por Ramon Nunes Mello*
O universo de temas vinculados às questões de gênero, corpos e sexualidades ganhou espaço expressivo de discussão teórica e agendamento de pautas midiáticas nas últimas duas décadas, como resultado de avanços da atuação dos movimentos de minorias que afirmaram politicamente os espaços de conquistas de visibilidade e representatividade.
O evento Todos os gêneros – mostra de arte e diversidade, do Itaú Cultural (IC), que ocorre desde 2013 (com um hiato em 2015), se instaurou, ao longo de suas oito edições, como um espaço relevante de debate e visibilidade teórica e artística sobre os temas de gêneros, corpos e sexualidades.
O projeto, idealizado por Sonia Sobral, gerente do Núcleo de Artes Cênicas do IC de 1998 a 2015, surgiu da observação sobre os frequentadores das plateias de teatro da organização e as escolhas da programação. A inquietação da curadora foi compartilhada, na ocasião, com o artista e professor de dança e filosofia Ricardo Marinelli, que colaborou com reflexões fundamentais para a estruturação da criação de Todos os gêneros como um espaço de troca e diálogo entre artistas, pensadores, curadores e o público.
“A mostra foi pensada para ser um espaço de representatividade para as discussões de gêneros e suas pautas, inicialmente tendo como subtítulo Poéticas da sexualidade, com a intenção de ser uma arena de debates e apresentações artísticas, na medida em que eu sentia falta de haver um espaço de visibilidade desses temas, pois existia uma demanda de público”, relembra Sonia. “Enquanto assistia ao espetáculo A primeira vista, com a atriz Mariana Lima e sob a direção de Enrique Dias, notei a presença da diversidade na plateia e senti essa inquietação de romper com a invisibilidade de certos corpos divergentes e identidades na cena cultural. Dessa forma, surgiu a ideia de propor uma mostra que pautasse os temas de gêneros de forma central.”
Desde sua idealização, em 2013, a mostra nasceu como uma arena artística que trouxe para o centro da programação o tema do gênero de maneira ampla, reunindo espetáculos e mostras visuais de artistas múltiplos de várias regiões do país. Pensando no contexto desses anos em que o evento segue sendo realizado, ampliando a abordagem e a interseção com outras linguagens, Sonia salienta que “uma curadoria que rompa com as invisibilidades é fundamental, ainda mais neste momento conservador em que as políticas públicas de gêneros estão sendo atacadas”.
Vale lembrar que o Brasil é o país que mais assassina sua população LBTQIA+, inclusive 80 transexuais foram mortas no país apenas nos primeiros meses de 2021, de acordo com informações da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), o que evidencia o real cenário de marginalização e violência a que esses corpos políticos ainda estão submetidos.
A primeira edição do evento organizou-se para criar um espaço para pensar de que forma a produção artística – de dança, performance e cinema – estava abordando questões de gênero, desejo, sexo e preconceito. Um dos principais destaques na ocasião foi Travesqueens, iniciativa dos artistas Elielson Pacheco (PI), Erivelto Viana (MA) e Ricardo Marinelli (PR). A mesa originária da mostra, chamada de Mesa performática bizarra: artes cênicas, gênero e diversidade na cena atual, reuniu artistas como o próprio Marinelli, além de Silvero Pereira e André Masseno.
A edição da mostra em 2014 prosseguiu com sua programação artística de dança, teatro, performance, fotografia e cinema tendo como foco abordar questões de gênero, desejo, sexo e preconceito. Os destaques foram o projeto fotográfico The queer face, que retratava pessoas com atitude crítica em relação às suas identidades e ao corpo. Ocorreu também o projeto de contação de histórias A princesa errante e o príncipe errado, sobre dois personagens que não se encaixavam nos padrões sociais, juntamente com uma performance com os curitibanos Gustavo Bitencourt e Leonarda Glück que discutiu questões da transexualidade. Ainda fez parte da programação artística o espetáculo A cicatriz é a flor, de Georgette Fadel, que tratava da separação de uma tatuadora e sua namorada.
A retomada e a consolidação do debate
Ao longo das edições do evento, a curadoria teve o foco atento em dar voz aos sujeitos que poderiam representar os temas em sua perspectiva teórica e de artistas com trajetórias ativistas. Galiana Brasil, gerente do Núcleo de Artes Cênicas do IC desde 2015 e uma das curadoras de Todos os gêneros, relata que, desde que passou a integrar a equipe de curadoria da mostra, possui como premissa o princípio pedagógico e formativo do evento, que a partir de sua segunda edição teve uma mudança estruturante ao incluir outras linguagens, assumindo um lugar gerador de conteúdo, atrelado a várias frentes de atuação, como os debates educativos e a publicação de um catálogo com textos inéditos, além de ações de artes visuais, cinema e comunicação.
Diante da realização de uma nova edição da mostra, Galiana destaca a importância da continuidade do projeto e avalia as edições anteriores no contexto sociopolítico. “Nestes últimos oito anos, vivemos em mais de um país, com as mudanças de pautas governamentais e o aumento da violência contra a comunidade LBTQIA+. Então, cabe valorizar a insistência da organização em manter o evento”, ressalta. “Existe um valor cooperativo na mostra, em sua porosidade e sua capacidade de absorver e se modificar de acordo com a ascensão de diferentes vozes, já que os temas nunca se esgotam e sempre retornam. Trata-se de um projeto extremamente interseccional de diversidades e de territórios, dentro de uma elipse do que as vozes dos sujeitos estão trazendo. Vozes protagonistas e múltiplas na primeira pessoa, sempre.”
Em 2016, a programação incluiu uma mostra de filmes, com obras como o documentário Um dia com Laerte; espetáculos teatrais como o premiado Luiz Antônio Gabriela, do diretor Nelson Baskerville; mesas-redondas para debater, principalmente, a natureza dos gêneros para além do binário, com a participação de Djamila Ribeiro e outros convidados; e uma mesa sobre o tema da transgressão na obra do dramaturgo argentino Copi.
A transexualidade fora da margem
A partir da edição de 2017, Todos os gêneros foi realizada todos os anos com subtemas mais específicos dentro da discussão de gêneros e sexualidades. Assim, em 2017 a mostra debateu a visibilidade trans e a intersexualidade, buscando trazer a discussão para o campo das artes contemporâneas. Com a participação de ativistas, artistas e cantores, também produziu um catálogo com um ensaio fotográfico conceitual – assinado por Richner Allan – com alguns participantes, incluindo a cantora Linn da Quebrada e o ativista Lam Augusto de Matos.
De acordo com Carlos Gomes, integrante do corpo de curadoria do projeto desde 2016, no ano em que a mostra abordou o tema da transexualidade, em 2017, houve a preocupação de trazer para a participação corpos transexuais que usualmente não costumam frequentar o Itaú Cultural. Para isso, realizou-se uma parceria com a Casa Florescer, espaço de acolhimento da população transexual em São Paulo, e foi incluído na pré-programação da mostra um curso de moda, além de um ensaio fotográfico para o site com as participantes trans desse curso. Dessa forma, possibilitou-se uma abrangência de inclusão de uma diversidade de público para o espaço de realização do evento.
Em 2018, a mostra trouxe visibilidade para o tema da soropositividade, pautando o HIV/Aids em discussões sobre sexualidade, gênero e corpos políticos que perpassam a linguagem, a poesia, o teatro e o cinema, e com a realização de oficinas de escrita criativa com novas narrativas e literatura “pós-coquetel” sobre o vírus. Na mostra foi lançada a antologia poética Tente entender o que tento dizer – poesia HIV / Aids (Bazar do Tempo, 2018), com 96 poetas. Naquele ano também houve mesas de bate-papo com escritores e ativistas consagrados, como João Silvério Trevisan, e apresentações artísticas, como a performance Cura + sorofobia, onde se esconde o preconceito, da “artivista” Micaela Cirino.
Durante essa quinta edição do evento, foi realizada para os funcionários do IC uma ação formativa sobre HIV/Aids com o médico infectologista e ativista Caruê Contreiras, a fim de levar informações sobre esse tema de maneira educativa – uma preocupação da organização do evento, que buscou entender o alcance de suas discussões de forma a ampliar e pautar novas práticas mais conscientizadoras.
A mostra, nesse sentido, se tornou um lugar de força de representatividade para que essas obras artísticas e discussões teóricas pudessem circular para além do circuito LGBTQIA+ e pautar, por exemplo, o tema do HIV/Aids não somente no Dezembro Vermelho, o mês de maior visibilidade desse assunto, possibilitando o fortalecimento e a amplitude de um testamento com suas publicações e ações que transcendam a pauta de debate restrito, o qual ocorre apenas em momentos específicos do ano, como em junho, considerado o mês da diversidade.
Na sexta edição, em 2019, Todos os gêneros reuniu cinco artistas visuais que transgridem o que ainda conhecemos como norma sexual e de gênero. Nomes como Camila Svenson e Isabella Lanave apresentaram, em fotografias que integraram a publicação impressa, leituras sobre o envelhecimento do corpo LGBTQ+, tema escolhido pelo evento para debater os estereótipos corporais e a invisibilidade do corpo velho na discussão mais ampla do conceito de envelhecimento na sociedade ocidental. Angela Ro Ro abriu a mostra com um show de resgate das canções de sua carreira.
Ampliação da rede
Em sua edição em 2020, no cenário surgido com a pandemia e pela primeira vez apenas on-line, a mostra enfrentou de frente o patriarcalismo nas discussões da programação, com um inventário artístico e teórico sobre as noções de masculinidades concebidas como um terreno em trânsito e em transformação, em debates participativos sobre novas paternidades e padrões de masculinidades tóxicas. Mia Couto colaborou no catálogo com um ensaio inédito, intitulado “Um corpo extracorpóreo”.
Esse cenário fértil de debate possibilitou uma desconstrução teórica e imagética em contraposição à ideia de que ser homem é estar numa posição que implica poder, desvelando que a construção das identidades masculinas, constituída historicamente pelo controle, pela violência, pela competitividade e pela força, agora se depara com uma nova estrutura e consciência social que a convidam a entender a equidade e suas implicações de transformações menos rígidas.
Em 2021, ainda em contexto pandêmico, a mostra seguiu como espaço pioneiro de visibilidade. O tema da edição deste ano foi “Corporalidade, gênero e sexualidade: uma reflexão sobre o exercício da arte e afirmação da sexualidade nos corpos divergentes”. A programação ocorreu em agosto, com ações virtuais de espetáculos, mesas de bate-papo, um e-book síntese do evento e poéticas encomendadas para esse cenário virtual (performance e cenas de teatro).
A oitava edição apresentou uma retrospectiva temática das últimas edições, a partir da retomada de um legado construído ao longo desses anos. Desse modo, a programação discutiu a transversalidade de temas de todos os eventos anteriores pela perspectiva de protagonismo das diversas identidades, pluralidades, representatividades e transitoriedade dos corpos.
Ao chegar a seus breves oito anos de existência, a mostra Todos os gêneros consolidou-se como espaço institucional pioneiro de enfrentamento do conservadorismo latente no Brasil, já que, diante de uma espécie de consenso na realidade brasileira contemporânea, há a constatação de uma tendência que registra uma crescente inflexão de setores médios da sociedade para o pensamento conservador.
A questão da identidade está sendo extensamente discutida na teoria social, sobretudo na teoria de estudos queer, sob a premissa de que as velhas identidades polarizadas e binárias do patriarcado estão em declínio e transformação. Nesse contexto, nos últimos 20 anos, percebemos a instauração de uma sociabilidade e o estabelecimento de espaços de identidades até então marginalizadas, que se empoderaram na construção de si e na vinculação com o nós (comunidade), ou seja, uma identidade autoafirmativa, e a consequente visibilidade social de uma minoria sexual (ou maioria silenciada). Visibilidade construída pela apropriação de espaços midiáticos, espaço nas artes na construção de narrativas autênticas sobre si mesmas, sobretudo na produção cultural e no ativismo e “artivismo” de corpos políticos.
Pautada em temas sobre gênero, sexualidade e todas as rupturas da norma tradicional, a mostra Todos os gêneros se posiciona como lugar de resistência e de criação de novos espaços pioneiros multidisciplinares, artísticos e de representatividade identitária, em confluência com os principais avanços e conquistas do movimento LGBTQIA+ no mundo nos últimos 50 anos desde as manifestações de Stonewall. São eles: criminalização da LGBTQI+fobia; fim da criminalização da homossexualidade; reconhecimento social da identidade de gênero; fim do tratamento das identidades trans como patologias; fim dos tratamentos de “cura gay”; casamento civil igualitário; permissão para casais homoafetivos adotarem crianças; respeito à laicidade do Estado e fim da influência religiosa nos processos políticos; políticas públicas pelo fim da discriminação a pessoas LGBTQI+; fim dos estereótipos LGBTQI+ na mídia e representatividade da comunidade nos meios de comunicação.
O caminho da transformação está em curso, porém a luta ainda é longa e intensa.
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*Com a colaboração do pesquisador Wagner Alonge.
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Ramon Nunes Mello (Brasil, 1984) é poeta, escritor, iogue, nômade e ativista dos direitos humanos. Autor dos livros Vinis mofados (Língua Geral, 2009), Poemas tirados de notícias de jornal (Móbile, 2010/2011), Há um mar no fundo de cada sonho (Verso Brasil, 2016) e A menina que queria ser árvore (Quase Oito, 2018). Organizou Tente entender o que tento dizer: poesia + HIV / Aids (Bazar do Tempo, 2018) e Ney Matogrosso, vira-lata de raça – memórias (Tordesilhas, 2018).