção local, e me sinto honrada pela confiança que se estabeleceu na nossa parceria desde o início. Ele sempre será um mestre, uma inteligência cintilante e que, certamente, não só a mim, inspirou de forma muito poderosa a vida de muitos”, conclui.

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